domingo, 29 de setembro de 2013

Música ao longe


Brejeiro é o adjetivo que remete ao habitante das regiões chamadas de brejos, latitudes aquosas em meio a geografias habitualmente secas. A Paraíba tem um famoso brejo com o qual me familiarizei desde criança, não por conhecê-lo mas pelas quase diárias referências que meu pai, vendedor de mangaio por profissão, fazia a tal lugar. O brejo paraibano é uma região úmida e fria instalada nos costados altos de um estado que, de fato e simbolicamente, para todos evoca a imagem de um Nordeste árido. Mas o adjetivo brejeiro - que meu pai usava e abusava quando queria descrever certo tipo de pessoa pelo comportamento particular que apresentava, alguma coisa entre o sinuoso e o desconfiado (mas isso eu vim a entender melhor bem mais tarde, como explico ao final*) - ganhou outra conotação. Especialmente quanto aplicado à condição feminina, essa tal brejeirice tem a ver com um muito especial tipo de beleza regionalizada, quase uma etnia estética à parte, apegada às morenices de algumas regiões brasileiras, palavra que emula cheiros doces, peles retocadas pelo sol, e uma sensualidade imanente que surge pespegada a essa brasileira mesmo quando ela se ocupa das mais comezinhas tarefas do dia-a-dia. Pense na matas da Costa do Cacau baiana ou numa pequena enseada em Touros, no litoral potiguar, e você começará as ser tomado por essa atmosfera.

A brejeira é como a cabocla do romance que virou novela mais de uma vez. É como a Gabriela cravo e canela da mãe Bahia. É prima da guria dos gaúchos, numa linhagem que vai se ramificando pelo vasto país. Mas essa evocação sobre brejos primordiais como os romances de Jorge Amado está aqui a propósito não exatamente de uma especulação sobre a beleza física das brasileiras mais enraizadas e sim por causa de um outro elemento fortemente fincado nos solos que divididos da Amazônia aos pampas: a música. Dois discos lançados ainda recentemente trazem a música daquele que é pra mim o mais brejeiro dos artesãos instrumentais do Brasil. E aqui o adjetivo brejeiro precisa estar bem situado para não incorrer em significados menos exatos: é algo acima do tão esforçado e sempre tão menosprezado "cantor da terra" mas um tom abaixo de certa musicalidade hermética que se fecha na técnica e se reprime de emoções. Sem mais partituras vãs, aqui se fala de Dori Caymmi, arranjador de sucesso e cantor de extensão própria e timbre telúrico - e sim, eu sei, a conversa parece se referir mais ao outro Caymmi, seu pai. Todo poder a Dorival pai, mas é que o som de Dori filho me fala mais diretamente às células auditivas, talvez pelo fato de estar mais próximo da minha geração. Ou, dito de outro jeito: me fala de forma diferente e independente do classicismo paterno. Não gosto dessas coletâneas que juntam num mesmo disco os "sucessos" de um determinado artista, mas aqui e ali, por uma questão meramente prática, adquiro uma. E o assunto aqui é precisamente este "Dori Caymmi - O Cantador", que tem o benefício de trazer em 14 faixas "o melhor" do músico, alguma coisa difícil de conseguir de outra maneira, visto que a discografia deste filho de Dorival não é nada fácil de encontrar nas lojas, ainda mais agora nesta era de muitos downloads e poucos produtos físicos à venda. Em Natal, na mais recente temporada de férias, achei num sebo do Beco da Lama um LP de Dorival, original, que comprei com a avidez de quem adquire um stradivarius com número de série. Na casa de Titina e César, botei o bicho pra tocar e quase caio da banqueta em que estava sentado quando ouvi os primeiros versos de "Desafio" ("Éramos eu e um cavalo / No seu galope macio / Pulando cerca de arame, pisando morro de pedra, andando em leito de rio"). Na viagem para Brasília, de carro, não sei como, o disco sumiu. Pra minha sorte, foi lançada essa coletânea que contém, além da canção que até hoje me lembra a adaptação para a televisão do meu romance preferido de Jorge Amado ("Terras do sem fim"), outra brejeirices clássicas e de composição absolutamente perfeita, como "Na ribeira desse rio" e a não menos impressionante "Desenredo", com aquela sua perolada tristeza lusitana a reunir todas as dores do mundo no silêncio das Geraes ("Ê, Minas, ê, Minas / É hora de partir, eu vou / Vou me embora pra bem longe"). 


É como se eu tivesse recuperado o disco original perdido na viagem - mas na verdade eu bem que gostaria de esbarrar nele qualquer dia entre os cacarecos de casa. Só que minha sorte não havia acabado, ou, posso dizer, nossa sorte, caso o leitor se interesse por esse cancioneiro tão sensível e sofisticado em sua aparente simplicidade e saia também em busca de tais discos. Digo tais discos porque o segundo lance de sorte foi o lançamento deste outro "Caymmi", disco que Dori fez com os irmãos Nana e Danilo para lembrar o pai, dando prioridade a canções menos conhecidas. O danado mesmo é chamar de "menos conhecida" qualquer canção de Dorival, dono de tal brejeirice nas veias que qualquer coisa que compunha já saía do violão com cara não diria nem de clássico, mas de algo muito mais ligado à terra que nos habita tanto quanto a habitamos: fosse ela qual fosse, já era uma música com cara de "domínio público" - aqueles coisas tão retocadas em sua exatidão simplificada que à primeira audição soa como cantigas que, transmitidas de geração a geração, têm autoria tão remota quando difícil de descobrir. É uma música de vem dos céus e parece cruzar o corpo, as mãos e o violão de Dorival como um raio benfazejo, diluindo-se numa músicalidade chuvosa que nos molha a todos, brasileiros cientes das nossas mais atávicas origens (basta ouvir a buliçosa "Balaio grande", no pot-pourri de abertura). Não é mesmo por acaso que seu filho Dori, cujos discos infelizmente não se encontram assim-assim nas prateleiras das lojas de CDs que restaram, é pra mim esse mais brejeiro dos músicos da Terra de Santa Cruz.  

*Há estudos antropológicos que explicam a desconfiança mútua entre "brejeiros" e "sertanejos" no cenário paraibano - e este é também um tema predominante no clássico romance "A bagaceira", de José Américo de Almeida". 

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