quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Águas profundas


Em cinema, literatura, às vezes até na música - quando se trata de um tipo de canção de natureza mais narrativa - existe uma pré-condição, um condicionamento prévio sem o qual nada se sustenta. É bem conhecido e chama-se "suspensão da descrença". Graça a esse instrumento narrativo - espécie de pacto não formalizado entre o autor e seu público, seja qual for o meio empregado - acreditamos, ou fingimos acreditar sem prejuízo para os fatos narrados, nos maiores absurdos. O Superman com oito anos suspendendo um carro apenas com uma mão. Cientistas com jeitão de super-heróis construindo uma geringonça gigante capaz de evitar que um meteoro ainda mais hiperbólico destrua a Terra. Dona Flor tendo que dar conta do maridão certinho que acabou de chegar da farmácia e ao mesmo tempo do fantasma do finado marido anterior que se foi desta para melhor mas não esqueceu do prazer de certos momentos. João Grilo e Chicó enganando uma cidade inteira com as lorotas mais improváveis apenas para conseguir matar a fome de cada dia.

Como diz o nome daquele festival de filmes, é tudo verdade. A gente acredita em tudo: basta que o capítulo inicial do livro, ou as primeiras sequencias do filmes ativem aquela maquininha de condicionamento mental que a gente carrega na mente como se fora um projetor paralelo no escurinho das possibilidades - a tal "suspensão da descrença". Foi isso o que não aconteceu comigo durante a primeira meia hora deste celebrado "Capitão Phillips": o mecanismo da suspensão da descrença, habitualmente tão capaz de nos fazer passar por cima de impossibilidades reais para embarcar na oportunidade de acompanhar uma boa história travou legal, como diria um garoto, bem no início do filme, exatamente naquele ponto onde ele tinha, precisava funcionar.

Passei o resto do filme incomodado com um elemento narrativo que me pareceu improvável: como é que os americanos, esse povo tão fascinado pelo uso de armas de fogo, não carrega nem uma dessas espingardas de bala de borracha que a PM brazuca usa e abusa nos tais protestos de rua, ao realizar a travessia marítima por uma região tão perigosa? Eu, na minha sacrossanta ignorância - a quem não canso de prestar minhas homenagens, pois dela advém, além de certa humildade muito providencial, também o entusiasmo quando sou apresentado a alguma novidade - não sabia que a marinha mercante não usa armas de fogo. Tudo bem: não precisa ser um navio militarizado pela ótica do mundo pós-Bush-Iraque, mas nem uma armazinha assim pra efeito de qualquer coisa acontecer? Nem alguma coisinha simples, tipo o bacamarte do Urtigão? Tenho que pedir ao amigo Carlos de Souza pra perguntar ao pai dele, que passou a vida navegando na marinha mercante, se é assim mesmo.

Porque aqui não se trata apenas de um caso em que a suspensão da descrença não funcionou - para mim, só posso falar por mim, porque o que mais vejo, leio e ouço é o pessoal empolgado com o filme. Aqui o que temos é um troço mais maluco ainda: um caso de suspensão da descrença que não funciona num filme... inspirado em fatos reais, de amplo conhecimento público, com os protagonistas de fato dando milhares de entrevistas no embalo do lançamento do filme. Então, em princípio, eu não teria mesmo do que duvidar - o pessoal todo daquele barcão, tripulado por vinte homens bem alimentados ou parrudos de chope, que seja, não conseguiu mesmo dar conta de quatro magricelas famélicos e expoliados da mais clássica África envolva em guerras, tráfico e banditismo. E armas, nem pensar... Sabe qual é o problema? A danada da suspensão da descrença não quer saber se o filme vem de fatos reais ou não: ela precisa existir na condição de gatilho narrativo sem o qual a história não consegue ser disparada. A questão é menos o fundo verídico do fato do que a superfície narrativa sobre o qual ele é distribuído em forma de cenas, diálogos e situações. 

 
Talvez tenha faltado uma cena - uma daquelas cenas que os roteiristas detestam ter que escrever - com uma explicação minimamente didática sobre o fato de a marinha mercante não querer papo com armas, nem preventivamente. Tudo bem que a possibilidade de um tripulante dar cabo de um pirata usando uma arma ancestral - os próprios braços - ainda assim ficaria no ar, mas já seria um alento. A oposição entre o navio gigantesco e a canoa raquítica pode e é sim pungente do ponto de vista da mensagem visual, mas a construção do caso - precisamente a arquitetura da suspensão da descrença - precisa passar por águas bem mais profundas do que a rasa navegação entre as bacias das metáforas.

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