terça-feira, 20 de abril de 2021

CIDADES IMAGINÁRIAS

 



Giancaldo fica bem distante de Império. Milhas e milhas e milhas. Não só no espaço, mas também no tempo. Estive nessas duas cidades e é bem possível que vocês que me lêem também tenham passado por suas ruas – desertas e abandonadas num caso, pobres mas vibrantes no outro.

 Giancaldo é uma cidade siciliana e quando lá estive, ou quando lá retorno, o que acontece sempre, posso estar nos anos 50 sob os efeitos da guerra encerrada em 45 ou no final dos anos 80. Império é um  lugar que já foi rico, produtivo, abastado,  modelo capitalista em algum ponto dos Estados Unidos. Mas quando lá estive, nesse fim de semana, encontrava-se largada por tudo e por todos desde que seu princicipal motivo de existir, uma fábrica de alguma coisa essencial, alguma matéria industrial vital para o país, perdeu a importância e foi fechada.

Não pego avião, navio, nave espacial, teletransporte ou qualquer outro meio de deslocamento desse tipo para estar nessas duas cidades. Minha passagem para ambas é uma sala de cinema ou um aparelho de blue-ray. A tela se ilumina e eis Giancaldo mais uma vez à minha frente. As luzes da sala de exibição se apagam e surgem a penumbra gelada do que restou de Império.

 Na primeira, descer desse trem imaginário significa viver mais uma vez as aventuras de Totó e Alfredo, num dos melodramas mais completos que você poderia esperar de um cinema melodramático por natureza, o italiano. Na segunda cidade, parece que quase não há chão a pisar, como se a própria base física do lugar tivesse se exterminado ao mesmo tempo em que linhas de produção e sobretudo empregos desapareceram quando um sistema inteiro deu aquele piscar de olhos que delimita o fim de uma era de properidade e o início de tempos de absoluta decadência.

Vou para Giancaldo sempre que revejo Cinema Paradiso, filme de Giuseppe Tornatore de 1988. Estive em Império a partir do momento em que entrei numa sala de exibição para assistir a Nomadland, concorrente ao Oscar 2021 dirigido por Chloé Zao com a sempre produtiva Frances McDormand. Entre ambas, distantes no tempo e no espaço, descubro um outro paralelo que, contrariando a natureza dos paralelos, resulta em uma improvável união.

 

Explico: se Cinema Paradiso é pra mim – e para muitos – um caso perfeito a evocar a natureza de deslumbramento que a sétima arte representa, Nomadland é o seu oposto. E no entanto, ambos são cinema: forte, expressivo, marcante. Não importa se um é puro encatamento banhado com lágrimas e pra comprovar isso eu só preciso lembrar a cena final de Paradiso com aquela sequência de beijos vetados. Com também não importa se o outro é pura realidade sem disfarce ou camada de atenuante que o faça parecer menos incômodo, e para comprovar basta lembrar as cenas só aparentemente gratuitas em que McDormand exercita o mais primário dos atos humanos sem o qual é impossível permanecer vivo.

 Aqui temos McDormand defecando em cena de um filme que documenta o nomandismo econômico de populações empurradas do tabuleiro do mercado de trabalho convencional. Atores e não-atores da realidade social que mais parecem estampas desbotadas a ilustrar as fissuras de um capitalismo cruel. Ali temos um cineasta consagrado retornando à cidade natal onde não pusera os pés por décadas apenas para renovar em si mesmo a qualidade mágica do cinema mais elementar, aquele que necessariamente trabalha com o encantamento de quem quer ir além do próprio povoado e para isso só conta com uma tela branca numa sala escura.

 

Paradiso é a mais bela e tocante ilustração do poder do cinema quando entra pelos olhos e causa aquele deslocamento definitivo na alma. Nomadland é o mais triste retrato a mostrar como este mesmo cinema, múltiplo, também se presta com poucas outras obras de arte a abrir os olhos e instalar no âmago de cada um a consciência de um mundo em desagregação. Uma nação dada por rica, primeiro mundo, mas onde se pode trabalhar uma vida inteira pra acabar com uma aposentadoria irrisória que não cobre nem mesmo o custo de um teto, um prato e um remédio no mesmo orçamento pessoal.



Há pobreza em ambos, sim, mas o grande cinema nunca é farisaico, insensível. Num caso, em Cinema Paradiso, nos imiscuimos numa comunidade sem recursos materiais e mesmo assim chegamos às raias do delírio – o paraíso perdido do clichê mais gasto. No outro, em Nomadland, apesar do poder comunitário que coliga e à sua maneira até renova os ejetados do sistema, contemplamos o incômodo mais perturbador – como se fora um filme de terror sem necessidade de monstros.

 Um pêndulo invisível joga plateias atentas para lá e para cá ao ritmo do balanço de filmes como esses. E é possível rever Cinema Paradiso num dia e entrar numa sala que exibe Nomadland no outro. Sua cinemateca particular encontra lugar para todos – e sua humanidade se desdobra, seja na expansividade maravilhosa de um ou na concisão silenciosa e restritiva do outro. Não há beleza em Nomadland: mesmo as paisagens que podem envocar algum enlevo a direção teve o cuidado de borrifar com uma camada de cor a menos, um borrão que descaracteriza. Não há um still de Cinema Paradiso, mesmo quando você já cansou de ver e rever o filme, ou sobretudo nessa situação, que não evoque na saturação de cor, na pigmentação viva das emoções, uma elevação audiovisual que deixa o espírito em festa.

 

E mesmo tão diferentes, esses dois filmes podem estar tão próximos. Amarguras diversas se comunicam, realidades sociológicas se deixam expressar, parábolas vagam na atmosfera que ambos projetam em torno do seu público. Por isso a Giancaldo mediterrânea e sua girândola de fatos e pessoas pode estar tão perto, evocar por exemplo um Seridó arcaico a ponto de facilitar seu choro inevitável ao final da sessão. Assim como a dureza fria da Império norte-americana pode ser um vizinho incômodo prestes a se manifestar na desordem econômica que a própria pandemia aí fora veio colocar em questão de uma maneira jamais imaginada.

 Em que planeta você vive? Que cidades passaram pela sua vida com o poder desses lugares que o cinema criou ou recriou à sua maneira? Sempre poderemos fugir para uma delas – ou  tantas outras, como a Rimimi de Federico Fellini, ou a Porto Alegre remota de um velho episódio de Teixeirinha, permita – e lá identificar os encantos e as falências que nos cercam, nos aguardam, nos refestelam ou nos fazem chorar. O cinema é esta cidade imaginária que nos serve de refúgio mas não nos deixa esquecer de todo o mal que por ventura tenha ficado além da bilheteria e das lindas salas de espera que nem existem mais.