Não
posso contar tudo porque não dá pra contar tudo. Também não tem como
enfeixar todas as impressões dispersas em uma frase, sentença ou
avaliação restrita e inteligente. Não se trata de responder na lata com
aquela opinião matadora quando alguém pergunta, tão na lata quanto: - E
aí, como é que foi... Não é questão de falta de domínio da linguagem, de
escassez de opinião ou de ausência de objetividade: é que, sendo uma
pessoa do tipo tão vulnerável aos estímulos visuais, não consigo mesmo
encaixotar em períodos verbais a intensidade daqueles a que fui exposto
junto com Rejane, Cecília e Bernardo durante uma viagem de férias de
seis dias em Orlando, EUA, a cidade famosa pelo complexo de parques
temáticos da Disney e dos estúdios Universal. Tudo o que posso fazer
aqui é salpicar gotas dispersas de sensações, cacos de encantamento mais
do q
ue naturais para quem passou a infância consumindo histórias em
quadrinhos e similares, perdigotos descontrolados que o também natural
deslumbramento faz chover da mente ainda congestionada.
Só
não me peçam distanciamento, contenção, pé atrás ou qualquer outra
postura que implique em uma abordagem meio blasé diante do que vi, ouvi,
senti. Dá não, coração: desde a mais tenra idade, quando deixava minha
aldeia de 14 mil habitantes no Seridó potiguar para visitar a
metropolitana Caicó, minha cabeça virava. Imagine quando ia a Campina
Grande! O gigantismo urbano é
algo que sempre me atraiu, e se você pretende entender melhor como é que
isso se dá na cabeça de uma criança, experimente ler uma HQ do Homem
Aranha, qualquer uma, prestando atenção nas cenas que se passam no
ruge-ruge da cidade: eram aqueles prédios, aquele povo na rua, aquele
agitação incessante que me fascinavam. E os parques da Disney e da
Universal – sobretudo o Adventure Land, na Universal, na parte dedicada
aos heróis Marvel - condensa, empacota, sintetiza tudo isso e coloca você lá dentro, bem
no meio das fachadas traçadas a lápis, da explosão de cores em forma de
minicidade, enquanto o visitante se desvia das motos em que os
super-heróis transitam de tempos e tempos. Sem falar no brinquedo 4D do
Spider Man, aquela visita ao paraíso que me vi fazendo três vezes. Ainda
bem que não tinha fila.
Falando
em filas, desconfie delas. Ou melhor, não acredite tanto assim naquelas
placas que indicam quanto tempo você vai levar para chegar à atração
principal. Às vezes está lá 30 minutos, mas é entrar na fila e você
percebe que, como diz o ditado, a fila anda, e anda rápido – e algumas
vezes há atrações pra lhe distrair enquanto você está na fila. E o que é
melhor, às vezes a atração da fila consegue até superar a atração
principal, ao menos pra mim. Foi o caso do brinquedo chamado, salvo
engano, A Grande Corrida do Cinema: a promessa, cumprida, é de que você
vai, dentro do seu trenzinho, transitar por alguns dos maiores clássicos
dessa arte americana. De fato, um gangster à James Cagney vai
seqüestrar o carrinho em que você passeia, um tiroteio vai lhe
pegar no meio do caminho, Alien, o oitavo pass
ageiro, vai borrifar sua cabeça com aquele bafo que só ele tem, e a
bruxa de O Mágico de Oz vai lhe jogar imprecações antes de permitir que a
viagem continue. Ocorre que, antes de passar por tudo isso, você vai
esperar na fila que dá voltas numa simulação de uma sala de cinema onde
todos esses filmes e mais outros são projetados numa tela de tamanho
real, lhe dando a chance de ver trechos dessas produções que há muito
não se consegue ver numa sala escura de verdade. O passeio é ótimo, mas
ainda acho que a projeção – e no final do passeio você vai ver mais um
pouco – não tem preço.
Orlando,
a cidade em si, acabou ajudando meu coração provinciano a entender
Brasília um pouco melhor: é uma cidade absolutamente plana,
esquadrinhada por ruas que mais parecem auto-estradas. Entendi melhor o
choque que tanta gente experimenta ao conhecer Brasília. Orlando é
Brasília elevada ao cubo. Ninguém nas ruas. Ninguém. Calçadas, quando
existem, são iguais às de Brasília – aquela trilha de cimento estreita
entre faixas de grama. Aí você entra num out-let, num shopping ou mesmo
numa daquelas gigantes lojas “de rua” (como a livraria do tamanho de uma
loja de material de construção brasileira) e descobre onde as pessoas
se escondem. Só não conseguimos mesmo foi entender onde as pessoas
moram. É, moram. Porque tudo o que vimos, numa cidade que além de plana é
de prédios predominantemente baixos, com uma ou outra torre
sobressaindo, foram ins
talações comerciais. Claro que não podemos dizer que “conhecemos”
Orlando: os lugares por onde passamos, presumo, é que são assim. Deve
haver uma cidade mais normal além do horizonte imediato, mas este não
vimos.
E
se dá pra fazer alguma tentativa de ser objetivo, arrisco dizer que o
que mais me chamou atenção nas pessoas – nas quais também reparei, em
busca daqueles pontos em comum que nos faz a mesma humanidade embora
dispersa por países tão diferentes – foi um certo espírito assertivo. A
assertividade americana, se posso dizer assim. Eles podem até não ser,
mas parecem muito assertivos em tudo o que fazem: desde o negão que me
ajudou a embarcar na conexão Miami-Orlando, explicando com firmeza,
atenção e educação três vezes para que eu tivesse cuidado quando fosse
retirar uma bolsa do bagageiro superior do avião, até a garota que, numa
loja massa de quadrinhos em que infelizmente não pude me demorar, saiu
do caixa – do caixa – para me explicar onde ficava uma loja de
brinquedos que procurávamos para Bernardo. Atenciosos, educados,
sorridentes, relaxad
os (mas atentos ao trabalho, fosse ele qual fosse) e, numa palavra,
assertivos: foi assim que os norte-americanos de Orlando me pareceram.
Se alguém de coração menos provinciano do que o meu me disser que isso é
porque se trata de uma cidade turística, vou entender perfeitamente.
Mas por favor não me negue o prazer do deslumbramento, porque ele pode
ser muito valioso num tempo em que desfazer de tudo e de todos no
Facebook parecer ser a máxima sensação de prazer que alguém pode
experimentar. Fico – e feliz – com o provincianismo, que me faz manter
nos olhos um encantamento a ser despertado cada vez que vejo algo que
sendo diferente é também bonito, interessante e estimulante. E a
assertividade, aqui como lá, pode ser tudo: quem disse que o negão do
bagageiro tinha a obrigação de sair do canto dele e dar tanta atenção a
um passageiro desconhecido... idem para a garota do caixa.
Voltei
com a impressão de que com assertividade a gente tanto pode atender bem
um turista – a Copa vem aí, faça sua parte – quando construir um país.
Dá trabalho, leva tempo, exige esforço e paciência (outra característica
que vi muito entre os nativos gringos) mas acaba acontecendo. Se eles
têm defeitos – um monte, e a manchete dos jornais e telejornais nos dias
em que estivemos lá foi mais um daqueles massacres malucos em escolas –
têm também qualidades como a assertividade. E, em viagem, desculpe aí
mas tenho que defender meu ponto de vista, prefiro reparar mais nas
qualidades do que nos defeitos. Na vida, em geral, também. Talvez seja
isso o que esteja mais em falta entre nós, brasileiros.