quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Considerações em torno do Palhaço




Meu Holden Caufield foi Pedro Bala. Meu "Apanhador no campo de centeio" foi "Capitães da Areia". Meu Chaplin, Renato Aragão. Meu Lennon, Zé Ramalho. Porque no interior nordestino dos anos 70, tudo era mais lento. Mas não se engane, tudo era mais sólido. Tudo rendia mais, possibilitava muito - e desse tudo não se costumava desprezar nada. Era como a metáfora escolar preferida pelas professoras primárias da época, a da carnaubeira, palmeira da qual nada se perdia, dos frutos às fibras. Essas notas me chegam a reboque de filmes vistos recentemente, como a adaptação do "Capitães da Areia" pela neta de Jorge Amado, que traz de volta um livro fundamental e iniciático; e o segundo Selton Mello, "O Palhaço", onde a atmosfera é de certa urbanidade de hora do ângelus no interior do Brasil que transpira anos 70por todos os frames.

Naquela infância construída tijolo a tijolo, Woodstoock não chegava a ser nem uma lenda, John Lennon não habitava sequer este mundo - motivo pelo qual não podia mesmo ser mais famoso do que Jesus Cristo, este sim muito presente - e o criador de Carlitos só viria a ser divisado por trás dos óculos para correção de 3 graus de miopia no final do período, em tardes dominicais de uma tevê Globo muito comentada e a muito custo sintonizada - éramos súditos inocentes da massa falida da Rede Tupi de Televisão.

Tenho idade e história de vida suficiente para haver visto desfile de circo rodando as principais rua da cidade, anunciando a novidade instalada em terreno baldio generosamente iluminado logo mais à noite em município de raros aparelhos de televisão. Por isso me fala muito ao pé do ouvido o recado visual do novo filme de Selton Mello, onde tal desfile é reconstruído em toda sua humildade. "O Palhaço", a pretexto de afirmar a validade da vocação artística mesmo - e principalmente - nas circunstâncias mais desfavoráveis, é como uma novela literária em audiovisual que afaga com doce tristeza de inconformismo contido as várias faces do que havia naquele mundo. É como um "Bye Bye Brasil" atualizado e melancólico, menos alegórico e mais realista, embora vastamente poético, com a Caravana Rolidei travestida de Circo Esperança, buscando o cantinho livre que restou no coração abandonado pelo Brasil globalizado. Brinca com a noção de tempo e lugar para reafirmar sua tese intimista sobre aquilo que seria pedante chamar de identidade.

“O Palhaço” é sóbrio e silencioso. E muito menos desolado do que dá a parecer: ocorre que se apega à mais elementar noção de validade das coisas e da vida para dar a volta por cima sem recorrer ao espetáculo. Espana com delicadeza o supérfluo da vida – aquela porção de ruídos que mesmo o materialmente mais pobre ser humano sempre teima em portar – para deixar límpida a essência da pessoa. É pobre e pungente como aqueles desfiles que vi em pequeno, com um arsenal de tipos humanos semiliterários que em muito lembra os artistas de circo que, batendo estacas na montagem da empanada do meu tempo de menino, metiam-me um medo do qual nunca mais esqueci. É um filme sobre o nomandismo interior do ser humano, seja um palhaço ou um doutor. Uma cartilha em sépia, com manchas de café vespertino, bem do tipo que se bebia de tarde depois de tomar banho na chuva, sobre os percursos que nos são dados a percorrer sem que a gente entenda com total racionalidade o porquê.

A escritora e multiativista dessa vida que é Clotilde Tavares me emocionou de maneira parecida à que fez o filme “O Palhaço” quando escreveu no seu “A Magia do Cotidiano” (A Girafa Editora, 2005) – um falso livro de auto-ajuda, um guia para balançar nossas estruturas acomodadas – que toda família deveria sentir-se privilegiada quando nela surgir alguém com vocação artística. Porque o artista tem essa sétima sensibilidade que não vibra facilmente sobre a cabeça da grande maioria de nós. “Precisamos compreender que quando uma família tem o privilégio de abrigar um artista, deve acolhê-lo como uma bênção divina e cuidar dele, estimulando seu desabrochar com muito carinho. O artista tem uma missão especial, que é contribuir para aumentar a beleza do mundo. É um afilhado das musas, um ser especial, uma alma eleita entre as outras almas, e os deuses velam por ele”, diz Clotilde no seu livro, sobressaltando a nossa sensibilidade como as benditas armas da artista que ela própria é.

As palavras de Clotilde encontram uma tradução mais que perfeita na terça e última parte do filme de Selton Mello, quando enfim o palhaço em crise recoloca o nariz de bolinha vermelha sobre sua alma apascentada. O diretor consegue, a partir deste momento, uma ligeira mas rara mágica de encenação: o filme como que se ilumina por uma nova luz na recriação de cenas que a gente já viu antes em penumbras. Mas sem rufar de tambores, sem atabaques de chegada da cavalaria, sem monólogo para o Oscar. Com moderação, calma e até uma certa desconfiança que casa muito bem com o que vem sendo dito desde a primeira linha dessa conversa aqui.

Ocorre que, se há uma explicação para que Lennon, Salinger e Chaplin não conseguissem penetrar com força globalizada pelo sertão adentro nos anos da minha infância interiorana – e espero que ninguém leia isso aqui com nota de reserva aos artistas acima citados, mas como registro de assimilação diversa – é o fato de a desconfiança tática e incorporada ser uma marca de nós outros, que do interior viemos e quem sabe para ele retornaremos. Ninguém se fazia famoso da noite para o dia no sertão da minha infância: era preciso vencer um certo chega-pra-lá natural da platéia que se queria conquistar. Ou pelo menos falar o nosso idioma, em linguagem figurada ou não.

Não por outro motivo, fiquei sabendo sobre a existência de um moço de nome John Lennon na noite do dia em que ele foi assassinado, por sinal por um lunático portando o livro de Salinger na algibeira. Não fora a notícia bombástica numa edição de imagem chuviscada do Jornal Nacional e a conseqüente enxurrada de subprodutos noticiosos na televisão e nas capas da revista Manchete, o homem ainda seria um desconhecido, menos famoso do que, permitam o exagero, Frei Damião. Holden Caufield era mais anônimo ainda na única biblioteca pública onde se conseguia o “Capitães da Areia” que passava de mão em mão com seus poderes de nos fazer idealizar a liberdade das ruas metropolitanas sem precisar correr seus riscos. E o criador de Carlitos só habitaria as pupilas ainda nem um pouco fatigadas quando, morta a Rede Tupi de maneira tão peremptória quanto John Lennon, “O Garoto” e outras aventuras viessem a preencher nossas tardes dominicais diante da campeã de audiência de retransmissora recém-implantada.

Não é que as mudanças não viessem e os novos ídolos não entrassem de fininho na sala das nossas cabeças em formação. É que tinham de fazer isso assim esmo – de fininho, pra vencer a resistência natural de quem, tendo acesso a tão pouco, naturalmente examinava tudo com muito mais cuidado e, nisso, desfrutava mais. Como explica o geólogo e engenheiro Miguel Arrojado Lisboa, em ensaio publicado na revista “Semiárido”, editada pela Câmara dos Deputados (Agosto 2010) e que tempos desses me caiu acidentalmente à mãos.

“O sertanejo, como todos os filhos do deserto, é astucioso não só por necessidade de defesa do meio hostil, como principalmente para prevenir-se contra os régulos que o meio e o regime colonial implantaram e ainda perduram no nosso interior”, diz o texto que vasculha a geografia externa e humana da vida sertaneja, mais de uma vez empregando as qualificações de sobriedade, perseverança e espírito observador para caracterizar seu personagem histórico e social. Não sei até que ponto tudo isso mudou com a chegada do Google e do YouTube – e mudou, não há como. A questão é a medida, um parâmetro firmado ao longo da tradição e que, como tal, implanta memórias e réguas para o futuro mais inesperado. Na rebordosa do forró-lixeira e da democratização segmentada do que já nem vale mais a pena se chamar de comunicação de massa, parte daquele saudável pé-atrás já deve ter entrado na dança.

Mas ainda há de existir uma espécie de gente inocente no mundo de onde eu vim que só soube ontem quem foi mesmo esse tal de Steve Jobs – e é nesses últimos desinformados sem pressa que deposito as melhores fichas das minhas apostas na boa qualidade do ser humano do futuro.

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