segunda-feira, 14 de junho de 2021

BOB EM CARNAÚBA

 

 Até o dia 21 de maio passado, octogenário era um ser digno dessa palavra esdrúxula, pesada, esmagadora. Um homem ou uma mulher de 80 anos era como um velhinho ou uma idosa num fim de tarde triste numa praça em Carnaúba dos Dantas, no Seridó potiguar, contemplando em sua magreza ou obesidade irrefreável de resto de vida um retrato restrito do mundo que por tanto tempo habitara, e como passara rápido, e o tanto que poderia ter feito e não fez, e considerações do tipo.

As crianças por acaso caminhando na direção da escola mais próxima eram uma piada daquele senhor tão bonito – o Tempo. Os bebuns ocasionais diante dos “boinhos” salpicados em torno da praça eram uma lembrança das horas perdidas ou um aviso inútil àquela altura de escolhas que deram errado. “Boinho”, na linguagem de Acari ali próxima, é o mesmo que cigarreira, fiteiro ou outras denominações regionais – barraquinhas que vendem de cigarros a cerveja em lata. Os “boinhos” largados na tranquilidade algo tediosa de um fim de tarde em uma praça municipal de uma pequena cidade do interior combinam com os octogenários de antanho. Mas, como dizia, tudo isso mudou no último dia 21.

Foi como se naquele dia tivesse descido de um ônibus Jardinense – desses que viaja não nas estradas físicas, mas nas rotas do tempo – um certo Roberto, nos seus 80 anos. Irinel, Bernardo, Joaquim, Manoel, homens de 80 anos costumam ter nomes assim, de maneira que um Roberto dessa idade desembarcar na praça de Carnaúba já é algo incomum a partir do próprio nome desse passageiro do tempo que, no entanto, é nosso contemporâneo, sim. Não veio nem do futuro nem de Marte. Veio de um planeta paralelo que existe numa segunda dimensão visível apenas para quem cultiva a verdadeira juventude aqui mesmo neste astro redondo – sim, redondo – a gravitar em torno do Sol.

Pra ser mais exato, nem era Roberto. Era Robert mesmo, mas pode abreviar para Bob, por mais esquisito que soe a palavra numa praça em Carnaúba dos Dantas, aos pés do Monte do Galo, dentro da atmosfera tão pouco gringa do quadrilátero simbólico formado entre as cidades de Caicó, Parelhas, Currais Novos e Acari. Pois naquela data Bob Dylan, o próprio, desceu do Jardinense e foi conferir pessoalmente o panorama em volta, com seus boinhos, seus bebuns, o comércio local, o belo prédio escolar numa das laterais, as redes estendidas em estampas variadas à venda, as barracas de mosquiteiros cor de rosa, a algaravia de um dia de feira, as caminhonetes em disparada, as muitas e muitas motos e bicicletas, as mocinhas de short, os gaiatos – os jokermen do sertão.

Mr. Dylan podia parecer estranho, mas não o era totalmente. Afinal, naquele dia mesmo estava completando 80 anos de vida. Um octogenário, pois não? Ao atingir essa idade – a partir de uma geração em que morrer aos 27 chegou a parecer entre um presságio e uma lei, vide Janis Joplin, Jimi Hendrix e  Jim Morrison – o homem velho que deixa vida e morte para trás reescreveu a essência dessa faixa etária, injetando nela a juventude de que sempre e tanto precisamos.

Com Bob Dylan chegando a esta marca, 80 anos necessariamente passam a ser outra coisa. A palavra octogenário perde o sentido. Esqueça o velhinho ou a senhora idosa no ocaso triste da praça em Carnaúba. Instale imediatamente neste lugar a figura do trovador folk, do jovem de cabelos qualquer-coisa que com suas letras coalhadas de imagens inesperadas e reflexões oportunas, sua filosofia pop-musical de fina extração poética, inscreveu-se na linha do nosso tempo a ponto de passar das fitas k-7 para o prêmio Nobel, fundindo na mesma e rara matéria literatura incidental, show bussiness e contracultura. Não são muitos os que conseguem medir a alquimia correta dessa mistura incerta.


Ao fazer 80 anos, Bob Dylan, para usar uma palavra da moda, ressignificou o conceito de juventude. Estendeu-o para muito mais à frente. Os 80 são os novos 50. Isso já vinha ocorrendo, mas quando um ser humano da estatura existencial dele atinge essa marca – sobretudo vindo da geração de onde partiu, do meio onde se colocou e se firmou – torna-se aí sim um marco.



Imaginá-lo desembarcando de um Jardinense que viaja através do tempo e o deixa saltar numa praça em Carnaúba dos Dantas é apenas um exercício de composição para fixar a relevância desse acontecimento. Agradeço à comunidade de Carnaúba por me oferecer seu cenário como ponto de apoio. Carnaúba não é melhor nem pior, mas sempre me pareceu uma cidade-cenário, um microcosmo que espelha e ao mesmo tempo sintetiza as demais ali próximas, já citadas aqui. Carnaúba poderia estar numa letra de Bob Dylan. Porque à maneira dela, a cidade contém o mundo, todo. Não vejo lugar melhor para expandir esses pensamentos sobre os novos 80 anos do que sua praça, seu comércio, sua gente, sua atmosfera.

A partir do momento em que Bob Dylan faz 80 anos e desembarca na praça de Carnaúba, torna-se possível, ou até necessário, ou talvez até obrigatório – caso a obrigatoriedade não fosse algo tão inconciliável com as ideias aqui expostas – considerar que a juventude começa no berço e só acaba no túmulo. Pra não falar das outras vidas, os demais planos. É menos uma questão de idade e de condições físicas – embora essas, claro, sejam um obstáculo – do que um estágio mental quiçá perpétuo, certamente constante, insistentemente mantido, teimosamente sustentado.

Carnaúba é toda sua, velho Dylan. Fique à vontade. Encoste num boinho e beba algo, aproveite a prosa de um poeta disfarçado de traste municipal. Há muitos casos assim. Talvez algum saxofone por perto toque um trecho de Royal Cinema e lhe inspire uma nova canção sobre o poder da juventude.

Mesmo aos 80 anos, sobra tempo pra você. O próximo Jardinense só sai às sete da noite.