segunda-feira, 13 de abril de 2020

CARLÃO E O TELETRABALHO



Essa onda de trabalho em casa me lembra a todo momento o amigo querido, Carlão de Souza. Uma de suas manias, ao conversar comigo e se queixar quando precisava cruzar a cidade de Neópolis até a Ribeira pra pegar no batente na velha Tribuna do Norte, era sonhar com o dia em que o mundo se rendesse ao... teletrabalho. Esta palavrinha mágica frequentava o vocabulário de Carlão tanto quanto rock, uísque, poesia, lirismo e mundo cão. Se todo mundo tem um vocabulário próprio em que certos termos se repetem formando um estilo verbal, eis um grupo delas que combinava com as falas do amigo querido.

Ele sonhava, mesmo, assim falando com o olhar no céu, nas nuvens ou nas tempestades, não importa. Que a humanidade já deveria ter descoberto o teletrabalho, que era um desperdício esses deslocamentos, que trabalhando em casa ele dava perfeitamente conta de escrever sua crônica e assinar lindamente como a Linda Baptista cujos textos saboreávamos. Que enquanto escrevia em casa ele poderia beber algo – que nem hoje faz minha colega Mariana Monteiro na Asa Sul aqui em Brasília, enquanto lá era Natal, ali por 1988, 89, os melhores anos da minha convivência com o amigo querido que nos deixou daqui a pouco faz um ano, vejam só.

O tempo passa, os chavões escritos não caem, mas novidades surgem – e eis o teletrabalho com que sonhava Carlão se impondo por força da necessidade e fazendo uma pequena revolução caseira na vida de quem desempenha vários tipos de trabalho intelectual. O que Carlão não sabia – ele ficava no limite do sonho, e como o sonho é enganoso, hein? – é que o teletrabalho divide espaço com o filho pre-adolescente que não escolhe hora pra pedir sua ajuda (imagino o amigo querido fazendo teletrabalho pra TN na casa de Neópolis e Alex, 10, 12 anos, pentelhando querendo saber sobre um mito grego de que tanto já gostava naqueles tempos), assim como com o almoço atrasado e louça por lavar. O amigo querido tinha, naquela época, a culinária nota mil de Jô e o machismo reinante pra não ter que se preocupar com o destino dos pratos, panelas e talheres após uma lauta refeição. Mas, hoje... sei não, amigo querido. Daí de onde você está dá pra ver que o teletrabalho não tem sido a única novidade – em boa hora, sustento apesar dos dedos murchos de relaxar na pia. 

Mas desconfio que o teletrabalho deixaria o amigo querido muito mais produtivo. Sem ter que digirir a Banheira – esse era o apelido do carrão velho que ele usava na época – pela Salgado Filho e Hermes da Fonseca adentro ouvindo Marisa Monte cantando Speak low, teria sim mais tempo para adiantar os livros que viria a escrever no futuro, num momento em que só tinha nesta lista o mitológico Crônica da Banalidade. Poderia ouvir mais Nei Lisboa cantando Junkie ou a trilha sonora do filme Cal enquanto batucava nas pretinhas. Reunir mais amigos para turbinar os assuntos que movimentariam o caderno de fim de semana do jornal e jogar conversa fora entre um parágrafo e outro sem se preocupar com deadlines e quejandos.

É isso, amigo querido – o panorama aqui embaixo não melhorou nada, nada. Nem dá pra fazer uma carta como aquela que Chico enviou para Boal e que quando se viu estava sendo cantarolada na boca de todo mundo com algum juízo e moderada dose que fosse de sensibilidade poética e política. A Marieta sempre estará mandando aquele abraço de Gil para os seus e essas novas geografias astrais nunca vão nos separar de fato. Daí de onde você está, gracejando sem maldade mas com empatia das nossas perdições terráqueas, faz um teletrabalho de outra natureza entre tecnô e pajelô pra ver se a gente, na próxima missiva, tem algo melhor para contar. Alô, alô, querido amigo, aqui quem fala é da Terra, que roda, roda e permanece a mesma. E mais não digo porque o teletrabalho, esse bicho tão calado quanto ansioso, me chama.

sábado, 11 de abril de 2020

UM CLÁSSICO NA PANDEMIA

Cecília e eu acabamos de assistir (ela, pela primeira vez) a “E o vento levou”. DVD  no leitor, sofá em posição confortável, olhos e ouvidos atentos e prontos pra descolar um pouco – e só terapeuticamente - da realidade em volta e... alto lá. Que o velho filme se põe a conversar, do seu jeito, com a pandemia aqui fora e seus efeitos. Duvida? Confira na lista a seguir.

1-Scarlett O’hara é seguramente a primeira negacionista célebre do cinema. No início do filme, cercada por pretendente aduladores, fútil e caprichosa como certa pessoa dos meios políticos atuais, ela graceja quando os rapazes lhe falam  da possibilidade de guerra. Não vai ter guerra coisa nenhuma e se insistirem, eu deixo vocês falando sozinhos... Como se sabe, o pano de fundo do filme é a Guerra da Secessão americana que estourou duas sequências à frente desta no filme. Alguma semelhança com a gripezinha?

2-Rhett Buttler mostra o quanto os papéis sociais, mesmo os mais estabelecidos, podem mudar quando um evento de proporções trágicas ameaça grandes comunidades. No início do filme é visto como  pouco mais do que um pária, contrabandista que se vale de oportunidades fáceis para encher os bolsos. Quando a pandemia – ops, a guerra – explode, consegue levar mercadorias para Atlanta furando bloqueios militares dos yanques e, boom, torna-se um benquisto cidadão de bem admirado por todos. Quem será que vai mudar de papel social ao fim deste isolamento e seus efeitos?

3-Grande eventos traumáticos mudam padrões sociais. O que até ontem jamais seria aceito, mesmo em termos de hábitos e rituais cotidianos, passa a ser suportado agora, para um segundo depois ser admitido sem reservas, e mais uns meses após ser visto até como algo desejável. Numa cena de baile, em meio aos rumores da guerra, faz-se um leilão das garotas de família com quem os cavalheiros queiram dançar. Um diálogo entre velhinhas vai do espanto à justificativa em três breves falas (o roteirista é fera em concisão). Mas não fica nisso. O sempre ousado Rhett Buttler resolve quebrar a banca e oferecer 150 pratas em ouro puro pra tirar uma viúva para dançar. Inimaginável. Pois a proposta é aceita – especialmente pela viúva, a espevitada negacionista Scarlett – e segue o baile. De que pudores nos livraremos no futuro imediato, alguém arrisca? E quais serão os novos hábitos, além do majado teletrabalho?

4-Justamente por causa da impaciência de Scarlett por aquela dança, Rhett tira sarro do seu fake luto, decorrente do igualmente fake casamento. Os fakes estão por aí contaminando tudo há tanto tempo, por que a gente não  notava? Esse pessoal do gabinete do ódio não descobriu a roda, apenas a adaptou às tristes recentes circunstâncias brazucas.

5-Previsões apascentadoras para o conforto da platéia. Pois o proprio Rhett Buttler as comete quando gira feito mosca de padaria em torno do mel de Scarlett O’hara. Tasca-lhe numa cena ainda inicial a previsão de que a guerra civil estaria prestes a acabar, dependendo apenas de uma reles batalha. Estrategista, logo o cara se corrige e trata de transformar o evento em papel moeda, mas antes ele também teve seu momento “gripezinha”, numa das raras concordâncias com a megera desejada. A guerra estava só começando e as mais de duas horas de filme à frente seriam um mostruários de horrores, como bem  serve de exemplo a cena dos socorro aos feridos.

6-Falando nela, é outro momento que conversa aos gritos com a realidade atual, como se o filme clássico e a crise que o mundo vive hoje fossem duas pessoas tentando se comunicar cada qual de sua janela em prédios um de frente pro outro. Estamos em um descampado diante de uma espécie de hospital de campanha. É clássica a cena: Scarlett O’hara se aproxima em busca do médico para fazer o parto do anjo caído na Terra que é Olívia de Havilland. O quadro conduz tudo. Começa fechado no rosto preocupado da heroína e vai abrindo aos poucos, de maneira que tanto ela como a platéia se dão conta lentamente da extensão dos danos humanos causados pela guerra. Completamente aberta, a cena é um território de corpos em agonia espalhados por um vasto chão. Alguém falou em cadáveres aguardando sepultamento na Itália? Ou lembrou daqueles comboios de caminhões militares entulhados de caixões que viu no Jornal Nacional? Dentro do hospital, mais um diálogo tão curto quanto marcante – e que poderia ser dito hoje nos lugares da Espanha onde o atendimento médico não dá conta de socorrer a todos, como já começa a acontecer entre nós em Manaus. Scarlet pede ajuda ao médico para o parto e ele responde dizendo para ela ir atrás de uma mulher que dê conta, porque ali já está ocupado com muita gente morrendo. Quem disse que pegar um filminho antigo pra ver é garantia de esquecimento momentâneo do coronavírus lá fora?







7- Ainda tem a cena da lista de mortos, disputada por centenas de mãos certamente repletas de micróbios naqueles tempos em que a higiene era a última coisa com que se preocupar quando famílias perdiam pais e filhos nos campos de batalha e a comida em casa corria sempre o risco de acabar, quando não de ser saqueada. Não há como deixar de relacionar as listas dessas cenas com as já célebres curvas de casos e demais estatísticas sobre contaminados, casos suspeitos de Covid-19 e mortos pura e simplesmente.

8-Tem mais, mas a lista está ficando além do planejado e o objetivo do post é mais flagrar a curiosidade do que baixar a guarda do leitor por acaso mais influenciável a sinais ou qualquer coisa do tipo. Pra encerrar, vale registrar que, nesta epopéia toda, a curva (olha ela aí de novo, mas agora é outra) dramática da personagem Scarlett O’hara de alguma maneira tangencia a nossa aqui fora neste momento e lugar. Ela sai de uma zona de conforto absoluto, esnobando pretendentes e torrando supérfluos na sua plantation sulista sem necessidades primárias, para um quadro de falta de tudo, até comida – daí a célebre cena do torrão de barro erguido ao alto com a promessa de nunca mais passar fome. Aquilo somos nós, gente, a humanidade atual que até ontem estava atulhada de desnecessidades (permitam o neologismo) e desperdícios, arrotando uma soberba que alija quem não tem dinheiro ou condições dignas de vida, incinerando uma natureza com a qual há tempos não nos sentimos verdadeiramente conectados. “E o vento levou” é um épico de fundo histórico que trata da capacidade que o ser humano tem de se reconstruir. Scarlet O’hara se refaz inúmeras vezes ao longo do filme, nem sempre da forma mais ética – mas se refaz, busca, tateia e acha algum caminho. Neste percurso dramático, aprende algumas coisas e teima em não assimilar outras, construindo com essa desigualdade o seu destino final (embora termine fazendo uma nova promessa na famosa frase que resume o filme). Sim, a frase referida no parênteses nos cabe bem agora, se soubermos aprender a lição inteira e não somente pela metade como fez a personagem. “Amanhã será um outro dia” é a sentença precisa para suceder a outra frase dita por outra personagem, Ashley, o queridinho de O’hara. “É o fim do nosso mundo, Scarlett”, explica ele para a ainda e sempre teimosa protagonista. Tente assistir a “E o vento levou” sem sentir a sugestão invisível no ar como um novo vírus letal que lhe diz o quanto as duas coisas conversam.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

O VÍRUS, SEGUNDO G.



O coronavírus mete medo, esvazia metrópoles, põe de joelho líderes mundiais apressadinhos, transforma seres comuns em super-homens de tanto que eles aparecem na tevê, causa revolta em subseres humanos mimados com as facilidades de um tempo astucioso, muda hábitos embutindo a promessa de nos fazer melhores nem que seja um tantinho assim, enfim, enfim, faz e acontece sem nem precisar ser visível ou tátil – é como uma intuição, uma interrogação atrás da orelha, um átomo impossível de ser explodido no ar, na matéria, nos organismos.

O Brasil é um país, enorme, implacavelmente visível, de uma extensão impossível de ser totalmente percorrida por gente que nele nasceu e habita por 80, cem anos, agigantado, uma mancha ampla se espalhando nos mapas geográficos da Terra inteira – é até mais tangível do que gostaríamos, na medida em que aqui e ali dá vontade de esquecer que estamos dentro dele, totalmente dominados.

A instabilidade não é, literalmente, nem um vírus e muito menos um país, mas é, sim, as duas coisas – e ambas temos sido há 500 e tantos anos. É o nosso vírus mais endêmico, nossa doença mais teimosa, nosso traço mais distinto. O vírus da instabilidade contém tudo o que fomos e somos, embala nossa história, desenha nosso perfil, resume nossa tão fugidia quanto mitificada identidade nacional. Nós, tente não ficar chocado, somos como um vírus inquieto e mutante que no entanto não consegue sair do lugar, tamanha a nossa instabilidade atávica e crônica. E se você acha que estou exagerando aproveite que está trancado em casa – assim esperamos – e veja, ou como foi o meu caso,  reveja, o grande “Terra em transe”, o filme síntese da filmografia do baiano Glauber, aquele dionisíaco desfile das nossas fraquezas estandartizadas para todo o mundo ver e nós mesmos se estivermos dispostos, atentos e desprevenidos.

Assistir a “Terra em transe” num momento como este é bastante propício, não só pela série de eventos políticos que tanto nos tem diminuído ainda mais nos últimos anos, numa sucessão que dificilmente poderíamos acreditar duas décadas atrás. Com os reflexos locais da crise mundial do coronavírus, a contemplação em tela caseira das crises sobre crises com que Glauber Rocha compõe sua sinfonia cinematográfica de uma nação de brincadeirinha chamada El Dorado só ganha, cresce e se amplifica em êxtase e anticelebração. Um filme normal, em cenários habituais com personagens bem delineadinhos e cenas convencionais jamais conseguiria espelhar o que o Brasil foi e continua sendo – ao contrário do que chegamos a pensar, numa ilusão civilizatória tipo 3D só dez minutos e três governos atrás.



Era preciso um filme em que cada personagem fosse assim como uma flâmula rubra se entortando em dobras escandalosas ao vento do Aterro do Flamengo ou no alto do Morro do Careca para dar a dimensão exata de quem somos, assim como aqueles a quem nos submetemos ou aqueles outros a quem endeusamos e entregamos tudo, tudo, tudo. Uma cena de um impasse político com campanha de desestabilização, risco de renúncia e ameaça de resistência com armas não poderia, para ficar à altura dos dramas brasileiros, ser filmada assim num set que reproduz um gabinete comum, de secretário, prefeito, governador, deputado, senador ou presidente. Não: Glauber pega seu magote de personagens emblemáticos que representam cada um um naco maior de brasileiros – o empresário, o poeta, o político, o aproveitador, o oportunista, o povo cego, espoliado e também Jeca total – e os coloca num pátio aberto para as matas de uma encosta carioca. Neste palco amplo, aberto, suspenso como que sobre a história do Brasil inteira coloca tais personagens para interagir nesta ciranda enlouquecida por poder, mesquinharia e falta de rumos que tem sido o país em tantos e tão duradouros momentos – como agora, um ápice como outros que já tivemos.

Os balcões do Parque Lage, cartão postal do Rio de Janeiro, são um gabinete aberto das veias rasgadas a peixeira da vida brasileira. Ao longo do filme, solilóquios shakespereanos de indecisão, dúvida e fraqueza polvilham as ações – melhor seria dizer não-ações – do condutor do filme, o Paulo Martins dividido entre a política e a poesia, entre líderes com caminhos políticos diferentes, entre a empatia triste de Glauce Rocha e a efusividade em olhos verdes que é Danusa Leão. Neste empacado caminho, seguem ou param, avançam um pouco e tropeçam de novo o poeta e o país – quantas vezes já vimos esse filme de progressos curtos solapados por retrocessos permanentes no Brasil de fato, aqui fora da tela, seu reflexo vivo que só reforça os traços  aparentemente caóticos da construção glauberiana?

O vírus da instabilidade é a nossa doença de estimação que o coronavírus vem abraçar e beijar na noite da virada dos tempos. Se vamos melhorar depois dele, como se espera que aconteça mundo afora no freio de arrumação em que esta crise pode se transformar para quem  olha para ela com olhos de alguma esperança resiliente, os antecedentes não são os melhores. É o que nos gritam os panoramas do filme que, feito nos anos 60 parece novinho em folha e segue inventivo até quando usa a ser favor o descompasso entre imagem e som, numa época em que o áudio direto ainda era novidade ou luxo na indústria do cinema. A sonoridade de “Terra em transe” é um item à parte neste carnaval antropológico que emoldura nossas realidades fora de qualquer esquadro. Há sempre um barulho marcante ao fundo, instabilizando tudo, seja um tambor ou tiros de metralhadora, elementos tão importante quanto os crucifixos hipocritamente empunhados ou as bandeiras em rebelião de cores saturadas – e pouco importa que o filme seja em branco e preto, que nada mais colorido foi feito no país em cinema, nem mesmo quando atingimos o esperado padrão americano dos anos 90 em diante.



A câmera pendente, o enquadramento de risco, a luz estourada que tanto cega quanto esclarece, o interior de palácios que nos infla o falso orgulho e nos entrega decadentes e deslumbrados, o vasto mar em volta de uma terra teimosa e imutável, nossos vulcões que se não compõem a geografia explicita das matas queimam todo o nosso território por dentro, cozinhando ambições desmedidas, carbonizando possibilidades e espalhando a cinza sobre as novas camadas de matas que surgem, numa história aprisionadas em ciclos de Getúlios, Jânios, Jangos, Médicis, Lulas e Bolsonaros. Parece impossível escapar dessa troça permanente, este baile viciado, antifolia de derradeira festa que nunca é de fato a última e sempre se perpetua no tempo e no espaço, angariando novos organismos e novos infectados.

O coronavírus, esse que está aí fora e nos mantém presos aqui dentro, logo vai encontrar sua cura. Do Brasil de “Terra em transe” não podemos dizer o mesmo – apenas desejar o impossível.

terça-feira, 7 de abril de 2020

DE REPENTE, NA MESMA ESQUINA




O título excelente, já dramaticamente conclusivo, não poderia antecipar melhor o que viria pela frente, especialmente em um livro voltado em reposicionar o passado. “De repente a vida acaba” poderia ser o epitáfio dos dias presentes, mas por uma dessas ironias que cercam tantas obras de arte ele na verdade remete ao estado de espírito urbano, jovem-adulto, ligeiramente acadêmico e totalmente pop, digamos assim, da década de 80.

Pelo título também se deduz tudo o mais básico, já que estamos obviamente falando do a esta altura bem conhecido romance lançado no final do ano passado por Clotilde Tavares. Pois é, de repente a vida acaba, como atualmente nos convencemos dia e noite sem precisar nem sequer sair às ruas, ou por isso mesmo – e já peço perdão pelo humor involuntário em hora tão delicada. Mas uma poção que seja de humor havemos de preservar, com o cuidado de não jogar mais ácido nas feridas dos que a doença derrubou, levou ou de seus amigos e parentes.

De repente a vida acaba é uma daquelas constatações de senso comum que, quando postas assim a seco na capa de um mais do que digno romance, repentinamente servem de referência para se avaliar tudo – do motivo pra levantar da cama todas as manhãs, ou todas as tardes para os boêmios de que já-já nos ocuparemos de que o livro se vale para descortinar a cultura de uma época em tantos momentos saudosa, até o medo do contágio por um novo, corona ou não, vírus letal.

Clotilde Tavares já nos deu crônicas incríveis, poemas sensíveis, livros brilhantes sobre assuntos tão diversos quanto a vida em escolas de freiras no cariri paraibano até as práticas holísticas aplicadas ao cotidiano. Já nos divertiu com performances teatrais que teimam em não deixar o teto da boa memória, como a tresloucada personagem da peça “Papai pirou nas ondas do rádio” que tivemos o prazer de ver no palco do Teatro Alberto Maranhão, em Natal. Já deu conselhos na televisão para quem anda com o astral meio apagadinho (e nisso, eu levo um pouco da culpa), já circulou de jornais a jornais do RN e da PB com suas tão simples quanto afiadas análises dos nossos cotidianos, já deu aulas na UFRN em dois departamentos completamente distintos,  já escreveu e montou seus textos teatrais.

O que mais faltava, senão um romance digno do nome, que não fosse um corriqueira construção de enredos e personagens, mas sim – e sem proclamar desnecessariamente essa ambição – um apurado e sensível painel de um tempo e lugar que tantos de nós, na faixa dos 40 anos pra frente, ou viveram diretamente, ou tomaram contato por tabela?

“De repente a vida acaba” tem, sim, claro, personagens bem construídos, diálogos exatos, situações inesperadas, conflitos estimulantes e tem até um desfecho com atmosfera de thriller, daqueles em que o leitor não consegue largar o livro e come palavras em busca de saber como aquilo tudo vai acabar. Mas o que o romance tem de mais notável é a recuperação de uma época, o registro magnífico do que eram as noites e noitadas de Natal a partir especialmente da segunda metade dos anos 80, num espelho óbvio do que se dava em outras capitais no mesmo período, numa configuração que de fato nunca mais se repetiria daquela forma.

Do Bar do Buraco ao Chernobyl, de uma Ponta Negra dark até uma Redinha em neblina e sombras, está tudo ali, nas aventuras e desventuras sem limites de uma geração que vivia tudo em intensidade máxima, sem saber do futuro distópico de um coronavírus e ainda prestes a ser informada sobre outra ameaça em aproximação,  o HIV precoroniano cujos grupos de riscos soavam muito mais convenientes a quem não fazia parte da tripulação daquele alegre barco a navegar madrugadas infindas.

No livro temos duas personagens que sustentam este Guernica de bares, noites, solidões, encontros e desencontros. Uma vive plenamente as explosões de tal período, a adorável Lady Night de quem o leitor sentirá severas saudades assim que encerrar a leitura afoito pra saber como tudo se resolveu – ou se concluiu, se é possível usar estes termos. Aline, este é seu nome, é uma referência na narrativa inteira que acessamos por meio dos originais do livro que deixou escrito e que caiu nas mãos da personagem viva – embora algo morta – que lê seus relatos e faz com eles a reconstrução daquele período. Maria Eulina é a outra face da moeda onde foi fundido o perfil de Aline, e de tal oposição Clotilde tira o máximo proveito, para deleite nosso aqui do outro lado das páginas. Com essas duas figuras e os figurantes com quem elas interagem no passado recente de Lady Nigh e no presente sem sentido de Maria Eulina é erguida a estrutura do livro e modelada a poesia de um tempo.



   
Muitos viveram aquele período e o retrataram à sua maneira, em Natal e alhures. Lembro da “Crônica da Banalidade” do querido amigo Carlão de Souza, como  lembro da poesia de Ana Cristina César, pra ficar em dois exemplos e não atazanar a pobre memória em decomposição. Mas o que faz de “De repende a vida acaba” algo tão especial é, para além de uma hoje muito aclamada voz literária feminina que décadas atras não era tão comum e fazia falta, é a entrada neste universo a partir de situações bem pouco idealizadas. Tudo é bem realista e de certa maneira comum nas situações de Clotilde engendra. A mente de Maria Eulina é absolutamente condizente com a pobreza dos tempos atuais, não há a busca por uma posição que a coloque na condição de personagem-mito. Nem mesmo com Aline, que se faz cercar o tempo todo de uma encenação que modifica todos os lugares onde chega, há esse tipo de mistificação. As duas são comuns, cada uma à sua maneira – e  é a partir de pessoas comuns, que trabalham burocraticamente na secretaria de alguma coisa sem evolar qualquer angústia kafquiana que este painel de uma vida adulta, emancipada, boêmia e entregue artisticamente à magia das possibilidades é delineado nas páginas do romance de Clotilde.

Quem lembra da autora circulando nos anos 80 no calçadão da avenida João Pessoa em Natal, com aquele seu riso impiedoso que tanto congrega quanto provoca, durante um evento cultural de rua qualquer aproveitando pra divulgar seu livro de poesias “Bilhetes de suicida” há de mesclar imediatamente sua imagem com a da Lady Nigh do livro. Mas como felizmente somos muito mais mútiplos do que imagina a míope classificação social, ali também há lugar para a ranzinice semi-idosa de uma Maria Eulina. As tintas autobiográfica sempre serão uma das matérias primas da boa ficçção e qualquer especulação é mera fuga do que realmente interessa para quem de fato não está entendendo nada. Esta lembrança está aqui dada à dificuldade que tenho em sugestionar o leitor quanto ao que foram aqueles anos, aquelas noites e aqueles grandes encontros numa Natal de fato muito mais disfarçadamente tranquila. Talvez essa imagem da poeta no calçadão diga alguma coisa pra quem me acompanhou até aqui e está incomodado se perguntando, mas de que este rapaz está mesmo falando?

Clotilde Tavares não tem este problema e “De repente a vida acaba” é a prova disso. Uma viagem ao espírito esquecido de uma época que ainda tem tanto a nos oferecer hoje e especialmente amanhã, quando o coronavírus passar. Quiçá muitos leiam seu livro e encontrem, para além do drama que ao fim e ao cabo purifica, a inspiração que de alguma maneira transforma. E eu não estou falando de um livro de auto-ajuda.