sexta-feira, 27 de agosto de 2021

MEU ENCONTRO COM DEUS E O DIABO


 


 

Deus e o diabo entraram na minha vida numa noite do ano de 1984. Foram recebidos com aquele tipo de perplexidade que nunca deixa de render frutos, produzir resultados, estimular pensamentos e posicionamentos pessoais.

 

No imaginário, o lugar desse encontro era tanto um lajedo adornado por xiquexiques quanto o alto de um morro onde se pendurava em êxtase uma legião de romeiros. O deus que veio a mim naquele momento distendido com duas horas de duração era um líder religioso feito à imagem e semelhança de Antônio Conselheiro. O diabo era um arquétipo de cangaceiro cuja fúria dionisíaca ia muito além do tipo característico da economia social nordestina.

 

O local de fato desse encontro não foi uma capela católica nem uma igreja evangélica de periferia como as daqueles tempos pré-Universal do Reino de Deus. Nem uma praça de exercício político ou um inferninho digno da presença eventual do capeta. Foi num teatro.

 

Um teatro situado numa rua do hospício – e só isso já deveria ter servido de indicativo do que me aconteceria naquela noite que passou a ser um dos pontos de referência da minha vida besta. Rua do Hospício, bairro da Boa Vista, região central do Recife.

 

Foi no Teatro do Parque, amplo, à antiga, aquele onde Beatriz Segall parou de representar certa noite em meio a reclamações sobre o calor, que me encontrei com Deus e o Diabo. Não os de Roma ou das Igrejas. Mas os do filme de Glauber Rocha, o cineasta não menos dionisíaco que se bandeou para um céu infernal ou um inferno celeste há quarenta anos.

 

É curioso como a efeméride travessa cai sobre nossas cabeças quase cortadas num momento em que o Brasil não poderia ser/estar mais glauberiano – até no caráter de farsa. Quem teve acesso pleno à cinematografia de Glauber não sofre menos, mas talvez entenda melhor como chegamos a tal ponto.

 

Um ponto que sempre esteve ali, na esquina, à espera. Parece que o cinema de Glauber nunca deixou de nos soprar sobre essa possibilidade. Nós é que não captamos, abismados que estávamos com a estética mesma deste cinema tão ricamente composto, tão pleno de signos.

 

A profusão de signos embalados em “Deus e o Diabo” quase não me deixa dormir naquela noite do distante 84. A projeção acabou, a plateia foi pra casa e eu segui para a pensão onde morava, na Rua do Progresso – os nomes das ruas do Recife são quase estandartes de uma mapa carnavalesco.

 

Fui andando muito devagar porque a parte do meu corpo que mais fazia esforço naquele momento não eram as pernas – era o cérebro. Levei horas cotejando partes do filme, decupando cenas, elaborando minhas próprias teorias a partir dos elementos mil que Glauber Rocha me jogou na cara usando aquela tela de cinema como se fosse um canhão de ideias, constatações, possibilidades, contradições.

O Teatro do Parque na época era usado em algumas noites como sala de cinema para exibição de filmes raros como já era “Deus e o Diabo”. Estudante do primeiro ano de Comunicação em Recife, eu tive a sorte de assistir ao primeiro grande filme de Glauber Rocha numa projeção à altura, numa tela imensa, com som de excelência. Nada disso era muito fácil naquela época.

 

Hoje você pode ver ou rever “Deus e o Diabo” na hora em que quiser nas plataformas de streaming, DVD, os instrumentos são muitos. Naquele momento, o filme não estava à disposição com essa facilidade. Glauber Rocha, seu deus e seu diabo não poderiam ter encontrado  uma maneira mais retumbante de entrar na minha formação. Quisera todos os brasileiros tivessem tido essa oportunidade, com eu e meus colegas do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco naquela noite de 84.

 

Para efeito de comparação, lembro que somente anos depois pude ver pela primeira vez “Terra em Transe”. E vejam só: na telinha de uma TV de 14 polegadas na era do videocassete, já em Natal. E nem podia reclamar, porque ao menos tinha como conferir o filme de Glauber Rocha que se seguiu ao “Deus e o Diabo”.

 

Hoje, as cópias estão disponíveis, mas em compensação a cinemateca está em chamas; a arte demonizada; os canais da verdadeira expressão política propositadamente reduzidos, a riqueza cultural do país sem lugar para se mostrar com a grandeza que merece. Parece que nem às nossas contradições temos direito.

 

O fantasma de Glauber se projeta no céu do Brasil como aquela mãe apegada do episódio de Woody Allen no filme  “Contos de Nova York” cada vez que um patético brasileiro sem ideia do que seja nacionalidade veste verde-e-amarelo e sai em passeata sobre tanques imaginários.

 

O que diria disso tudo nosso Deus/Diabo em forma de cinema, desenhos, textos incansáveis, cartas que viraram uma biblioteca particular do pensamento brasileiro de então? O brasileiro-estandarte que foi o autor de “Deus e o Diabo” poderia achar até que não cabe mais alegoria nenhuma – hoje somos pobremente literais expressões do nosso pior retrato.

 

Meu inesquecível encontro com Deus e o Diabo é o que me segura diante do filme deplorável que passa todos dia na nossa janela.

 

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

O BEIJO DE AMOR DE MAURA E MARIGHELLA


 

Morar em Brasília tem dessas coisas. Estava à toa na vida andando entre a rodoviária do Plano Piloto e o Palácio do Congresso Nacional, buscando nem sei bem o quê naquele vasto espaço com ministérios de um lado e de outro como se fossem peças de um dominó gigante prestes a desabar uns sobre os outros quando um tanque vindo também não sei de onde me despejou uma baforada de fumaça tóxica narinas adentro. Ainda bem que eu estava de máscara. Mas nem sempre a obviedade da covid é o inimigo a postos na esquina mais próxima, caso esquinas houvesse. Fugi pra casa às pressas, confuso com a situação, mas outro susto me esperava ao abrir a porta do apartamento numa Asa Sul bucólica com seus jardins urbanos inimagináveis em qualquer outra capital caótica do país em desagregação: dei de cara com um casal aos beijos na minha sala de estar. Continuava tudo muito confuso, mas ainda assim eu era capaz de divisar os rostos em convusão naquele beijo francês de fim de novela: eram Carlos e Maura, o casal de guerrilheiros que a ficção e a realidade juntaram na mesma cena do meu pesadelo ocasional.

 É nisso que dá ler as trocentas páginas da biografia de Carlos Marighella em que Mário Magalhães, jornalista carioca, coleta, organiza e analisa as informações sobre o comunista brasileiro que atravessou duas ditaduras levando chibata no lombo sem recuar um milímetro nas suas ideias que, sistema político repressor ou libertário à parte, giravam em torno de mais igualdade social, menos miséria, mais civilidade política neste Brasil que nunca deixou de nos surpreender com pesadelos reais. Meu sonho mau certamente também é resultado das noites em que me pego maratonando os capítulos de Roda de Fogo, novela global de 1986 que causa uma dor inominável a quem cedeu ao apelo do Globoplay e se pôs a revê-la no streaming do até agora mui confuso e nem um pouco utópico século XXI.

 Nem a saída de cena mitológica deste Tarcísio Meira icônico para a história real e ficcional do país tem poder de causar tamanha ironia. Em Roda de Fogo, rodada justo no período em que o país elegia a assembléia constituinte que nos deu a carta de direitos sociais de 1988, cada diálogo pode ser um triste comentário cruel e involuntário sobre o futuro do então distante 2021. Maura era Eva Wilma, outra perda do duro presente, representando com sua habitual maestria uma ex-guerrilheira urbana que, como poucos, sobreviveu à repressão policial do período após sucumbir à resistência armada que o fechamento de todos os canais de expressão política decretara. Ela volta ao Brasil tremendo de medo – imagine se Maura pudesse sonhar minimamente com o futuro, assim como cada um dos brasileiros que assistiram à exibição original em 1986 – de que aquela conversa toda de redemocratização fosse só de brincadeirinha. O trauma da tortura estava por trás de cada fala da personagem e, sim, ela vai, como ocorreu de fato com a também atriz e então deputada Bete Mendes, dar de cara um  dia com seu torturador em pessoa. E não é o general Hélio d’Àvila, uma caricatura perfeita que os autores montaram para zoar os militares em retirada  mas que, as ironias não param, lembra muito vários dos que estão em cena no governo em vigor. Mas a fumaça do tanque soprada no meu nariz perdido num pesadelo ao menos mostram que, se o inacreditável se realizou, também o fez dessa maneira tosca e mambembe, com a profusão de Pazuellos tão arrogantes quanto atrapalhados, pra não falar no chefe, que tisna a bandeira de qualquer ordem ou instituição.

 

 Marighella, o mulato baiano filho de preta com italiano que resultou num caso típico de brasileiro de seu tempo e lugar, impressiona pela capacidade de resistência. Ele não tem o pavor nem um pouco fictício de uma Maura e sim a pele grossa capaz de reter as chibatadas de mais de uma ditadura e só cair diante da última delas num cerco que fez do interior de um fusca um paredão de fuzilamento.  Passa quase que uma vida inteira nos desvãos da clandestinidade e ainda assim emite, das sombras, uma luz carismática que o faz querido até fora do círculo da política de fato. Por um curto período, arradia publicamente essa capacidade de se fazer notar como constituinte de outra assembléia progressista – a maior que tivemos nesse quesito, quase ao ponto da ilusão em relação ao país em que funcionava, e que daria origem às Constituição de 46, a mais odiada pelos refratários ao progresso igualitário.

 Foi esse casal nem um pouco imprevisível que encontrei aos beijos na minha sala, ambiente que devem ter julgado seguro em 2021, sem saber que lá fora grassa uma ordem caótica e destrutiva que tenta emular os miasmas de ditaduras de antanho. Acordei do sono ruim e do pesadelo inesperado com o som da televisão ligada, dando a notícia da morte do Tarcísio Meira que também está nesta Roda de Fogo que ri da gente do fundo da tela plana de alta definição, como se dissesse pra gente do lado de cá e de hoje, cuidado, vá com calma, 1986 lhe observa. É como se Renato Vilar, o empresário grosseiro de Tarcísio Meira naquela história, cobrasse ao telespectador abobalhado: o que vocês, imbecis, fizeram com toda aquela esperança do meu tempo? Meremos o puxão de orelha, e como. Com uma ironia suplementar: a novela elegia um empresário com paradigma de corrupção – ele e seu entorno, formando por financistas vorazes e advogados comprados. Sempre foi mais fácil culpar os políticos, pois não?

Parece provocação do sistema Globo insatisfeito com a forma como o governo que ajudou a eleger indiretamente o tem tratrado essa reedição em streaming de Roda de Fogo. Tem muito a dizer à época atual, assim como a biografia escrita por Magalhães. Leia o livro, veja a novela, use máscara contra a fumaça e saiba reconhecê-la nas tantas vezes em que tem sido usada para disfarçar o mau cheiro do desmonte do país. No diólogo entre os anos passados e o tempo atual, 86 menos 64 é igual a 21 – a matemática da história brasileira segue uma aritmética diversa.  Quisera pudéssemos maratonar a realidade, acelerando a montagem desse filme ruim. Mas temos que nos contentar com a reexibição de um passado que grande parte da população – que a viveu de fato e tem idade para lembrar – preferiu esquecer, quando não ignorar. O pesadelo continua, quer você siga dormindo ou faça a opção de permanecer acordado.

segunda-feira, 14 de junho de 2021

BOB EM CARNAÚBA

 

 Até o dia 21 de maio passado, octogenário era um ser digno dessa palavra esdrúxula, pesada, esmagadora. Um homem ou uma mulher de 80 anos era como um velhinho ou uma idosa num fim de tarde triste numa praça em Carnaúba dos Dantas, no Seridó potiguar, contemplando em sua magreza ou obesidade irrefreável de resto de vida um retrato restrito do mundo que por tanto tempo habitara, e como passara rápido, e o tanto que poderia ter feito e não fez, e considerações do tipo.

As crianças por acaso caminhando na direção da escola mais próxima eram uma piada daquele senhor tão bonito – o Tempo. Os bebuns ocasionais diante dos “boinhos” salpicados em torno da praça eram uma lembrança das horas perdidas ou um aviso inútil àquela altura de escolhas que deram errado. “Boinho”, na linguagem de Acari ali próxima, é o mesmo que cigarreira, fiteiro ou outras denominações regionais – barraquinhas que vendem de cigarros a cerveja em lata. Os “boinhos” largados na tranquilidade algo tediosa de um fim de tarde em uma praça municipal de uma pequena cidade do interior combinam com os octogenários de antanho. Mas, como dizia, tudo isso mudou no último dia 21.

Foi como se naquele dia tivesse descido de um ônibus Jardinense – desses que viaja não nas estradas físicas, mas nas rotas do tempo – um certo Roberto, nos seus 80 anos. Irinel, Bernardo, Joaquim, Manoel, homens de 80 anos costumam ter nomes assim, de maneira que um Roberto dessa idade desembarcar na praça de Carnaúba já é algo incomum a partir do próprio nome desse passageiro do tempo que, no entanto, é nosso contemporâneo, sim. Não veio nem do futuro nem de Marte. Veio de um planeta paralelo que existe numa segunda dimensão visível apenas para quem cultiva a verdadeira juventude aqui mesmo neste astro redondo – sim, redondo – a gravitar em torno do Sol.

Pra ser mais exato, nem era Roberto. Era Robert mesmo, mas pode abreviar para Bob, por mais esquisito que soe a palavra numa praça em Carnaúba dos Dantas, aos pés do Monte do Galo, dentro da atmosfera tão pouco gringa do quadrilátero simbólico formado entre as cidades de Caicó, Parelhas, Currais Novos e Acari. Pois naquela data Bob Dylan, o próprio, desceu do Jardinense e foi conferir pessoalmente o panorama em volta, com seus boinhos, seus bebuns, o comércio local, o belo prédio escolar numa das laterais, as redes estendidas em estampas variadas à venda, as barracas de mosquiteiros cor de rosa, a algaravia de um dia de feira, as caminhonetes em disparada, as muitas e muitas motos e bicicletas, as mocinhas de short, os gaiatos – os jokermen do sertão.

Mr. Dylan podia parecer estranho, mas não o era totalmente. Afinal, naquele dia mesmo estava completando 80 anos de vida. Um octogenário, pois não? Ao atingir essa idade – a partir de uma geração em que morrer aos 27 chegou a parecer entre um presságio e uma lei, vide Janis Joplin, Jimi Hendrix e  Jim Morrison – o homem velho que deixa vida e morte para trás reescreveu a essência dessa faixa etária, injetando nela a juventude de que sempre e tanto precisamos.

Com Bob Dylan chegando a esta marca, 80 anos necessariamente passam a ser outra coisa. A palavra octogenário perde o sentido. Esqueça o velhinho ou a senhora idosa no ocaso triste da praça em Carnaúba. Instale imediatamente neste lugar a figura do trovador folk, do jovem de cabelos qualquer-coisa que com suas letras coalhadas de imagens inesperadas e reflexões oportunas, sua filosofia pop-musical de fina extração poética, inscreveu-se na linha do nosso tempo a ponto de passar das fitas k-7 para o prêmio Nobel, fundindo na mesma e rara matéria literatura incidental, show bussiness e contracultura. Não são muitos os que conseguem medir a alquimia correta dessa mistura incerta.


Ao fazer 80 anos, Bob Dylan, para usar uma palavra da moda, ressignificou o conceito de juventude. Estendeu-o para muito mais à frente. Os 80 são os novos 50. Isso já vinha ocorrendo, mas quando um ser humano da estatura existencial dele atinge essa marca – sobretudo vindo da geração de onde partiu, do meio onde se colocou e se firmou – torna-se aí sim um marco.



Imaginá-lo desembarcando de um Jardinense que viaja através do tempo e o deixa saltar numa praça em Carnaúba dos Dantas é apenas um exercício de composição para fixar a relevância desse acontecimento. Agradeço à comunidade de Carnaúba por me oferecer seu cenário como ponto de apoio. Carnaúba não é melhor nem pior, mas sempre me pareceu uma cidade-cenário, um microcosmo que espelha e ao mesmo tempo sintetiza as demais ali próximas, já citadas aqui. Carnaúba poderia estar numa letra de Bob Dylan. Porque à maneira dela, a cidade contém o mundo, todo. Não vejo lugar melhor para expandir esses pensamentos sobre os novos 80 anos do que sua praça, seu comércio, sua gente, sua atmosfera.

A partir do momento em que Bob Dylan faz 80 anos e desembarca na praça de Carnaúba, torna-se possível, ou até necessário, ou talvez até obrigatório – caso a obrigatoriedade não fosse algo tão inconciliável com as ideias aqui expostas – considerar que a juventude começa no berço e só acaba no túmulo. Pra não falar das outras vidas, os demais planos. É menos uma questão de idade e de condições físicas – embora essas, claro, sejam um obstáculo – do que um estágio mental quiçá perpétuo, certamente constante, insistentemente mantido, teimosamente sustentado.

Carnaúba é toda sua, velho Dylan. Fique à vontade. Encoste num boinho e beba algo, aproveite a prosa de um poeta disfarçado de traste municipal. Há muitos casos assim. Talvez algum saxofone por perto toque um trecho de Royal Cinema e lhe inspire uma nova canção sobre o poder da juventude.

Mesmo aos 80 anos, sobra tempo pra você. O próximo Jardinense só sai às sete da noite.

terça-feira, 20 de abril de 2021

CIDADES IMAGINÁRIAS

 



Giancaldo fica bem distante de Império. Milhas e milhas e milhas. Não só no espaço, mas também no tempo. Estive nessas duas cidades e é bem possível que vocês que me lêem também tenham passado por suas ruas – desertas e abandonadas num caso, pobres mas vibrantes no outro.

 Giancaldo é uma cidade siciliana e quando lá estive, ou quando lá retorno, o que acontece sempre, posso estar nos anos 50 sob os efeitos da guerra encerrada em 45 ou no final dos anos 80. Império é um  lugar que já foi rico, produtivo, abastado,  modelo capitalista em algum ponto dos Estados Unidos. Mas quando lá estive, nesse fim de semana, encontrava-se largada por tudo e por todos desde que seu princicipal motivo de existir, uma fábrica de alguma coisa essencial, alguma matéria industrial vital para o país, perdeu a importância e foi fechada.

Não pego avião, navio, nave espacial, teletransporte ou qualquer outro meio de deslocamento desse tipo para estar nessas duas cidades. Minha passagem para ambas é uma sala de cinema ou um aparelho de blue-ray. A tela se ilumina e eis Giancaldo mais uma vez à minha frente. As luzes da sala de exibição se apagam e surgem a penumbra gelada do que restou de Império.

 Na primeira, descer desse trem imaginário significa viver mais uma vez as aventuras de Totó e Alfredo, num dos melodramas mais completos que você poderia esperar de um cinema melodramático por natureza, o italiano. Na segunda cidade, parece que quase não há chão a pisar, como se a própria base física do lugar tivesse se exterminado ao mesmo tempo em que linhas de produção e sobretudo empregos desapareceram quando um sistema inteiro deu aquele piscar de olhos que delimita o fim de uma era de properidade e o início de tempos de absoluta decadência.

Vou para Giancaldo sempre que revejo Cinema Paradiso, filme de Giuseppe Tornatore de 1988. Estive em Império a partir do momento em que entrei numa sala de exibição para assistir a Nomadland, concorrente ao Oscar 2021 dirigido por Chloé Zao com a sempre produtiva Frances McDormand. Entre ambas, distantes no tempo e no espaço, descubro um outro paralelo que, contrariando a natureza dos paralelos, resulta em uma improvável união.

 

Explico: se Cinema Paradiso é pra mim – e para muitos – um caso perfeito a evocar a natureza de deslumbramento que a sétima arte representa, Nomadland é o seu oposto. E no entanto, ambos são cinema: forte, expressivo, marcante. Não importa se um é puro encatamento banhado com lágrimas e pra comprovar isso eu só preciso lembrar a cena final de Paradiso com aquela sequência de beijos vetados. Com também não importa se o outro é pura realidade sem disfarce ou camada de atenuante que o faça parecer menos incômodo, e para comprovar basta lembrar as cenas só aparentemente gratuitas em que McDormand exercita o mais primário dos atos humanos sem o qual é impossível permanecer vivo.

 Aqui temos McDormand defecando em cena de um filme que documenta o nomandismo econômico de populações empurradas do tabuleiro do mercado de trabalho convencional. Atores e não-atores da realidade social que mais parecem estampas desbotadas a ilustrar as fissuras de um capitalismo cruel. Ali temos um cineasta consagrado retornando à cidade natal onde não pusera os pés por décadas apenas para renovar em si mesmo a qualidade mágica do cinema mais elementar, aquele que necessariamente trabalha com o encantamento de quem quer ir além do próprio povoado e para isso só conta com uma tela branca numa sala escura.

 

Paradiso é a mais bela e tocante ilustração do poder do cinema quando entra pelos olhos e causa aquele deslocamento definitivo na alma. Nomadland é o mais triste retrato a mostrar como este mesmo cinema, múltiplo, também se presta com poucas outras obras de arte a abrir os olhos e instalar no âmago de cada um a consciência de um mundo em desagregação. Uma nação dada por rica, primeiro mundo, mas onde se pode trabalhar uma vida inteira pra acabar com uma aposentadoria irrisória que não cobre nem mesmo o custo de um teto, um prato e um remédio no mesmo orçamento pessoal.



Há pobreza em ambos, sim, mas o grande cinema nunca é farisaico, insensível. Num caso, em Cinema Paradiso, nos imiscuimos numa comunidade sem recursos materiais e mesmo assim chegamos às raias do delírio – o paraíso perdido do clichê mais gasto. No outro, em Nomadland, apesar do poder comunitário que coliga e à sua maneira até renova os ejetados do sistema, contemplamos o incômodo mais perturbador – como se fora um filme de terror sem necessidade de monstros.

 Um pêndulo invisível joga plateias atentas para lá e para cá ao ritmo do balanço de filmes como esses. E é possível rever Cinema Paradiso num dia e entrar numa sala que exibe Nomadland no outro. Sua cinemateca particular encontra lugar para todos – e sua humanidade se desdobra, seja na expansividade maravilhosa de um ou na concisão silenciosa e restritiva do outro. Não há beleza em Nomadland: mesmo as paisagens que podem envocar algum enlevo a direção teve o cuidado de borrifar com uma camada de cor a menos, um borrão que descaracteriza. Não há um still de Cinema Paradiso, mesmo quando você já cansou de ver e rever o filme, ou sobretudo nessa situação, que não evoque na saturação de cor, na pigmentação viva das emoções, uma elevação audiovisual que deixa o espírito em festa.

 

E mesmo tão diferentes, esses dois filmes podem estar tão próximos. Amarguras diversas se comunicam, realidades sociológicas se deixam expressar, parábolas vagam na atmosfera que ambos projetam em torno do seu público. Por isso a Giancaldo mediterrânea e sua girândola de fatos e pessoas pode estar tão perto, evocar por exemplo um Seridó arcaico a ponto de facilitar seu choro inevitável ao final da sessão. Assim como a dureza fria da Império norte-americana pode ser um vizinho incômodo prestes a se manifestar na desordem econômica que a própria pandemia aí fora veio colocar em questão de uma maneira jamais imaginada.

 Em que planeta você vive? Que cidades passaram pela sua vida com o poder desses lugares que o cinema criou ou recriou à sua maneira? Sempre poderemos fugir para uma delas – ou  tantas outras, como a Rimimi de Federico Fellini, ou a Porto Alegre remota de um velho episódio de Teixeirinha, permita – e lá identificar os encantos e as falências que nos cercam, nos aguardam, nos refestelam ou nos fazem chorar. O cinema é esta cidade imaginária que nos serve de refúgio mas não nos deixa esquecer de todo o mal que por ventura tenha ficado além da bilheteria e das lindas salas de espera que nem existem mais.

domingo, 14 de março de 2021

CORAGEM, MOSTRA TUA CARA


 Não era a leveza do radinho FM, nem a rebeldia tipo zona sul, tampouco o colorido da tv pré-MTV ou o último refrão da banda mais recente a subir ao pódio do hit parade brazuca. A partir de mais ou menos 1983 uma energia diferente, renovada, consumista sim mas não só isso, irresponsável mas tomada por um sentimento de entrega que justifica todas as tomadas de posição, entrava em cena no  meu, no seu radio, aparelho de tevê, escada de prédio popular, elevador de burguês, calçada ou o que fosse.

 

Entrava em cena o que você pode chamar de Geração 80, Brock, juvenília de butique, o que quiser, desde que reconheça uma contribuição que aquela gente, hoje um bando de cinquentões como eu e como você, estimulou ou recebeu, consagrou ou propagou, acendou ou turbinou  com certa liberdade que esse tempo sombrio de Covid, arma oficial no cinturão e ignorância bossal na cachola solapou: a coragem.

 

Falta coragem, e como falta, de uns tempos pra cá. O que fizemos com a nossa ousadia, nosso peito à prova de velhas ameaças, nossa até falta de senso de perigo? Penso nisso após assistir a meros 15 minutos do documentário no acervo do Netflix  - será que nossa coragem foi chupada sem a gente perceber pela tela do Netflix? Mistério! – sobre o Barão Vermelho. Dé, Maurício, Frejat, Guto e Cazuza se jogando na vida. Cinco burgueses e um país precisando de uma chacoalhada. E eles foram apenas um dos agentes a fabricar as bases daquele novo país de então.

 

Era como se houvesse uma faixa de sintonia fina pairando no ar, do Leblon  a Neópolis, de Caicó a Pelotas. Um fio desencapado à espera da ignição feita por grupos com o Barão para conectar os novos habitantes pensantes de um país com tanto pra deixar para trás. Eu sei, havia uma colonização cultural sul maravilha, eram rapazes de vida fácil e dinheiro à mão, mas de algum lugar sempre tem de vir o sopro. Décadas depois, o vento vinha de lugares menos privilegiados no arrastão do Rappa e assemelhados. Não é isso – era, de novo, a coragem. Eles levavam vantagem, meninos bem postos e mimados com espaço para gritar no microfone platinado? Sim, mas podiam ter se acomodado.

 

Hoje, parece que é tudo acomodação – ok, não é, mas sem alguma generalidade não se faz uma leitura de nada, absolutamente nada. E o que se louva aqui é a falta que faz aquela visão, aquele grito, aquela luz que mesmo encharcada de álcool e drogas na embriaguês da liberdade há pouco admitida, despejava sobre tudo e todos o tamanho das nossas incertezas e da hipocrisia daquela gente sentada nas suas salas. A engrenagem do tempo, aquele que nunca pára, fez das suas e nos jogou hoje nesta realidade infelizmente muito mais forte da acomodação geral, no mínimo, ou da recusa da paixão e da humanidade pura e simples – e tudo isso vai além da política, meu irmão que como eu chora as doces lágrimas de um tempo melhor, só isso, melhor.

 

Cadê a coragem que se instalou nas salas até então cheias de naftalina dos anos 80? Você vai me dizer que parte daqueles bravos guerreiros virou coveiro daquela mesma coragem ao se revelar ainda mais ultrajantes do que os antiprofetas do país fardado do pré-85. Verdade, mas não vendo pra eles meu desencanto – insisto na memória dos que ficaram pelo caminho esmagados pelos efeitos do vigor daquela mesma coragem.

 

Teriam capitulado também os hoje mortos aos capitães do momento? Pra mim, jamais. Se esse pessoal aí fora já arruinou o país da esperança da minha geração não venha me pedir pra pichar a memória de quem me alimentou dessa fé profana, lírica, pop, juvenil e sem limites. Eduardo pode ter virado um bolsonarista inspirado nos tempos em que jogava futebol de botão com seu avô, mas exclua Mônica dessa história. A adesão foi dominante,  mas não completa. E esse jogo, reflito aqui enquanto entrego os pontos diante do documentário sobre o Barão, ainda não terminou. Nunca termina. Recomeça. Recua, fode-se onde parecia que iria triunfar mas também sabe preparar seu momento. É nesta parte que entrar a coragem. A vida é bela, embora muitas vezes seja uma merda. Vem tudo junto.

 

Só não precisavam exagerar tanto.  Nem vacina tem mais. Ainda assim, Brasil, mostra tua coragem. Que a cara já conhecemos há tempos.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021

Grato, Sr. Plummer

 



Meu Christopher Plummer de cabeceira sempre será aquele que dá dois esporros monumentais em The Insider (nosso “O Informante”), o filme que vale como uma especialização em Jornalismo Público para quem estiver disposto a cursar a tão necessária – e esquecida – disciplina.

Num deles, Plummer, interpretando um célebre jornalista master da equipe do programa 60 Minutos, da rede CBS – famoso por ir além de qualquer superficialidade em temas pedregosos na TV norte-americana e em geral – destrói com método e disciplina, além de vasto desdém, a advogada que deseja impedir a rede de TV de publicar algo contrário a um seu potencial... anunciante? que nada, ao seu potencial comprador! Isso é o capitalismo sem maquiagem.

No outro, sobra para Al Pacino. E você, caso não tenha visto o filme, deve estar se imaginando que ator teria a grandeza cênica e a impedância pessoal capaz de reduzir ninguém menos que Al Pacino a pedacinhos – e o que é pior, estando... errado! Pois Christopher Plummer fez isso com maestria numa cena que nunca saiu do meu arquivo sentimental, assim como o filme todo que, meio como se fosse pra esnobar de vez, ainda tem Russell Crowe  como o insider a que o título se refere, mostrando com talento não menos considerável que tanto pode ser um gladiador invencível quanto um ser humano todo furado por balas emocionais de alta letalidade.

Dê adeus a Christopher Plummer vendo ou revendo O Informante, que deve estar vegetando aí nalguma gaveta de streaming, num grito surdo em meio à pletora audiovisual que nos derruba como se fosse uma onda no mar.

Grato, Sr. Plummer.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

CHAU, ELBA

 


 A maioria das pessoas envelhece mal, bem mal.

Esse seria só mais um motivo pra eu insistir em seguir de bem com minha Elba Ramalho antitudo, marginália, passa-fome no Sul Maravilha, vestidinho de renda deixando ver tudo, cabelão crespo que cobria sem deixar um espacinho que fosse a gigante capa dupla do LP Capim do Vale.

Torço o olhar pras declarações cuspidas pela Elba pos-lip, pós-sucesso, pós-fracasso, pós-tudo o que não presta e fico com a Elba que cantava Luis Ramalho, bradando em linda voz gasguita que “o lugar também clareia a lama”. Com a Elba luxuosamente vestida em trapos que varriam a poeira do sertão nas cenas da Morte e Vida Severina refeita na tela da Vênus Platinada.

Com a Elba que infelizmente não vi em pessoa no teatro se rasgando com Marieta na montagem da Ópera do Malandro, mas que ouvi até escavar sulcos no vinil da trilha sonora gravada.

Com a Elba de quem se dizia que escandalizava de Brejo do Cruz a Caicó, a Elba-açude de mulher que fez transbordar para todo o país as águas do Bodocongó. A Elba cujas pernas sustentavam o show business nordestino-brazuca levando aquela alegria composta pelo então anônimo Lenine – outro que já foi melhor – pelos palcos-caminhões da suburbanidade sertaneja bye bye made in Brasil com que nem o cinema de Cacá poderia sonhar.

Fico com a Elba lírica, capaz de tirar do chão não só os pés mas a alma desprevenida do ouvinte daquele radinho pré-FM apenas cantando sete cantigas pra voar – de autoria, por sinal, de outro que envelheceu mal neste catálogo de gente que já prestou, e como prestou, e como é triste que tenha prestado tanto e tanto não preste mais.

Tão triste que só a música pretérita mesmo pode fazer esquecer, apagar, deixar pra lá. Fico com aquela Elba e tudo que poderia querer é que ela tivesse ficado com a gente, na banda insanamente sã de cá. Não deu, chau, amor. Já vou me embora, não chora, a hora é de deixar.