sexta-feira, 27 de agosto de 2021

MEU ENCONTRO COM DEUS E O DIABO


 


 

Deus e o diabo entraram na minha vida numa noite do ano de 1984. Foram recebidos com aquele tipo de perplexidade que nunca deixa de render frutos, produzir resultados, estimular pensamentos e posicionamentos pessoais.

 

No imaginário, o lugar desse encontro era tanto um lajedo adornado por xiquexiques quanto o alto de um morro onde se pendurava em êxtase uma legião de romeiros. O deus que veio a mim naquele momento distendido com duas horas de duração era um líder religioso feito à imagem e semelhança de Antônio Conselheiro. O diabo era um arquétipo de cangaceiro cuja fúria dionisíaca ia muito além do tipo característico da economia social nordestina.

 

O local de fato desse encontro não foi uma capela católica nem uma igreja evangélica de periferia como as daqueles tempos pré-Universal do Reino de Deus. Nem uma praça de exercício político ou um inferninho digno da presença eventual do capeta. Foi num teatro.

 

Um teatro situado numa rua do hospício – e só isso já deveria ter servido de indicativo do que me aconteceria naquela noite que passou a ser um dos pontos de referência da minha vida besta. Rua do Hospício, bairro da Boa Vista, região central do Recife.

 

Foi no Teatro do Parque, amplo, à antiga, aquele onde Beatriz Segall parou de representar certa noite em meio a reclamações sobre o calor, que me encontrei com Deus e o Diabo. Não os de Roma ou das Igrejas. Mas os do filme de Glauber Rocha, o cineasta não menos dionisíaco que se bandeou para um céu infernal ou um inferno celeste há quarenta anos.

 

É curioso como a efeméride travessa cai sobre nossas cabeças quase cortadas num momento em que o Brasil não poderia ser/estar mais glauberiano – até no caráter de farsa. Quem teve acesso pleno à cinematografia de Glauber não sofre menos, mas talvez entenda melhor como chegamos a tal ponto.

 

Um ponto que sempre esteve ali, na esquina, à espera. Parece que o cinema de Glauber nunca deixou de nos soprar sobre essa possibilidade. Nós é que não captamos, abismados que estávamos com a estética mesma deste cinema tão ricamente composto, tão pleno de signos.

 

A profusão de signos embalados em “Deus e o Diabo” quase não me deixa dormir naquela noite do distante 84. A projeção acabou, a plateia foi pra casa e eu segui para a pensão onde morava, na Rua do Progresso – os nomes das ruas do Recife são quase estandartes de uma mapa carnavalesco.

 

Fui andando muito devagar porque a parte do meu corpo que mais fazia esforço naquele momento não eram as pernas – era o cérebro. Levei horas cotejando partes do filme, decupando cenas, elaborando minhas próprias teorias a partir dos elementos mil que Glauber Rocha me jogou na cara usando aquela tela de cinema como se fosse um canhão de ideias, constatações, possibilidades, contradições.

O Teatro do Parque na época era usado em algumas noites como sala de cinema para exibição de filmes raros como já era “Deus e o Diabo”. Estudante do primeiro ano de Comunicação em Recife, eu tive a sorte de assistir ao primeiro grande filme de Glauber Rocha numa projeção à altura, numa tela imensa, com som de excelência. Nada disso era muito fácil naquela época.

 

Hoje você pode ver ou rever “Deus e o Diabo” na hora em que quiser nas plataformas de streaming, DVD, os instrumentos são muitos. Naquele momento, o filme não estava à disposição com essa facilidade. Glauber Rocha, seu deus e seu diabo não poderiam ter encontrado  uma maneira mais retumbante de entrar na minha formação. Quisera todos os brasileiros tivessem tido essa oportunidade, com eu e meus colegas do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco naquela noite de 84.

 

Para efeito de comparação, lembro que somente anos depois pude ver pela primeira vez “Terra em Transe”. E vejam só: na telinha de uma TV de 14 polegadas na era do videocassete, já em Natal. E nem podia reclamar, porque ao menos tinha como conferir o filme de Glauber Rocha que se seguiu ao “Deus e o Diabo”.

 

Hoje, as cópias estão disponíveis, mas em compensação a cinemateca está em chamas; a arte demonizada; os canais da verdadeira expressão política propositadamente reduzidos, a riqueza cultural do país sem lugar para se mostrar com a grandeza que merece. Parece que nem às nossas contradições temos direito.

 

O fantasma de Glauber se projeta no céu do Brasil como aquela mãe apegada do episódio de Woody Allen no filme  “Contos de Nova York” cada vez que um patético brasileiro sem ideia do que seja nacionalidade veste verde-e-amarelo e sai em passeata sobre tanques imaginários.

 

O que diria disso tudo nosso Deus/Diabo em forma de cinema, desenhos, textos incansáveis, cartas que viraram uma biblioteca particular do pensamento brasileiro de então? O brasileiro-estandarte que foi o autor de “Deus e o Diabo” poderia achar até que não cabe mais alegoria nenhuma – hoje somos pobremente literais expressões do nosso pior retrato.

 

Meu inesquecível encontro com Deus e o Diabo é o que me segura diante do filme deplorável que passa todos dia na nossa janela.

 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O BEIJO DE AMOR DE MAURA E MARIGHELLA


 

Morar em Brasília tem dessas coisas. Estava à toa na vida andando entre a rodoviária do Plano Piloto e o Palácio do Congresso Nacional, buscando nem sei bem o quê naquele vasto espaço com ministérios de um lado e de outro como se fossem peças de um dominó gigante prestes a desabar uns sobre os outros quando um tanque vindo também não sei de onde me despejou uma baforada de fumaça tóxica narinas adentro. Ainda bem que eu estava de máscara. Mas nem sempre a obviedade da covid é o inimigo a postos na esquina mais próxima, caso esquinas houvesse. Fugi pra casa às pressas, confuso com a situação, mas outro susto me esperava ao abrir a porta do apartamento numa Asa Sul bucólica com seus jardins urbanos inimagináveis em qualquer outra capital caótica do país em desagregação: dei de cara com um casal aos beijos na minha sala de estar. Continuava tudo muito confuso, mas ainda assim eu era capaz de divisar os rostos em convusão naquele beijo francês de fim de novela: eram Carlos e Maura, o casal de guerrilheiros que a ficção e a realidade juntaram na mesma cena do meu pesadelo ocasional.

 É nisso que dá ler as trocentas páginas da biografia de Carlos Marighella em que Mário Magalhães, jornalista carioca, coleta, organiza e analisa as informações sobre o comunista brasileiro que atravessou duas ditaduras levando chibata no lombo sem recuar um milímetro nas suas ideias que, sistema político repressor ou libertário à parte, giravam em torno de mais igualdade social, menos miséria, mais civilidade política neste Brasil que nunca deixou de nos surpreender com pesadelos reais. Meu sonho mau certamente também é resultado das noites em que me pego maratonando os capítulos de Roda de Fogo, novela global de 1986 que causa uma dor inominável a quem cedeu ao apelo do Globoplay e se pôs a revê-la no streaming do até agora mui confuso e nem um pouco utópico século XXI.

 Nem a saída de cena mitológica deste Tarcísio Meira icônico para a história real e ficcional do país tem poder de causar tamanha ironia. Em Roda de Fogo, rodada justo no período em que o país elegia a assembléia constituinte que nos deu a carta de direitos sociais de 1988, cada diálogo pode ser um triste comentário cruel e involuntário sobre o futuro do então distante 2021. Maura era Eva Wilma, outra perda do duro presente, representando com sua habitual maestria uma ex-guerrilheira urbana que, como poucos, sobreviveu à repressão policial do período após sucumbir à resistência armada que o fechamento de todos os canais de expressão política decretara. Ela volta ao Brasil tremendo de medo – imagine se Maura pudesse sonhar minimamente com o futuro, assim como cada um dos brasileiros que assistiram à exibição original em 1986 – de que aquela conversa toda de redemocratização fosse só de brincadeirinha. O trauma da tortura estava por trás de cada fala da personagem e, sim, ela vai, como ocorreu de fato com a também atriz e então deputada Bete Mendes, dar de cara um  dia com seu torturador em pessoa. E não é o general Hélio d’Àvila, uma caricatura perfeita que os autores montaram para zoar os militares em retirada  mas que, as ironias não param, lembra muito vários dos que estão em cena no governo em vigor. Mas a fumaça do tanque soprada no meu nariz perdido num pesadelo ao menos mostram que, se o inacreditável se realizou, também o fez dessa maneira tosca e mambembe, com a profusão de Pazuellos tão arrogantes quanto atrapalhados, pra não falar no chefe, que tisna a bandeira de qualquer ordem ou instituição.

 

 Marighella, o mulato baiano filho de preta com italiano que resultou num caso típico de brasileiro de seu tempo e lugar, impressiona pela capacidade de resistência. Ele não tem o pavor nem um pouco fictício de uma Maura e sim a pele grossa capaz de reter as chibatadas de mais de uma ditadura e só cair diante da última delas num cerco que fez do interior de um fusca um paredão de fuzilamento.  Passa quase que uma vida inteira nos desvãos da clandestinidade e ainda assim emite, das sombras, uma luz carismática que o faz querido até fora do círculo da política de fato. Por um curto período, arradia publicamente essa capacidade de se fazer notar como constituinte de outra assembléia progressista – a maior que tivemos nesse quesito, quase ao ponto da ilusão em relação ao país em que funcionava, e que daria origem às Constituição de 46, a mais odiada pelos refratários ao progresso igualitário.

 Foi esse casal nem um pouco imprevisível que encontrei aos beijos na minha sala, ambiente que devem ter julgado seguro em 2021, sem saber que lá fora grassa uma ordem caótica e destrutiva que tenta emular os miasmas de ditaduras de antanho. Acordei do sono ruim e do pesadelo inesperado com o som da televisão ligada, dando a notícia da morte do Tarcísio Meira que também está nesta Roda de Fogo que ri da gente do fundo da tela plana de alta definição, como se dissesse pra gente do lado de cá e de hoje, cuidado, vá com calma, 1986 lhe observa. É como se Renato Vilar, o empresário grosseiro de Tarcísio Meira naquela história, cobrasse ao telespectador abobalhado: o que vocês, imbecis, fizeram com toda aquela esperança do meu tempo? Meremos o puxão de orelha, e como. Com uma ironia suplementar: a novela elegia um empresário com paradigma de corrupção – ele e seu entorno, formando por financistas vorazes e advogados comprados. Sempre foi mais fácil culpar os políticos, pois não?

Parece provocação do sistema Globo insatisfeito com a forma como o governo que ajudou a eleger indiretamente o tem tratrado essa reedição em streaming de Roda de Fogo. Tem muito a dizer à época atual, assim como a biografia escrita por Magalhães. Leia o livro, veja a novela, use máscara contra a fumaça e saiba reconhecê-la nas tantas vezes em que tem sido usada para disfarçar o mau cheiro do desmonte do país. No diólogo entre os anos passados e o tempo atual, 86 menos 64 é igual a 21 – a matemática da história brasileira segue uma aritmética diversa.  Quisera pudéssemos maratonar a realidade, acelerando a montagem desse filme ruim. Mas temos que nos contentar com a reexibição de um passado que grande parte da população – que a viveu de fato e tem idade para lembrar – preferiu esquecer, quando não ignorar. O pesadelo continua, quer você siga dormindo ou faça a opção de permanecer acordado.