terça-feira, 29 de novembro de 2011

De volta a São Bernardo



Até a noite de ontem, por volta das 23h, se me perguntassem qual seria, na minha opinião de cinéfilo bagunçado, qual o melhor filme brasileiro, iria chover no molhado: empate técnico, alegórico e emotivo entre “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Terra em Transe” – possivelmente com ligeira vantagem para o primeiro, já que foi visto pela primeira vez como deve ser todo grande filme, na tela gigante de um cinema, enquanto o segundo só chegou aos meus olhos curiosos via cópia em VHS que, mesmo assim, deixou-se procliticamente embasbacado diante de suas imagens numa tevê Phillips de 14 míseras polegadas.

“Deus e o Diabo”, não. Esse veio num pacote completo – e se gasto um parágrafo aqui para descrever pela milésima vez suas circunstâncias é porque situações marcantes têm total permissão para se tornarem recorrentes. Assisti a “Deus e o Diabo” em idade singular, 18 anos, na tela gigantesca que era montada no Teatro do Parque, em Recife, para exibições em dias sem espetáculo cênico. Fui com minha turma do primeiro ano de Jornalismo da Unicap, a Universidade Católica de Pernambuco. Saí completamente atordoado da sessão, tentando colocar ordem naquele vendaval de idéias, ilustrações, simulações, teses e antíteses que o filme oferecia, para além de sua beleza plástica construída em meio ao aparente caos em que se constitui a escrita cinematográfica de Glauber Rocha. “Deus e o Diabo” foi um rito de passagem, uma missa cultural bem no início do que seria minha vida adulta. Sou eternamente e intimamente grato a quem ou o quê, ou quais variáveis me levaram àquele teatro para ver àquele filme naquela noite.

Agora, aos 45 anos do segundo tempo, as circunstâncias naturalmente não têm o mesmo encantamento daquela tenra idade. Mesmo assim, se a gente estiver com a juventude interna prontinha para mais uma aventura é bem possível topar com outra novidade que nos tira o chão, esse piso cultural onde a força da mediocridade insiste em nos manter presos – e quem entende o que estou falando sabe o quanto é preciso resistir a essa outra forma de gravidade. Foi nessa condição que, entediado entre as prateleiras da locadora da 104 Sul, aquela que deixa você ficar com o filme duas semanas em casa, encontrei a cópia em DVD de “São Bernardo” – o clássico até então quase inacessível de Leon Hirszman.

O livro mesmo eu só li há pouco mais de quatro anos, quando meu filho Bernardo ainda estava na barriga da mãe, Rejane, e a gente, com o apartamento em que morávamos em obras para receber o novo habitante, passava uma temporada na casa do casal amigo Plácido e Marleide. Fazia um calor desgraçado em Brasília nesta época e lendo “São Bernardo” parecia que eu estava na própria fazenda, hospedado na secura existencial de Paulo Honório, aquele universo tão conhecido por que veio do interior, adocicado pela presença de Madalena, pelo menos enquanto sua beleza não ia murchando internamente à medida em que seu marido e proprietário lhe subtraía as flores do espírito.

Todo esse prolongamento de detalhes desnecessário sobre o momento da leitura do livro tem uma explicação que o alumbramento diante do filme, na noite de ontem, só reafirma: “São Bernardo”, livro e agora sobretudo no cinema, é algo tão forte que não dá pra falar dele, ou deles, sem reconstruir o entorno do leitor e do espectador. É o tipo de livro e do filme que mexe com a sensibilidade de quem toma contato com eles, que altera o estado de consciência – sobretudo o filme, com aqueles planos de que falo daqui a pouco. “São Bernardo”, tomado assim puramente, como se fosse possível deixar de lado as escolas cinematográficas, parece um experimento a meio caminho entre o cinema e as artes plásticas. Glauber, desconstruindo Corisco nos lajedos de um chapadão sertanejo, colocando Othon Bastos para girar sobre a própria loucura da realidade nordestina, era um realizador teatral usando o cinema como suporte. Leon, iluminando como um renascentista a expressão de Othon Bastos na mesa tosca da fazenda São Bernardo, ou fazendo Lauro Escorel lamber com sua câmera de Van Gogh despido de flores as duras encostas do sertão, era um artista plástico usando a tela do cinema como plataforma de uma vernissage sobre o Brasil.

E ainda há o adereço singular da música de Caetano Veloso, que vai contornando os desenhos agudos do filme com um lamento entre gutural e rock and roll – como um aboio tocado às avessas que acentua ainda mais o estranhamento íntimo de cada cena. Se “São Bernardo”, o livro, tem a mais ascética prosa da literatura brasileira, nada mais compreensível que “São Bernardo”, o filme, tenha a mais limpa das fotografias da nossa cinematografia. Aquela padrão visual que catequiza mais quando mostra menos, mas sempre compondo muito. Se brincar, “São Bernardo” é visualmente tão impactante que não é nem mais cruzamento de cinema com pintura, mas uma inédita fusão de teatro com escultura fixada em celulóide. José Dumont, o ator, diz no seu livro-depoimento “Do Cordel às Telas” (Klecius Henrique, na série Aplaudo-Perfil, Ed. Imprensa Oficial) que a marca do cinema brasileiro é imprimir densidade e poesia junto com as histórias que conta. Parece estar falando de “São Bernardo”. Um cinema, como diz ainda o ator, que o público americano nunca vai entender, por não estar aberto à complexidade. “São Bernardo” é denso, poético e complexo (tente não se intimidar com a amostra no trecho abaixo).



Tem uma performance tão propositadamente engessada na sua tensão interna de atores, situações e fotografia, que no extremo soa como o mais natural dos filmes. Cinema “natural”, pra quem não lembra, é como eram chamados os primeiros documentários nos primórdios dessa arte-indústria. O que não era natural era ficção: e os planos dos camponeses, possivelmente reais, enxertados ao longo do filme de Leon Hirszman fecham essa conexão entre real, encenado, artificial e natural.

Não há nada mais natural do que o fictício Paulo Honório debruçado na sua mesa tosca, braços semicruzados e olhar fixo na câmera – ou seja, no espectador inquirido pelo ator. Ali há um momento de intersecção de todas as variáveis deste nosso cinema tão variado, rico, pobre e conflituado: Othon Bastos está olhando pra você e lhe contando mentalmente suas tormentas internas, admitindo que o que mais lhe dói não é saber que errou com Madalena, com os empregados e com os homens que matou. O que mais lhe dói é saber que, tendo nova oportunidade, faria tudo de novo, igualzinho.

O que mais incomoda essa criação suprema de Graciliano Ramos é saber que, por mais que queira, ele é incapaz de mudar. É a fala-síntese de um país filmado por meio de um seu personagem. É ficção e é natural. O que mais me dói é que não sou capaz de mudar. Aí estava, no contexto da época, um slogan brasileiro que o tempo, finalmente, vem tratando de corrigir. Assim como uma terra em transe infrutífero, como um terreiro habitando tanto por um Deus miserável quanto por um Diabo em farrapos, também fomos aquela São Bernardo condenada pelo obsessão de possuir terras, animais e pessoas.

Eis porque, desde as 23h de ontem, quando pra relaxar do trabalho tirei meias e calçados e botei o DVD no aparelho pra rodar, quando me perguntarem agora qual o grande filme brasileiro, encontrar-me-ei mesocliticamente em palpos de aranha indecisa. Mas nada como encontrar um novo marco cultural aos 45 do segundo tempo.

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