segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Edward Hopper na W3 Norte

Numa noite de domingo de ruas desertas, silêncios urbanos e atmosfera de sono pesado, alguém pode ter a nítida impressão de ver um disco voador, ou a forte sensação de estar sendo sugado para outras dimensões. Nesse domingo, depois de sair da sessão de "Flores Raras" no final da Asa Norte, em Brasília, vivi não sei bem em que estágio da imaginação a experiência sensorial de estar dentro de um quadro de Edward Hopper. É perfeitamente explicável minha curta viagem de oito quilômetros, que é a extensão percorrida por mim entre o local do cinema e uma outra rua onde esse feitiço estranho e maravilhoso se desfez como por encanto: eu havia saído de um filme onde a linguagem visual é toda baseada nas telas do artista norte-americano.

"Flores Raras" se passa predominantemente entre a cidade do Rio de Janeiro e a serra fluminense, mas em todos os enquadramentos, ambientes, objetos e pontos de vistas - diria mesmo, em todo pensamento filmado que a fita exibe para quem tem olhos capazes de ver - estão presentes as linhas, cores, tons e subtons de Edward Hopper. As salas e quartos são tão amplos quanto meio vazios; uma coloração levemente pálida emana de cada take, a bruma humana que preenche a psicologia dos personagens tinge todo o seu ao redor. E tal casamento resulta perfeito: limpa da tela todo o desnecessário para manter estendido como lençol branco em quintal verde as questões que movem - ou paralisam - os personagens. A linguagem Hopper ainda tem um efeito secundário não menos importante, que é de facilitar, com as suas sínteses, a recriação visual dos anos 50 tanto por parte dos produtores do filme quanto de nós que estamos do lado de cá da tela, reconstruindo cerebralmente aquela atmosfera que a história nos propõe.

Dito isso, imagino que agora pareça natural que, saindo do cinema por volta das 23h15 e entrando na avenida W3 Norte, uma das vias comerciais que cortam Brasília, o fantasma pictório de Edward Hopper pareça ter se interposto no meu caminho. Tudo bem que por estes dias acabei também de ler "O Longo Adeus", um Raymond Chandler de carteirinha em branco e preto onde a estética do artista plástico também parece estar impressa junto com as letrinhas da aventura de Phillipe Marlowe. O fato é que, sob os reflexos do livro e o impacto do filme, nunca a W3 me pareceu tão Edward Hopper quanto nessa noite de domingo, com seus prédios baixos, suas lojas de motos e automóveis de fachadas vitrificadas emitindo luz e solidão para a pista, seus sinais de trânsito inúteis e suas pensões improvisadas no outro lado acalentando sabe-se lá que insônias em silêncio. 

Ninguém na rua, um carro aqui e outro muito longe, uma rarefação condizente com o triste mas sugestivo "Aves da noite" do artista dos EUA. Brasília, w3 Norte, às 23h30 de um domingo, imersa na calma entre o shopping Boulevard e o acesso ao Eixo Monumental, é como se fosse qualquer outra cidade do país às duas da madrugada. Se por uns tantos minutos nenhum carro passar, borrando com sua animação movimentada aquela visão figurativa de cidade escura e funcional, a Brasília da W3 Norte vai parecer mesmo um quadro vivo de Edward Hopper. Sobretudo se você ainda estiver lembrado de um romance noir de Raymond Chandler ou acabado de contemplar no cinema a história tocante de Elizabeth Bishop e Lota de Macedo Soares. 

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