segunda-feira, 25 de maio de 2020

A Matrix brazuca



 As memoráveis campanhas presidenciais dos anos 90, a gestão neoliberal de FHC, o sucesso das políticas de distribuição de renda da era Lula, os tropeços de Dilma, o avanço de feminista e LGBT e similares, o país vendo com simpatia as caminhadas dos sem-terra, os massacres tipo Eldorado de Carajás, os subterrâneos do governo Temer, a queda de Collor e a mineirice de Itamar, as passeatas incendiárias de julho de 2013, o PcdoB e os black bloc, Amarildo e Regina Duarte, tudo, todos, o que vivemos, o que pensamos que éramos, o que imaginávamos em vão, acabou. Não porque, como não se cansa de dizer uma amiga querida na internet, “o Brasil acabou”. Mas porque era tudo falso, como a Matrix daquele filme famoso.

Era tudo – inclusive as mazelas que fazem parte do processo, como o general Nini dando com pau na cabeça de cidadãos na Brasília de 25 de abril de 1984, só pra ficar num exemplo – era tudo uma espécie de filme em três dê com a gente dentro, fazendo figuração mas certos de que éramos os astros e estrelas. Nada disso. E a culpa é um de um reles artigo da Constituição de 88, justo ela, a carta magna da redemocratização, a que agora, sabe-se, também faz parte – o “instrumento da demoracia”, lembram, a expressão que Ulysses Guimarães usou ao promulgá-la? – desse mesmo sonho esverdeado e sombrio.

O artigo 142, na parte da Constituição que trata do papel dos militares, é que acaba com o nosso mundinho de ilusões de cidadania, representatividade, respeito à minoria e por aí vai. Nada disso se sustenta diante das palavrinhas que estão lá. E que não vou reproduzir porque, além de exterminadoras, elas também são muito chatas como toda linguagem oficial. Basta dizer que, por obra e graça do general Leônidas Pires Gonçalves, que viria a ser um dos “garantidores” do fim da ditadura propriamente dita e da “transição democrática” que hoje, graças a este mesmo artigo, ficamos sabendo que não existe de fato, o artigo 142 ficou lá no texto onde se mantém até hoje. Leônidas seria um dos ministros militares de Sarney, escolhido em detrimento de Ulysses – por imposição dos mesmos homens de farda – para o comando do país finda a ditadura propriamente dita. Há pontas soltas aí como o papel de Tancredo, cortado do filme involuntariamente, mas o sentido final é este.

Falou-se tanto em reformas no Brasil ao longo dos anos. Foram tantas PECs, as tais proposta de emenda à Constituição, aprovadas apesar da imensa maioria parlamentar exigida para tanto. E ninguém sugeriu reparar a Constituição para tirar de lá esse artigozinho por meio do qual as Forças Armadas se garantem como patronesses da manutenção da “lei e da ordem” a pedido de qualquer um dos três poderes. Se o leitor não se ligou até agora, aí está a chave para qualquer forma de golpe militar quando o cliente quiser – e este pode ser tanto os próprios militares irritados ou os empresários tiriricas da vida com alguma política distributiva do presidente eleito ou mesmo a classe média amuada pela falta de dinheiro pra comprar dólar barato e viajar pelo mundo agora. Ou, é claro e é como tem se dado, os três grupos aí juntos, com a concordância calada ou gritada das manadas de manipulação de sempre, no caso de Dilma os classe C cegos aos próprios avanços conseguidos durante os anos anteriores (foi tudo “obra de Deus” ou do pastor da esquina, tanto faz)

É isso, então: hoje no Brasil muito se fala sobre o artigo 142, que sempre esteve lá, prontinho para ser usado, sem que ninguém se desse conta dele. Especialmente a porção mas progressista do espectro político, ocupado com tantas picuinhas colocadas no seu caminho. Essa sim era – é – uma pedra digna do nome, o instrumento legal pronto e acabado para que o brasileiro jamais possa viver livre da chancela do poder militar. A ditadura militar clássica, naquele formado que varreu a América Latina nos anos 60-70, acabou formalmente, mas a democracia verdadeira, essa que vai além de um sistema representativo por si só já cheio de vícios antipovo, nunca veio.
E tudo aquilo – Lula X Collor, o choro de perdedor jamais admitido de Aécio, o êxito do orçamento participativo no Sul, a campanha das Diretas, a arrogância discreta de Marina Silva e até o Deux do Cabo Daciolo – nunca existiu de fato. Foi só distração. E como o artigo continua na Constituição, sendo agora erguido ao alto como argumento pró-golpe pelos fanáticos bolsonaristas das manhãs de domingo em Brasília, vamos continuar vivendo muitas outras ilusões pela frente. Para nos livrar desse fantasma tão real, teríamos que fazer como os argentinos, que mantiveram artigo semelhante na sua Constituição pós-ditadura mas, embora os anos de chumbo deles tenham sido muito mais terríveis do que os nossos, algum tempo depois extirparam do texto essa parte suja.

Pena que não podemos dizer que os doentes e mortos pela Covid 19 fazem parte da Matrix brazuca. Não, a pandemia é real – nunca esqueça que é também um desastre mundial, embora aqui se torne pior em função de quê? Ora, em função também da Matrix, porque se tivéssemos tido uma transição de fato, sem este artigo colado que nem chiclete na sola do sapato verde-amarelo, teríamos também um sistema de saúde, um presidente eleito e uma coordenação de governo muito mais eficiente, justa e respeitável. A Matrix, porém, como se viu no filme, domina tudo.

Sugiro que na próxima vez você escolha a pílula vermelha.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

TESOUROS DO SOPÃO: As máquinas de A Máquina

Vamos nos aproveitar um pouco do isolamento social destes meses para recuperar aqui no Sopão postagens antigas (sim, este blog já pode ser considerado uma antiguidade, já tem arquivo pra isso) sobre livros, filmes, discos que o leitor pode usar como enchimento dos dias que por acaso possam lhe parecer vazios enquanto espera as coisas melhorarem (hão de, crê sem fanatismo). Pra começar, achei, de dezembro de 2007, este post sobre o filme "A Máquina" de João e Adriana Falcão, que eu havia acabado de assistir em DVD. Abaixo do texto principal, vai um adendo saboroso pra mim: um comentário* que a própria Adriana Falcão me mandou na época. 

As máquinas de "A Máquina"

"A Máquina" é um liquidificador de estilos onde cozinheiros de imagens colocaram para triturar nacos generosos de tubérculos visuais do tipo "O Auto da Compadecida", "Lisbela e o Prisioneiro", "A Invenção do Brasil", "Hoje é dia de Maria", um pouco até de "Armação Ilimitada" e outras manufaturas da fábrica de Guel Arraes, dos armazéns de Luiz Fernando Carvalho e dos depósitos de outros fabricantes de um imaginário afim, como o brincante teatral Antônio Nóbrega ou a alma popular que empresaria o Bloco da Saudade no carnaval pernambucano.

"A Máquina" é o processo de liquefazer tudo isso num sumo cinematográfico que resuma todos esses sabores visuais sem a preocupação restrita de ser tv, cinema, teatro ou festa interiorana.

"A Máquina" é Paulo Autran dizendo o texto genealógico de Adriana Falcão, que vai às últimas conseqüências para contar como nasceu seu herói Antônio. Um conto que escava as mais invisíveis raízes das narrativas para lembrar que, só pelo fato de existir, um simples personagem resume em si todo o mistério e o absurdo da existência da humanidade inteira.

"A Máquina" é um ator capaz de brilhar tanto e com tal falta de esforço que consegue apagar tudo em volta – o cenário, os coadjuvantes, as luzes, as cortinas, a própria sala de exibição com suas paredes e nosotros, espectadores. Wagner Moura é essa máquina instantânea de carisma e transfiguração, que faz de uma ponta um continente. O ator que transforma, pela farsa mais bretchiana, um colunista televisivo no seu avesso.

"A Máquina" é o artifício de João e Adriana Falção, que invertem o fluxo da globalização ao levar os microfones e as canoplas do mundo até o vilarejo de Nordestina – e não o contrário.

"A Máquina" é a quintessência da nova farsa cinematográfica nordestina, o supra-sumo da pilhéria, a saturação de sons e cores que as experiências anteriores formalmente se recusavam a admitir. É a peneira elétrico-popular da feira em oposição ao filtro climatizado do shopping. É o carro de som de interior enfeitado com pinturas berrantes anunciando bugigangas no cinza discreto da metrópole. É a nova parábola do êxodo forçado na era das fronteiras invisíveis só para os computadores.

"A Máquina" é o filme de João Falcão, baseado no livro de Adriana Falcão, que deu origem também a elogiada e bem sucedida peça teatral, e que, tendo sido esnobado pelos cinemas, pode ser visto agora em DVD.

*COMENTÁRIO QUE RECEBI DE ADRIANA FALCÃO:

"Há muito tempo não leio o que sai sobre o filme A máquina, porque geralmente não fico feliz quando faço isso. Hoje descobri o seu texto e o dia mudou. Ficou em mim a impressão que você entende melhor o que quisemos passar para os outros até melhor do que nós mesmos. Parabéns e obrigada

terça-feira, 5 de maio de 2020

GUERRA ESTÁ NA MODA

Descobri agora que Guerra e Paz, o livro de Tolstói, virou moda neste período de quarentena. Tem matéria na FSP de hoje, com Fernanda Torres, com quem não simpatizo nem um bocadinho, contando sua experiência de ter lido o clássico. O curioso é que, assim como ela, comecei a ler Guerra e Paz em um contexto completamente solto do atual. Peguei pra ler em dezembro do ano passado, ao encontrar uma edição barata - quase de graça - no kindle. 1 real. Guerra e Paz a 1 real. Por que não? Lá me fui.
Até eu descobrir que aquilo era uma edição condensada e em tradução para o português de Portugal levou um tempo. Mas eu não queria encarar a tradução célebre agora no Brasil, publicada primeiro pela Coscac Naif, que fechou, e comprada e relançada pela Cia das Letras. Porque cheguei a pegar um exemplar na Biblioteca da Câmara, levei pra casa e quem acabou lendo (isso acontece frequentemente) foi Rejane Medeiros antes de mim. E reclamou dos trechos em francês. Mais tarde, nossa querida Ana Luiza Camara me contaria que passou pelo mesmo problema. Ambas largaram o livro.
Lembrei então de uma outra tradução, baratinha também, pela L&PM em livros que eles chamam "de bolso". Vá lá. 4 volumes.Só que meio difíceis de achar todos na mesma livraria. Comprei o volume 2, que correspondia ao trecho em que me achava no falso-português do kindle. Foi como uma revelação. Num instante consegui distinguir as famílias, os agrupamentos, os conflitos e principalmente as ideias - porque Guerra e Paz é como um filme feito em vários formatos. É como Oliver Stone naquele filme sobre uma dupla de malfeitores pop-modernosos cujo nome me escapa. Ou como no JFK pra ficar no mesmo cineasta. De uma cena pra outra ele muda a fotografia, o enquadramento, a granulação, o uso ou não de cor.
Assim é Guerra e Paz, ora é romanção descarado (daí Fernanda Torres dizer que parece uma novela das oito, e em grande parte está certa), ora é um ensaio sobre questões militares, daqui a pouco passa a ser um texto absolutamente questionador sobre a teoria da História (viu, Flavia Assaf, vai lá, se é que já não foi), daqui a pouco pega um caminho algo místico elaborando toda uma filosofia sobre transcendência e moralidade e por aí vai. Isso às vezes assim de um capítulo para o outro (o formato geral é bem fragmentado, de capítulos curtos num livro longo), sem preparar o leitor com transição alguma. E tem essa coragem a que a atriz também se refere de fazer de figuras histórias como Napoleão - talvez o principal personagem do livro - em figuras ficcionáveis com base no que Tolstói achava não só dele, mas do que pensavam sobre ele, erroneamente ainda segundo o autor.
Mas voltando à vaca fria, comecei a lei por essa curiosidade, contando que teria bastante tempo por causa das férias que estavam começando, e num período em que ninguém ouvia falar em coronavírus. Veio a pandemia e eu lá preso no livro (não totalmente porque quem conhece o Leitor Bagunçado sabe que ele é tão impaciente que lê vários ao mesmo tempo), misturando fanatismo por Napoleão com nossa mais que primitiva atração brazuca por Bolsonero, o abandono de Moscou com o cerco da pandemia, as dúvidas adolescentes de Natasha com a lembrança também remota do drama da Anna Karenina cujo primeiro volume eu havia lido décadas atras (e a quem preciso, agora, reencontrar).
Só agora lendo não apenas Guerra e Paz mas sobretudo o comentário final que a edição da L&PM traz entendi melhor todo aquele ensaio desesperado que Dostoievski compõe em Memórias do Subsolo, e que me solapou totalmente também anos atrás. Neste posfácio, Tolstói comenta que a literatura russa jamais vai ser ater aos formatos consagrados do romance europeu, diz que aquilo que escreveu não é só uma narrativa, também não é só uma dissertação e por aí vai. Eles já eram assim, eu é que não notava. Minha curiosidade pelos autores russos foi às esferas e só por isso não devo sentir tanta falta assim de todo dia após o café da manhã ler um pouquinho do Guerra e Paz, guardando o ouro pra mais tarde à noite, após o trabalho.
E numa hora inesperada Rejane veio me dizer que o livro se tornara um dos mais procurados nas livrarias que entregam volumes em casa, segundo uma reportagem que ela leu no Globo. Foguetões soem na noite das letras. Em meio a tanta escuridão, há uma velha forma de luz sendo renovada. É pra comemorar em meio às trevas.

P.S . Não adianta eu colocar o link pra matéria de hoje da FSP porque nem todo mundo terá acesso. Lamentavelmente.