segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Opus allienum dei

Está começando de novo e o automático da vida quer me convencer a dizer apenas que todo ano é a mesma coisa. Não é: cada seca de Brasília é como se fosse uma nova e desconhecida estação climática a mexer com as nossas convenções extra-atmosféricas. Já vão pra mais de dez anos que esse capricho natural da região central do país me envolve como a todos que vivem aqui, reelaborando a forma como respiramos, dormimos, acordamos, resistimos ou suamos - ou não suamos, que é o que de fato acontece enquanto os outros verbos são conjugados no todo-dia de cada um. Mas, repito, é como se fosse sempre a primeira vez.

Ou melhor: a segunda, porque a primeira sempre tem aquele gostinho de novidade que dilui as piores agruras em calda doce de curiosidade, dando às sensações um outro efeito. A segunda, sim, é aquela que soa que nem ferro em brasa em pele de cordeiro - sem mistérios de expectativa. No nosso caso particular aqui, um dia você acorda e nota que, hoje, claramente, bem mais do que ontem, aquela camiseta velhinha que cai em pano suave nos seus ombros está estranhamente meio rídida - como se você, no lugar da roupa, estivesse vestindo uma embalagem de papelão.

Isso é a seca de Brasília, tanto quanto as queimadas que fazem o belo céu azul faiscar em eletricidade aspirada. A diferença é que os incêndios são cenográficos, logo estão no telejornal, rendem manchetes na internet. Quem imaginaria que não é só isso, o fantástico daqueles aviõezinhos que jogam água no ar impressionando os olhares daqui e de alhures? Quem, senão os que de fato estão imersos neste ambiente, lembraria da fuligem com passagem marcada para entrar no seu nariz, além do incômodo de encarar um  guarda-roupa embalsamado em secura?

Daqui até meados novembro, que é quando de fato a seca acaba - quem lê este blogue há tempos sabe que existem uns intervalos, com a tal "chuva da seca" que vem com tempestade mas se vai tão misteriosamente quanto chegou - a pisada é esta: poeira em suspensão máxima, a impressão de que estão passando um ralador de coco no seu couro, e o azulão celeste pra compensar os inconvenientes da estação. É a manifestação da natureza que pega todas as classes, idades, tribos, cores políticas. Até o presidente da República tem que aguentar o rojão. É como se a seca estivesse dizendo: desculpe, estou construindo uma temporada de chuvas. Trabalhando na matéria dos ciclos - no lugar de reclamar, se veio para aqui trate de começar a fazer parte dele.

Enquanto aguardo, vou lendo; e um dos livros que me distrai agora é Ostra feliz não faz pérola, de Rubem Alves. Poderia fazer galhofa desse título tão provocador quando o assunto é a chegada, sem sombra de qualquer umidade, da seca de Brasília pra quem vive nas suas modernas geometrias. Planalto feliz não faz chuva. Mas vamos menos de trocadilho e mais para a citação mesmo: diz lá, na página 132, que os teólogos medievais falavaram sobre a opus proprium dei e opus allienum dei. "A obra própria de Deus é quando ele faz a obra boa, diretamente, sem desvios. A obra estranha de Deus é quando ele faz uma coisa ruim para chegar à boa." Rubem Alves está falando de professores excelentes e também dos medíocres, mas poderia estar se referindo à  seca de Brasília - essa coisa ruim (embora pontuada também por pingos de beleza, vide o céu e a inconstância colorida dos ipês) que deságua, literalmente, numa outra, boa entre as melhores. O jeito é esperar.

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