sábado, 5 de novembro de 2011

Eu e o SUS, o SUS e eu



Muito antes do câncer, vem a dor de garganta. Quem não a teve? Antes da laringite adulta que pode indicar coisa pior, quase todo infante teve sua cota de faringite a implorar por atenção médica. O agora tão discutido – felizmente, embora por vias tortas – Sistema Único de Saúde ainda nem existia – sim, já houve tempos piores sem ele – quando fui atendido em uma unidade situada em suntuoso prédio na cidade de Campina Grande, grande Paraíba, para me ver livre do que os colegas da sexta série ginasial muito antes do aparecimento do CQC e de Rafinha Bastos, chamavam de “tosse de cachorro”.

Os médicos do bisavô do SUS – esse instituto que, quando implantado, teve pelo menos a ambição de oferecer atendimento universal, um tabu da era privatista atual – receitaram um remédio que quase matou o paciente. Mas efetivamente curou a tosse, embora tenha me garantido um trauma pelos muitos e muitos anos subseqüentes. Na impossibilidade de cirurgia para remoção das amídalas – o sonho dourado da minha mãe que sempre foi chegada a um bisturi – devido à fila medida em anos-luz de distância, receitaram-me o martírio de 15 injeções de Bezetacil (ou seria Benzapen que, noves fora o “z” ou o “s” e os detalhes médicos, em termos de dor e trauma, dá no mesmo?). O tratamento era já então de tal maneira traumático para o paciente de 12 anos que o médico recomendou aplicação de 15 em 15 dias, em braços alternados – atenção para esses detalhes, sem os quais eu provavelmente teria sofrido gangrena nos ombros e não estaria aqui pra contar essa história.

Era um tratamento desproporcional para a resistência física e à dor de um menino de tal idade. Mesmo com as injeções marcadas de 15 em 15 dias, aquele dia que ia me apavorando à medida que se aproximava no calendário e durante o qual, com toda certeza, aprontaria um escândalo ao ser arrastado por minha mãe para a farmácia. Mesmo sendo em braços alternados, e não havia outro jeito, porque além da incisão lacerante da aplicação havia a dor macilenta dos dias seguintes, quando o braço aplicado inchava como se houvera sido mordido por marimbondo caboclo. Pra efeito de informação, sei que hoje não se aplica essa injeção a não ser nas nádegas, mesmo em adultos – eu mesmo tive que relembrar o martírio há pouco tempo, felizmente em dose única. O fato é que sobrevivi, caso contrário não estaria aqui contando a história – detalhe: depois de 11 injeções, o tratamento foi dado por encerrado. Deveria odiar o SUS, pois não? Nem que fosse por um tipo de ódio que mistura aversão política com fracassos pessoais em nada relacionados com os tentáculos do poder público, como tem se tornado tão comum hoje em dia. .

Toda criança daqueles distantes anos 70 que de alguma maneira se arrumaram na vida adulta acabaram, naturalmente, nos braços de um plano de saúde privado no final do milênio e pelo novo século em curso. Como as coisas práticas da vida, é o tipo do processo que acontece quase sem que se perceba. Não lembro de ter contratado jamais um plano desses – embora não queira ter aqui a hipocrisia de afirmar que não o desejaria caso não tivesse um. Ocorre que no pacote profissional de cada emprego ele sempre veio como salário indireto, o que me livrou das horas de espera perdidas nos prontos-socorros públicos que, nós, classe média assentada ou ascendentes a essa condição tão bem conhecemos felizmente só por ouvir falar.

Mas a experiência prática não esgota nada, a não ser para quem tem a arrogância pequena de se contentar com a explicação mais fácil, rápida e aparentemente indolor – ou seja, infelizmente, para grande parte das pessoas (e o twitter está aí para provar isso na timeline de qualquer usuário). Para quem luta pra fugir desse grupo, há mais informações, circunstâncias, ponderações e curiosidades do que supõe o mero desabafo em 140 caracteres. Tenho colegas dos tempos universitários que fizeram da construção do SUS suas vidas – os mesmos que hoje fazem da tentativa possível de melhoria do sistema o motivo imediato de saírem de casa todos os dias. Com Guia Bezerra, conterrânea que não sabe quem é Arnaldo Antunes (chega a ser engraçado, mas a graça aqui é outra) de tão enfurnada que vive no mundo do serviço social associado ao atendimento de quem só tem o SUS para se socorrer ali na região de Canguaretama (RN) e adjacências.

É por meio desses colegas e da informação geral que circula por aí se você não restringir seu mundo intelectual à leitura distraída da “Veja” que qualquer um pode ficar sabendo que há áreas específicas em que o SUS é, sim, fera. Se o sistema é falho no atendimento geral e imediato do tipo virose tropical de verão – um papel que a rede privada, na falta de concorrência pública, vem assumindo, diga-se que já com certa negligência diante do consumidor adoentado – é sabido que ele tem sido também de excelência em áreas especializadas pelos quais os convênios particulares não se interessam, por questão de escala, em assumir. Convém lembrar que, antes do qualquer coisa, o setor privado de saúde é um ator econômico movido pelas variáveis próprias dessa condição.

Claro que há as questões gritantes na rede pública, como o salário médio de um médico em torno dos R$ 1.600 – um valor obviamente ridículo, injusto e desproporcional. Mas qual foi o médico que não adestrou na precariedade do SUS suas ferramentas de diagnóstico, seu estágio inicial, seu contato com o mundo real de vírus e bactérias que dizimam populações sem recursos antes de fugir para o ar rarefeito das clínicas e hospitais especializados que às vezes lembram mais hotéis do que unidades de saúde, inclusive no preço cobrado e na renda embutida no que deles extraem os grandes convênios particulares? O questionamento feito por meio do twitter sobre o ex-presidente Lula ter ido se tratar num grande e caro hospital e não numa unidade do SUS – que ele, numa evidente bravata de quem está por cima e respira bajulação por todos os lados, dissera ser “quase perfeito” – tem sua legitimidade. Mas me refiro aqui ao questionamento em si, isolando dele, como num procedimento laboratorial que nem todo mundo faz, deseja ou se importa em fazer, o víeis de preconceito social embutido na, vá lá, denúncia. Lula é questionado pelo que disse e deve estar sujeito a isso como qualquer um de nós, simpatizantes ou não de sua figura. O riso de escárnio está fora desse padrão – aí já estaremos no terreno aberto do apedrejamento movido por outros condicionantes.

Mas tão legítimo quando o questionamento público da sua bravata – desde, repito, que seja feita com o distanciamento que o preconceito social quase nunca permite – é também o questionamento do questionamento. Ficou confuso? Não é o caso: se qualquer brasileiro tem legitimidade para dizer que, se disse que o SUS era perfeito, Lula deveria ter recorrido a ele e não ao Sírio-Libanês, também está coberto de legitimidade quem fareja nessa sentença um último desdém para com o presidente da República que veio do operariado, originário do Nordeste rural, proveniente do Zé Povinho sem título universitário e por aí afora. Senão, como disse o colunista do Correio Braziliense, por que não fizeram a mesma cobrança quando o José Alencar vice-presidente proveniente do mundo da indústria se viu às voltas com o combate dos múltiplos cânceres que afinal o levaram?

Razão pela qual o caso Lula-SUS-twitter revela-se um daqueles episódios emblemáticos que fazem todo mundo parar para pensar, um instante depois da piada pronta, sobre afinal de que se está falando. No mínimo, vai servir para abastecer – ou variar um pouco – a pauta de um jornalismo mais preocupado com a eloqüência da manchete do que com a informação real, deitada em berço esplêndido ou decadente à espera de um repórter honesto que a tire daquele lugar. Claro que, no final das contas, por mais que a reportagem recoloque as coisas minimamente no lugar – como dizem ter ocorrido no caso Lula-SUS – sempre se pode esperar o seu contrário do editorial assumido com esse título ou diluído no tom dos textos: o SUS não funciona, e pronto. E como, para além da denúncia, é conveniente que não funcione: quanto mais morre o sistema único de saúde, mais cresce o aparato privado da doença.

O que nos leva ao ponto mais límpido – e ocultado com lixo hospitalar – dessa discussão: não basta que o SUS realmente não preste em seu funcionamento, estrutura, salários e falibilidade total; é preciso destruí-lo na última mas importante e singular porção do que ele representa: a intervenção pública, geral e universal. O que me leva a declarar o oposto: se o SUS, pelo qual tanto se lutou, é hoje um fracasso total, é defensável até o último minuto pelo conceito que contém. Este conceito é uma promessa de democracia real no tratamento de saúde que, embora não concretizada no dia a dia dos ambulatórios (mas vista em muitos tratamentos especializados), merece ser salva dessa UTI mercantilista que nos tira o sangue, a sensibilidade, o raciocínio e até a sagacidade de um brasileiro que, francamente, já foi mais esperto em não se deixar enganar pelo primeiro twitter que lhe cai na timeline.

Tá certo: conceito não cura ninguém. Não mesmo, individualmente falando. Mas não há nação de pé sem um conceito mínimo de cidadania por trás para sustentar a dignidade do seu povo. Quanto à bravata, é de se concluir: daí ao SUS o que é do SUS e a Lula o que é de Lula, noves fora os preconceitos mais insuspeitos que andam aí na rede social ou nas ruas.

Um comentário:

  1. Olá Tião....
    Tomei a Liberdade de compartilhar seu post em uma rede social, que entre outras coisas está discutindo sobre a saúde no Brasil... Apareça e comente. Eniqueça nosso debate com suas opiniões.
    Acesse a REDE FAP: http://migre.me/66hCT
    Obrigada

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