segunda-feira, 26 de março de 2012

Leituras desabaladas



De Boni ao criador da literatura de Cordel, da Paris do Terror aos botequins cariocas, uma viagem regressiva aos primeiros livros apreciados com calma neste ano apressado

2012 está sendo um ano veloz, divertido, com mudanças engatilhadas e feriadões sem qualquer espécie de desperdício. Já tivemos o Ano Novo em Natal, o carnaval em Pernambuco e vem aí a já tradicional Semana Santa em Caldas Novas, onde o turismo de massa interiorano faz a gente botar a soberba de molho em águas quentes abastecidas de tranquilidade. Já fomos a Pipa, já passei uma semana com os meninos no janeiro parelhense, já visitei os cunhados Sandra e Novo nas fervuras do alto verão caicoense, já comecei o ano bronzeando manhãs e tardes na praia de Ponta Negra, enfim, se a promessa para os próximos doze meses feita na passagem de ano  – na praia, em Pirangi, no meio de uma multidão festiva e de uma família animada – era, digamos, aproveitar a vida, hedonisticamente falando ela está sendo cumprida até o último segundo de cada noite antes de dormir. Mas o assunto em questão, como é tão comum neste blogue e no seu associado Hamaca de Poti, não tem nada a ver, ao menos diretamente, com este parágrafo de abertura. Indiretamente, sim, há possibilidades de ligação.

Vejamos: talvez seja por isso, por este 2012 estar se saindo tão eficaz nas suas determinações de, sejam quais forem os problemas, fazer a da vida uma diversão possível em 365 dias sem culpa, que o leitor bagunçado que o escreve esteja desempilhando um livro após o outro desde que janeiro chegou. Dezembro, melhor dizendo, que se cronologicamente não faz sentido, do ponto de vista das repartições do tempo que a gente faz com a arbitrariedade que a vida de cada um permite ou exige, este 2012 começou um pouquinho antes. O que se quer dizer com tamanhos rodeios aqui  é que ainda nem acabamos março , o mês três do calendário, e este leitor bagunçado já sorveu sete títulos em leituras diria feriadas de tão divertidas e proveitosas quanto o ano que flui em desabalada carreira. Confira na lista atualizada na Hamaca: tem “O Livro do Boni”, do próprio; “Biografia Prematura”, de Fernando Meirelles; “O Verso e o Briefing”, de Clotilde Tavares; “TerraMarEAr”, por Ruy Castro e Heloisa Seixas; “Um Conto de Duas Cuidades”, o clássico de Charles Dickens e os recentes “Estórias Abensonhadas”, de Mia Couto, e “A Privavera do Dragão”, de Nelson Motta. Faltava deixar aqui umas notas atrasadas sobre quase todos eles – a exceção fica por conta dos dois últimos, um deles já tema de publicação anterior e apressada como tem que ser; o outro, guardado para texto mais à frente.


O LIVRO DO BONI
Desde janeiro, o risco de você ligar a televisão em sinal aberto ou a cabo e dar de cara com a carotonha do senhor José Bonifácio de Oliveira Sobrinho é quase igual à de esbarrar com as bochechas reduzidas de Fausto Silva ou com a voz cansada de Galvão Bueno. É curioso:  nunca antes na história da televisão brasileira aquele que foi seu mais poderoso homem apareceu tanto no próprio veículo que o consagrou quanto agora, quando está aposentado.

Boni, por causa do natural marketing de vendas do livro – tão bom por ter tanto o que contar  que dispensaria tudo isso, mas quem é louco? – tem sido presença constante em dez entre dez talquishows da tevê brazuca. O antes todo poderoso, que depois virou uma espécie de ressentido-mor pela exclusão do círculo do poder (rivalizando com o recém-falecido Chico Anísio) reaparece agora na figura do memorialista que dá bronca e ensina à rapaziada como é que as coisas têm que ser.

Abstraídas essas circunstâncias – e os momentos de soberba memorialística que não haveria como deixar de existir nas suas 500 tantas páginas – o “Livro do Boni” deveria ser leitura obrigatória em cursos de Comunicação, Televisão, Rádio, Multijornalismo, Publicidade e afins. Todo mundo que tem a menor ligação que seja com o trabalho em televisão deveria ter a humildade de ler o que a soberba – em grande parte justificada – do Boni imprimiu no papel de suas lembranças.

Porque o livro é, antes de qualquer coisa – claro que ler de olho nas histórias de bastidores do tempo em que ele reinou na Rede Globo é um pequeno prazer, confesse – uma gigantesca e informal aula sobre comunicação. E não apenas no que se refere à emissora de tevê mais poderosa do país. Porque ao longo de seu livro, Boni vai revelando ao leitor atento como é possível estabelecer uma comunicação cada vez mais gradativamente abrangente com o conjunto médio da população de um país grande, diversificado, multicultural e por tudo isso tão caótico quanto criativo. E isso se dá desde o início  na publicidade – cuja leitura me lembrou os tempos da Faz Propaganda, no artesanato diário com o mestre Solino em Natal – até os grandes marcos televisivos com que ele demarcou seu território neste governo à parte que se tornou a Rede Globo no Brasil.



BIOGRAFIA PREMATURA
Melhor do que ler o “Livro do Boni” é ler, logo depois dele, a “Biografia Prematura” que o cineasta – e também ex-diretor de filmes publicitários – Fernando Meirelles escreveu para a série publicada pela Imprensa Oficial de São Paulo (íntegra disponível, grátis, na internet. Dá um Google aí que acha). É como se você estivesse lendo o “Livro do Boni II”, uma espécie de continuação acidental, em que outro homem de comunicação, embora na área do cinema (e tendo vindo da mesma publicidade que gerou o executivo global), conta sua história, seus truques, suas circunstâncias.

Dá a impressão de que Meirelles – e não Boninho – é o verdadeiro filho do homem: mudaram os meios, mudou o público, alterou-se o caldo de cultura onde o elemento comunicativo (livro, filme, programa de tevê, site ou o que seja) vai tentar cravar sua flechas; mas tem gente nova aberta ao tal inconsciente coletivo brasileiro fazendo suas tentativas e tendo sucesso. A trajetória de Meirelles é muito menos ritual, menos formalística e absolutamente mais desprovida de de chances de acertos do que a do Boni da era da tevê zero ponto zero, mas a essência de um e outro é a mesma, nos dois livros: a capacidade de ouvir, processar e devolver para a audiência o resultado deste entendimento. Boni não é só um homem de televisão, Meirelles não é apenas um talento do cinema: ambos são dois brasileiro munidos de um atributo capaz de tocar corações e mentes: o poder da comunicação. (P.S: foi o primeiro livro que li em tablet, excelente, lúdica e ágil experiência; aprovado)



O VERSO E O BRIEFING

Comunicativa como ela só, Clotilde Tavares não tem compromisso com o Oscar e muito menos com a programação da tevê brasileira. Mas tem todo o comprometimento do mundo com a cultura nordestina e aquilo que ela tem de único, só nosso, engendrado e burilado no meio país ou país e meio que vai de Pernambuco ao RN, essa pátria à parte onde reinam Ariano, Cascudo e José Lins, pra ficar em apenas um representante de cada uma das etnias humanísticas dos distintos mas tão comuns territórios. Pois Clotilde Tavares, a partir da sua varanda na avenida Miguel Castro, cidade do Natal, estampou para quem quiser ver a figura de um outro homem de comunicação de feitos notórios; embora semidesconhecido.

O nome dele é Leandro Gomes de Barros e se isso não diz nada pra você não estranhe:  por ter nascido e vivido longe do circuito que gera e faz circular país afora seus conceitos e ideias, é quase natural – mas noutro sentido, será sempre um absurdo – que Leandro Gomes da Silva seja um desconhecido. Pois se trata aqui do nordestino que consolidou a chamada literatura de cordel, tema de “O Verso e o Briefing”, livro em que Clotilde Tavares examina como essa forma de comunicação abarca em si a publicidade regional. Uma curta mas saborosa viagem pelo mundo dos poetas e cantadores que a modernidade vai abduzindo da vida urbana nordestina.



TERRAMAREAR
Depois, veio o aguardado “TerraMarEAr”, coletânea de artigos sobre viagens do casal Ruy Castro e Heloisa Seixas, em que a dupla vai da Paris da Revolução Francesa – pra ver que no livro o conceito de viagem vai muito além do literal, o que é ótimo – aos botequins cariocas, onde os autores podem provar iguarias populares sem se dar ao trabalho de comprar passagens ou fazer as malas. Tudo é viagem no livro de Castro-Seixas: seja uma chegadinha às paisagens de Saint-Tropez consagradas pelo filme “...E Deus Criou a Mulher”, seja o mergulho de batismo nas grutas submersas de Fernando de Noronha.


Mas o filé, por incrível que pareça – e eu já avisei algumas linhas acima que o conceito de viagem aqui é mais elástico do que permite a leitura mais literal – é o passeio à cidade onde moram os personagens de desenho animado que já tiveram fama e fortuna e hoje curtem, tanto quanto possível, a decadência e o semi-anonimato. Ali onde Mickey Mouse comemorou com estardalhaço seu  sexagésimo aniversário ou onde o ex-bruto Brutus que infernizava Popeye recolheu-se à vida doméstica e fora do armário na companhia dos  Sobrinhos do Capitão. É uma viagem hilária, do tipo que não se pode ler quando se está a caminho de casa no ônibus – ao ouvir as risadas que não se consegue nem se está interessado em conter, vão pensar que você é um abilolado intelectual que ainda consome livros, se é que ainda se usa ir pra casa de ônibus.
UM CONTO DE DUAS CIDADES




Se você não é chegado a essas liberdades narrativas e prefere algo melhor encadernado pela costura do tempo, faça como eu, arrisque-se a ler um autêntico clássico e veja o que estava perdendo. “Um Conto de Duas Cidades” foi meu primeiro Dickens, a quem cheguei estimulado pela leitura de uma reportagem de revista sobre uma data comemorativa relacionada ao escritor inglês.
Ao lado de Shakespeare, Dickens é , como se sabe, o grande autor do país de Kate Midletown. E no mundo dos cultuadores contumazes dos grandes autores, quem gosta dos ingleses e não é fã de um é discípulo de outro. No filme “Além da Vida”, de Clint Eastwood, o médium vivido pelo ator Matt Damon é um aficionado por Dickens, autor mais conhecido por seu romance “David Coperfield”, difícil como diabo de se encontrar nas livrarias e até nos sebos.
Mas tudo isso é firula e perde completamente a relevância quando se inicia a leitura deste “Um Conto de Duas Cidades” – e, imagino, de qualquer outro dos seus livros. Abre-se diante do leitor um panorama de uma época grandiosa e sangrenta, a imediatamente antes e o logo depois da Revolução Francesa, com painéis paralelos que mostram, de um lado, a brutal exploração e a inimaginável miséria dela resultante entre os franceses dos dois lados deste muro antes de a revolta explodir; de outro, a sede de vingança que vem depois e anula, babando sangue em praça pública, toda a justificável mudança de ordem que a antecedeu. Falam muito da “Revolução dos Bichos”, de Orwell (que este leitor bagunçado não leu), mas isso aqui é cinema-verdade na tela leitora da sua mente. Muito além da mera metáfora.
“Um Conto de Duas Cidades” – o título se refere a Paris e Londres ao tempo em que esses acontecimentos históricos se davam – pareceu, aos meus olhos atuais, uma imensa reportagem sobre os fatos da época, com personagens incisivos colhidos no momento de suas ações e reações, escrito em prosa semi-ensaística de legível barroquismo, em frases tão extensas quanto ansiosas, como se Dickens fora um antepassado de José Saramago metido em querelas políticas de outras tonalidades e anteriores  à crítica da globalização que o português tornou um adesivo à sua figura de escritor.
A extensão não prevista da postagem não recomenda, mas quem chegou até aqui merece a reprodução de pelo menos um trecho para entender de que prosa se está a falar: o parágrafo em que Dickens entra com a gente nas masmorras onde os condenados pela fase que ficou conhecida como “O Terror” esperam o beijo da guilhotina em seus inúteis pescoços . “Na escura prisão de Conciergerie, os que deviam morrer aguardavam seu destino. Eram em número igual ao das semanas do ano. Dos vagalhões da cidade para o oceano eterno e infinito, cinquenta e duas cabeças rolariam naquela tarde.  Antes que esvaziassem suas celas, novos ocupantes eram designados; antes que seu sangue se misturasse ao sangue derramado na véspera, aqueles que se misturaria ao deles já estava separado.”

domingo, 18 de março de 2012

Meus diários sem motocicleta




Como fazer um filme render um pouco mais a cada vez que é visto. E ainda evocar os amigos que com quem a gente foi construindo as várias etapas de um negócio complicado, divertido, belo e surpreendente chamado vida




A primeira vez em que assisti a "Diários de Motocicleta" achei o filme propositadamente largado, como se fora essas bandas de rock atual que, copiando o desprendimento pop de Los Hermanos, apresentam-se em camisas quadriculadas e tá bom demais. Quanto menos glamour, mais verdade - o que, evidentemente, acabou virando outro clichê, ou seja, uma nova inverdade que acabou de ser inventada e assimilada. Ao filme: a culpa pela má impressão foi mais minha que dele. Já disse uma vez neste gasto blogue mal alimentado que a apreciação de um filme depende muito de um certo elemento exterior à luz, ao roteiro, à interpretação dos atores, ao estilo visual, ao ritmo e todos os outros quesitos pelos quais a fita na tela ou no DVD caseiro pode ou não nos atingir em cheio. Este estranho elemento somos nós mesmos, a nossa disposição naquele dia, o clima interno segundo a meteorologia pessoal do momento. Digo isso com base em minha recente (recente?) experiência de assistir a filmes (no cinema, em casa já houve avanços) quando posso e não exatamente quando quero. Sou do tempo - essa digressão vai longe mas já-já eu volto ao ponto - em que se tomava banho e se vestia uma roupinha legal para sair de casa naquele passeio quase ritual rumo ao cinema da rua. Isso aí ficou impregnado até hoje - não tem banho que tire ou pelo menos desbote. Como as circunstâncias mudaram, vejo-me procliticamente obrigado a ir ao cinema depois do trabalho - resultado: quem sofre é o filme, sobre cuja pessoa eu despejos meus incômodos. Pra resumir: um cansaço acumulado de uma jornada de trabalho é, pra mim, a melhor maneira de estragar um filme de que, de outra maneira, eu iria gostar muito.


Foi isso o que aconteceu com minha estreia em "Diários de Motocicleta" em sala escura e tela grande. Mas não apenas isso: havia uma expectativa por algo grandioso que o filme, obviamente, não é (e nem interessa se ele avisa isso num letreiro logo no início, que expectativa é que nem hábito, não sai no banho nem a poder de bucha seca). Enfim: esperava um painel latino de cores fortes, uma visão mais apaixonada de um homem por seu continente, algo mais apegado e menos distanciado do que o que me trouxe o filme. Intoxicado por essa expectativa, achei que Walter Salles quis fazer um filme "tipicamente independente", com aquela aura cool que acabou desprezando o calor de nosotros. Em parte, ele fez isso mesmo. A questão é que, ao fazer esta outra opção, ele também fez um filmão, embora com cara de filminho.


Só precisei rever "Diários de Motocicleta" mais uma vez para entender o engano em que caíra na primeira exibição. E passei a gostar cada vez mais do filme, progressivamente mais (permitam a redundância, mas preciso dela para dar conta do que pretendo dizer), abrindo novas portas a cada vez que o vejo e vejo de novo. E olhe que revejo muito este filme. Hoje mesmo o fiz. E depois de me deter, nas exibições anteriores, em aspectos como a forma intimista e quase sutil como o filme mostra o amor que o personagem devota à gente de seu continente, ou o tom quase documental de sequencias como aquela em que visita uma espécie de feira nos belos cafundós do Chile, ou ainda de passar o filme inteiro somente absorvido pela beleza deselegante e meio encabulada de campos e pequenas cidades por onde passam os amigos Ernesto e Alberto; depois de tudo isso, na exibição de hoje dei-me conta de que, além de ser um "filme de estrada" (se é o caso de catalogar e explicar seu fascínio para quem por ele se deixa fascinar), este é também um "filme de formação". Ok, tudo isso é muito óbvio, mas hoje, pra mim, sobressaiu, muito mais do que a juventude de um futuro mito, a convivência de uma dupla de amigos recriando a vida em aventuras em comum numa determinada fase da existência. Não sou Guevara, não desci de Sierra Madre, tampouco tomei Cuba para os braços do sonho da igualdade revolucionária mas hoje assistindo a "Diários de Motocicleta" me lembrei dos amigos em comum com quem dividi períodos ricos da minha vida pequenina e invisível.


Grandes amigos e dificílimas figurinhas premiadas como Ítalo, Gilton, Tonho, Augusto Cesar, Jano, Carlão, Adriano, Renato e Plácido - estes dois últimos já na fase atual em Brasília. Cada um deles foi um companheirão nas jornadas que vão da infância no interior à juventude na capital, da descoberta de uma profissão às vivências da maturidade. São personagens do meu diário sem motocicleta, mas cheio de bons momentos. Esse post é dedicado a eles, todos eles.

quarta-feira, 7 de março de 2012

Gabo, 85



O primeiro Gabo vinha já trazia um assassinato sob encomenda, ruelas saturadas de cores latinas, parentescos e paixões carnais e cruzadas. Era “Crônica de uma morte anunciada”, que capturei entre as jóias dispersas nas estantes da biblioteca municipal de Parelhas, interior do RN, cidade onde cresci. O acervo,  mal sabíamos nós inocentes aprendizes de leitores, continha um vasto manancial de pepitas numa cidade pequena e sem livrarias. Faltava um orientador, um cérebro capaz de tanger as aventuras literárias dos infantes. Mas, com na ausência reside a força, eu e os amigos nos metíamos entre aquelas estantes e, sabe-se lá com base em quais desígnios, separávamos o lixo cívico tão em voga nas infâncias dos anos 70 da moeda literária forte que também, como por milagre – nada a ver com o econômico de então – ali existia.

O segundo Gabriel Garcia Marquez deve ter sido mesmo o tijolo fundamental dessa América de nosotros, “Cem anos de solidão”, que certamente eu consegui em outra biblioteca. Um parênteses para encaixar a realidade dessa circunstância nas facilidades dos dias atuais: livros, naqueles tempos de estudante, raramente saiam do próprio bolso; livrarias eram vitrines onde o desejo fetichista de adquirir este ou aquele outro título se contentava em apenas projetar-se nos reflexos. “Cem anos”, então, tenho quase certeza, veio da Biblioteca Central da UFRN e foi devidamente devorado numa daquelas férias no interior em que se dava um tempo da universidade ocupando por tardes memoráveis de evasão mental os bancos da praça da cidade do interior. O clássico absoluto de García Marquez, nesta condição, fez companhia a coisas como “A ilha”  e “Olga”, de Fernando Moraes, e “O cavaleiro da esperança” e “Tocaia grande”, de Jorge Amado.  O banco da praça continua lá e pode confirmar tudo isso. Anos mais tarde houve uma releitura a partir de um volume baratinho, desses de promoção das bancas, adquirido num feriadão em Fortaleza. Releitura é o máximo: a gente esquece da importância das vitaminas para o corpo e fica só sentindo o gostinho do prato.

Depois da primeira leitura de “Cem anos”, veio “O amor nos tempos do cólera”, aquela leitura prazerosa que se faz quando já se estabeleceu uma sintonia anterior com um dado autor. Gabo era como vizinho, companhia para os dias de domingo enquanto o sol e o vento natalense batiam com carinho nas vidraças da janela da Residência Universitária Campus I, apartamento 11 – o célebre  apartamento 11, permitam esse enxerto – onde fez companhia a Bukowski e um bocado de malditos de estimação.  “O amor” foi o primeiro Gabo de próprio bolso, resultado da renda de repórter iniciante, tomado pela paixão a um ofício. Bons tempos.

Recentemente, Gabo reapareceu nas mais de 500 páginas em espanhol de “Viver para contar”, que comprei em Buenos Aires e li no original, certamente perdendo muito da informação objetiva que o livro traz mas tão certamente quanto saboreando muito mais a musicalidade da escrita primeira desse texto memorialista. “Viver para contar”, como acontece com livros marcantes, sempre vai me lembrar o tempo e lugar em que foi lido, no caso dele os oitões, sombras de árvores e calçadinhas da casa onde morei no Lago Norte, em BSB Citi. A edição propriamente dita caiu no fosso de um momento de extremo desapego que me acometeu quando nos mudamos da casa de volta para este apartamento aqui no Sudoeste. Doei pilhas de livros para uma escola pública de segundo grau na Asa Norte, entre eles meu “Viver para contar” salpicado de grifos e ainda cheirando à ansiedade que vazava dos meus olhos enquanto o decifrava com meu espanhol de terceira.

Outros Gabo virão antes que o próprio complete os cem e se iguale em longevidade ao arquiteto brazuca que todo dia ri da morte.

sexta-feira, 2 de março de 2012

A arte do silêncio



Há filmes que são uma evocação (“Cinema Paradiso”), como há outros que são uma epopeia (“O poderoso chefão”). Há filmes que são um poema (“O Carteiro e o poeta”), como há filmes que são um ensaio (“A árvore da vida”). Há filmes que são uma fantasia (“O mágico de Oz”) e há outros que são uma denúncia (“São Salvador, o martírio de um povo”). Há filmes que são um libelo (“Cabra marcado pra morrer”) e há filmes que são um hino (“Hair”).


"O Artista” é um estudo. Nada professoral, nunca pedante, jamais formal, de maneira alguma didático, mas um estudo, sempre, mesmo quando não parece – e quase sempre isso acontece. É um compassado estudo áudio e visual sobre como uma mudança de tecnologia pode interferir na poesia narrativa e na magia encantatória de uma arte como o cinema. Filmado em branco e preto, naquele formato dos filmes mudos e praticamente sem falas (mas com ruídos e intervenções sonoras meticulosamente precisas para sensibilizar a audição visual do público), “O artista” passa como uma valsa dos anos 30 na nossa frente, dançando na sua melodia evolutiva muito própria, enquanto discorre, disfarçadamente como um mágico de calçadão, sobre os mecanismos internos de seu artesanato.

Se fosse literatura, “O artista” seria uma novela, de páginas com entrelinhamento bem diluído, como aqueles textos que, por ocuparem pouco espaço no papel têm o poder de fazer mais vívidas cada uma de suas palavras. São os artifícios deste estudo que lembra, no enredo, na aparência e na combinação de seus vários elementos um  cruzamento de “O garoto” com “Farrapo humano”, mas batido numa tigela tal de culinária cinematográfica que a calda final resulta mais fluida assim como o verso soa mais etéreo que a prosa. Chapliniano pelas artes de um cão que só falta falar em cena – o que não seria menos lírico num filme que se vale tão bem dos sons do silêncio – “O artista” tem o poder de decantar, enquanto é projetado, todo a algaravia do cinemão atual, toda a potência estéril de mil “Velozes e furiosos”, todo o ribombar inútil de toneladas de “Transformers”.

“O artista”, o filme que é um estudo, só é professoral neste sentido de pedir silêncio na sala para que a aula de cinema seja o mais completa quanto for possível. Pena que o barulho dos dentes cravejando pipocas de adultos infantilizados na fila ao lado nem sempre permita a totalidade da imersão. Mas seria querer demais.

2012 cabalístico


O fim do mundo, está claro, é alguma coisa assim como o tal do gosto: cada um tem o seu e não se discute. Ou melhor: os seus. Ou vai dizer que seu mundo nunca acabou pelo menos umas três vezes para que outros se instalassem no mesmíssimo lugar? Quem tem pelo menos quatro décadas de vida já deve ter passado por ao menos uns três fins de mundo, caso contrário tem algum problema. Pode até não ser o fim do mundo, mas um divã de analista ou ombro amigo já ajuda a resolver. O fato batidíssimo é que este 2012 tornou-se, meio sem que a gente se desse conta, meio que aos poucos, comendo pelas beiradas das ideias, numa promessa de ano bem divertido que já vai se cumprindo. Bastou uma teoria, uma profecia, um calendário exótico, uma maldição pop pra dar uma outra cara aos presentes 365 em vigor: 2012 é o ano do fim do mundo. Mais um, diria você. Aproveite, diria eu.

Aproveite exatamente não no sentido que lhe deu aquele samba de Assis Valente, “E o mundo não acabou”, brilhantemente interpretado, entre outros, por Eliete Negreiros naquele seu disco “A Canção Brasileira – Nossa Bela Alma”, um CD tão bom, mas tão bom que depois de ouvi-lo você não ia se importar nada se o mundo simplesmente se acabasse como quem renuncia à mera possibilidade de haver algo mais tocante. Mas o assunto aqui não é música: é o fim do mundo. E, como dizia, como tantas outras coisas ele não é único – apesar de implicitamente trazer essa condição embutida. Explicitamente, esse fim do mundo definitivo cai na folia e se transforma em algo multicultural como o carnaval de Pernambuco. Por assim dizer, tem fim do mundo em forma de troça, de bloco lírico, de maracatu, de caboclinhos, de potentado pop no Marco Zero e, claro, fim do mundo bem carregado, tipo Rec Beat.

Pra comprovar a diversidade dos fins do mundo você nem precisa ir muito longe: analise os seus e tá esclarecido. Eu, por exemplo, tenho minha pequena coleção de relicários apocalípticos no museu da memória. O primeiro deles foi o incêndio de um supermercado que presenciei criança na minha cidade de origem, Parelhas, Seridó potiguar, numa noite em que, como num filme com trilha de John Williams e direção de Spielberg, a cidade inteira foi acordada aos socos nas portas durante a madrugada pra tirar o time de casa e rumar para a zona rural em caminhões improvisados. Tudo porque o mercadinho Tem-Tem (não ria, o caso foi sério e o risco altíssimo) estava em chamas. Sabe o que tinha ao lado do super? O posto de gasolina da cidade, com tanques cheinhos, pronto para liberar todos os cavaleiros da cisão final. Tá de bom tamanho ou precisa mais?

Tem o dia do terremoto em João Câmara, que ocorreu no trairi potiguar mas também sacudiu Natal e fez dançar o chão e cantar as janelas da residência universitária onde eu morava então, nos latifúndios da UFRN. O trote percussivo dos moradores da residência – todos homens, cada um mais macho que o outro – fugindo em disparada no corredor  do primeiro andar para salvar a vida enquanto tudo balançava foi algo como ouvir a cavalgada das sete bestas do Apocalipse sem saber bem como e porquê. Enfim, como dizem os especialistas no assunto – aquele pessoal que pega um tema árido e logo o envolve em mil camadas de análises filosóficas, metafóricas e pop-divertidas – o fim do mundo é muito pessoal mesmo.

O lance legal do calendário maia que torna 2012 essa diversão em forma de medo é um tal alinhamento astronômico que só acontece a cada 26 mil anos, com o sol no centro e os planetas da Via Láctea todos em linha reta com ele. Eu leio isso e fico pensando no torcicolo que acomete os astros para que tal configuração se realize: é o fim do mundo mesmo; e quem sofre recorrentemente de dor no pescoço por causa dos malditos travesseiros que prometem, prometem e nunca garantem uma noite boa sabe do que estou falando. Também estourou aí – estourou é um verbo aleatório, sem segunda leitura, por favor – uma história sobre um tal de 2003 QQ47, que seria uma sobra de explosões do sol correndo desembestada na direção de algum lugar entre a barragem Gargalheiras em Acari Citi e os recortados litorais japoneses. Mas, fala sério, com uma denominação científica como essas – 2003 QQ47, que mais parece o nome verdadeiro do X3PO da Guerra nas Estrelas – não vai dar não.

Medo pede apelido forte, tipo... “mensalão”, pronto. É pronunciar e não precisa explicar mais nada:  o negócio é matar ou morrer – e a racionalidade que se dane junto com o mundo. Nem vou botar Nostradamus, a Bíblia e Delúbio nesse papo. Deixa os caras em paz que o assunto aqui é algo grande demais pra gente se distrair com os vai-e-vem do Supremo Tribunal Federal. Tá bom: só pra fechar a analogia sobre fim de mundo e renascimento, não custa lembrar que quando explodiu (sem trocadilho) o tal escândalo, não faltou quem decretasse o fim do mundo para Lula e o PT, sem saber que junto com essa sentença estava também eliminando por antecipação toda a mudança econômica e social que ainda estava por vir e mudou a face do Brasil como há muito os brasileiros esperavam. Mas, pensando bem, quem agiu assim estava mais era torcendo contra do que analisando, como aliás se tornou hábito a partir de alguma semana do ano de 2003 na imprensa em geral.

Por falar nisso, algum especialista já tentou aplicar o conceito de fim do mundo à maneira como o Brasil lê sua imprensa ou vice-versa? Sugiro que a pesquisa comece por dois jornaisrecém-fechados na Paraíba. Eu disse que o Armagedon é um cara de muitas faces. Escolha a sua e divirta-se. E não perca tempo, que é só até dezembro.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Coração pernambucano









Festa e folia, arte e diversão, antigo e renovado, sagrado e esculhambado, é assim Pernambuco, ainda mais durante o carnaval

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Jornais, verdade e ficção



O que há em comum entre o fim de dois jornais na PB, o novo vespertino lançado por “O Globo” e um velho filme que demonstra o quanto perdeu a validade a expressão “parem as máquinas!”


A passagem do tempo dá novo sentido às palavras. E o que era uma expressão de quase júbilo pode se transformar em um lamento de fracasso. “Parem as máquinas!” era o lema sonhado por dez entre dez jornalistas do velho “A República” (Natal-RN) até o “New York Times”. Era a suprema aspiração de ter nas mãos uma notícia tão bombástica que valeria a pena o custo financeiro de suspender a impressão de um jornal pronto pra chegar às mãos do leitor. Pois a partir desta semana, com o fim das atividades de dois jornais tradicionais na Paraíba, aquela sentença ganhou o sentido mais literal e menos desejável possível: parem as máquinas, agora, significa isso mesmo. Fim. Adeus jornal. O modelo de negócios não se sustenta mais, embora ainda não saibamos bem como substituí-lo.

Mas tentativas existem, como mostra o lançamento, praticamente na mesma semana, de um outro jornal: o novo “vespertino” lançado em edição eletrônica para Ipad por “O Globo”. Diante da novidade, meus olhinhos viciados em letras impressas em papel ganham o brilho muito especial que dedicam às coisas às quais não tem acesso – ainda. Ocorre que a edição eletrônica de toda tarde que “O Globo” acaba de lançar só pode ser visto nos tablets de seu Steve Jobs. Quem usa tabuletas movidas ao sistema Android – que é o meu caso, com meu tablete tapuia da Sansung – fica excluído por enquanto. Sabe a sensação que você tinha por volta de 1981, quando surgiam as primeiras rádios em freqüência modulada em Natal e seu aparelhinho (como quase todos, então) só captava emissoras em AM? É mais ou menos o que acontece agora. Por muito menos tempo, já que a velocidade com que as novas mídias estão se impondo não tem nem comparação com aqueles tempos pré-web.

Fato é que o fechamento de “O Norte” e do “Diário da Borborema” é mais uma janelinha que se abre no raciocínio de quem acha que esse papo de internet substituindo a mídia impressa de cada dia não passa de visão apocalíptica dos mass mídia. Lógico que ninguém precisa fazer um circo da interrupção das atividades dos dois jornais paraibanos – cujo fim também contém, naturalmente e para além da questão tecnológica, o veneno que marca as administrações desastrosas dos Diários Associados – mas fechar completamente os olhos para este, como dizem mesmo?, “case” é transformar convicção em teimosia. Ali ao lado, na capital de Poti, o que vejo de férias é um cidade que não se interessa por jornais – e jornais que não se interessam pela cidade. Nas bancas, páginas e páginas tomadas por reportagens feitas sem paixão, relator impressos sem ambição, abordagens desprovidas de originalidade. Há uma exceção em Natal atualmente, que é o Novo Jornal feito com um mínimo de “olho torno” – algo como aquela nota “errada” que determina a originalidade da visão musical do músico de jazz. Mas isso fica limitado ao noticiário, digamos, “humano” que o jornal busca, sob a competente direção do nosso amigo Carlos Magno Araújo. Um esforço notável mas que visivelmente escorre pelas páginas como letras impressas em decomposição líquida quando vai se aproximando uma campanha eleitoral. As eleições são ótimas para a democracia de Poti – e péssimas para o jornalismo potiguar, eis a nossa contradição.

Mas a impressão geral é de que os jornais “da taba” (como diria Ailton Medeiros, numa provocação que diverte e faz pensar, ao mesmo tempo em que reafirmar à maneira do blogueiro o amor que ele, de fato, como nós outros, tem pela cidade) afivelou-se num modelo que mistura anúncios do mercado imobiliário com colunas sociais que se ofuscam e se anulam. É o modelo de negócios em vigor: resta saber se e por quanto tempo ele se mantém. Mirem-se no exemplo daqueles jornais da Paraíba.

Ou se espelhem na aventura de “O Globo” que, embora sustentado pela rede de televisão dos seus donos (como disse Paulo Henrique Amorim na entrevista a Paulo José Cunha, em cartaz no site da TV Câmara, aqui), sente-se cutucado e procura novas maneiras de se reafirmar. Vejam a ironia: o melhor jornal do país (nem que seja tecnicamente falando e politicamente à parte, mas cadê os outros?) não se dá ao luxo de ficar parado, enquanto no Nordeste ainda semi-rural em termos de hábitos de leitura os veículos ainda se apóiam em anúncios de prédios e colunas sociais. Quem poderia se sentir confortável e manter tudo como está vai à luta conquistar o leitor das tabuletas eletrônicas. Quem perde leitor dia a dia insiste no modelo fadado ao fracasso. Onde chegaremos?


Já que antecipar o futuro sempre contém também seus riscos – e tomara que esta especulação esteja errada – bora dar um rewind até o início dos anos 90. Qual o melhor veículo para isso? O cinema, ora. Porque ao mesmo tempo em que me entusiasmava com a possibilidade ainda distante mas quase certa de ler o vespertino eletrônico do “Globo” e em que me entristecia com a morte de jornais na Paraíba, coloquei  pra ver no DVD o filme “O Jornal” (direção de Ron Howard, 1994), uma comédia quase maluca mas razoavelmente intelectualizada sobre um daqueles tablóides sensacionalistas lutando para se manter vendável nas bancas. Um negócio muito anterior ao Murdoch dos grampos e seu jornal londrino condenado. Um lance de quando essa briga de sangue no jornalismo popular ainda rendia piada – e um bom filme.

Está em “O Jornal” a célebre frase: Michael Keaton, aquele que já foi um dos Batmans e que anda bem sumido das telas, tem a chance de pronunciar a sentença pela qual tantos ansiavam e que hoje ficou obsoleta. Por que alguém diria “parem as máquinas” na era do jornalismo de internet? É só botar a notícia no site. Melhor: é só postar na rede social. Não precisa nem ser jornalista. Não precisa parar nada. O mundo não se dá mais ao luxo de parar – e, neste ponto, isso é ótimo. Neste ponto, isso também mostra o quanto o universo do jornalismo impresso mudou, por mais que o João Teimoso se apegue aos padrões de antigamente.

Enfim, e como curiosidade, o bom é descobrir, pra quem tem mais de 40 anos e viu o filme na época em que foi lançado (em VHS, claro, que os cinemas, pelo menos os de Natal, já estavam tão fechados naquele período quanto os jornais da Paraíba hoje em dia) que nem tudo saiu como a memória, essa traiçoeira, apregoa. Keaton, sim, pronuncia a frase célebre, trepado na escadaria de uma máquina impressora: “Parem as máquinas” (logo depois de seu colega de redação sublinhar: “vai, diga a frase, é a sua chance!”).


Nem por isso as máquinas param assim no automático como sugere a nossa imaginação apressada. Necas: ele precisa quebrar um vidrinho como aqueles que guardam extintores de incêndio e pegar uma chave que, essa sim, tem poder de interromper a impressão em andamento do jornal. E, no caminho dele há vários obstáculos. Basta citar um (e quem tem mais de 40 e costumava assistir a filme em VHS nos anos 80 vai me entender prontamente): Glenn Close, a toda-poderosa da redação, a carreirista insaciável que quando chega no topo morre de tédio e se vinga em todo mundo em volta (aposto que quem tem mais de 40 e frequentou alguma redação dos anos 80 pra cá vai lembrar de alguém parecido). Enfim, o “parem as máquinas”, acreditem, acaba em luta. Um UFC homem-mulher sem o menor brio politicamente correto (e quem lhes fala é um fã do politicamente correto, mas isso é outro papo) muitos anos antes de Anderson-qualquer-coisa. Devo dizer que, sim, em algum momento, as máquinas param...

Quer saber mais? Corra pras Americanas (esse meu merchandising involuntário que tenho de fazer a propósito de nota de serviço) e compre, por módicas 12 pratas, esse casual clássico contemporâneo e veja como funcionava uma redação de jornal sem o menor sinal de internet por perto e onde a máxima concessão que se faz em termos de tecnologia é exibir repórteres falando em celulares do tamanho de um tijolo feito pelas olarias de Parelhas-RN. Quem sabe assim você se atualiza: se os jornais de fato ainda não tiveram o poder de abrir seus olhos para o poder dessa transição, quem sabe não o faz um reles jornal de ficção?

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Crônica do pai-cinéfilo



O leitor bagunçado que é o autor desse blogue idem também é, ou tornou-se, por circunstâncias familiares, um cinéfilo em igual condição. Cinéfilo bagunçado é aquele que lê todas as resenhas e assiste a um por cento dos filmes sugeridos, quase sempre no horário em que é possível, quase nunca de acordo com a preferência pelo filme mas pela disponibilidade que a vida oferece, eventualmente sim, casando necessidade com expectativa. A vida deste cinéfilo se divide entre A.F e D.F, antes e depois dos filhos. Ao que já pude ouvir de quase todo mundo, isso acontece com quase toda gente: a parte da humanidade que, gostando de filmes ou não, torna-se pai de família. A gente perde a dependência química da visão de sagas em celulóide – hoje, em digital, mas neste caso o meio não interfere na mensagem – de tão poucas chances tem de se manter fiel a ela. Mamadeiras, quebra-cabeças e chamados insistentes de “papai, papai!” num tom de voz que indica que a convocação é pra ontem ocupam o lugar daquela sessão vespertina que parecia um hábito até a chegada do advento da paternidade.

Tudo isso pra dizer, sem firulas em tatibitate de adulto, que a paternidade responsável, infelizmente, não combina com o hábito de se manter em dia com o que de melhor – ou pior, dependendo da temporada – o cinema mundial tem a oferecer aos nossos olhos fatigados do imediato pós-parto. De maneira que o pai-cinéfilo (ou o ex-cinéfilo que foi assaltado pela condição de se tornar pai) costuma contrariar mesmo o gosto da maioria de aficionados por cinema que não é pai de meninos pequenos (no caso dos grandes, dizem que depois de fazer 14 os filhos são tomados por uma estranha mas providencial vergonha de andar perto dos seus progenitores, a conferir). A gente costuma vibrar com um filmeco qualquer que um expectador menos mutilado em seu hábito de ir ao cinema não considera mais do que banal – ou ruim mesmo. E quando vem aquele filme super-esperado, coberto de elogios, portador das mais abalizadas opiniões quanto aos cortes de linguagem que promove, o pai-cinéfilo pena tanto pra conseguir ver que... pode muito bem sair decepcionado, por mero excesso de expectativa. Ou então não entender mesmo umas partes, que a paternidade responsável tem dessas coisas: você assiste tanto ao DVD dos três mosqueteiros da Disney (Pateta, Mickey e Cia) que acaba ficando um pouco prejudicado mesmo quando se trata de sensibilidade estética e inteligência audiovisual.

Mas – sempre tem um mas, mesmo nas profundezas da vida de pai de duas crianças de seis e quatro anos numas férias de fim/início de ano que parecem não acabar nunca – o horizonte das possibilidades pode se abrir quando você menos espera. A mãe dos meninos de repente é tomada por um acesso de generosidade e libera você para uma sessão de... “Cavalo de Guerra” às... 21 horas, o que significa que você não vai voltar pra casa antes das 23. Ou então é o espírito das férias fora da sua cidade de moradia que permite uma quebra dos hábitos. Ou então é a própria programação de cinema das crianças que lhe leva de roldão como as águas das enchentes da temporada. O caso é que, por uma ou outra dessas circunstâncias, as portas dos cinemas se abriram pra mim neste final de 2011 e início de 2012 – e foi tanta emoção que até agora estou sem condições de julgar o que vi. Apenas vi, o que não é pouco. Vamos à crônica propriamente dita do pai-cinéfilo em ação:

O “Cavalo de Guerra” foi como um daqueles repleis que a vida vez em quando oferece: você com 4.6 rodados tem a chance de entrar no cinema e se sentir de novo com 1.9. É a volta do velho Spielberg pra quem gosta – e não para quem acha brega. Dizem que todo homem tem direito a chorar, no máximo, quatro vezes durante o ano. Levando em conta que vou chorar lá pra novembro, na formatura de Bernardo no Jardim de Infância da Escola Sagrada Família Menino Deus (como chorei na formatura de Cecília), restam dois prantinhos preu administrar, já que o segundo eu já gastei, claro, vendo “Cavalo de Guerra”. É o conforto do cinemão do cara que reinventou a arte de entreter e emocionar as grandes platéias em algum ponto da passagem dos anos 70 para os 80. É o cinema que não tem medo de levantar a cortina pesada da trilha sonora emotiva quando o personagem – mais uma vez, e obrigatoriamente, um garoto em rito de passagem, como aquele distante Christian Bale em “Império do Sol”, o meu preferido – vive seu momento decisivo. É a evocação de um sentimentalismo que o cinismo contemporâneo pisou em cima, esfregou o sapato e depois chutou para a sarjeta. É o filmão que lhe toma três horas do seu dia sem que você perceba que se passaram mais que dez minutos. É o filme de painéis, de horizontes, de pinturas de guerra que tanto abordam as tragédias humanas em língua média quanto trazem a sínteses desses acontecimento que de tão grandes para sempre esmagam a humanidade. E ainda tem a dolorosa cena do cavalo enredado no arame farpado das trincheiras que dividem aquela outra raça em facções em disputa – e a conseqüente e inesperada união momentânea que livra o animal irracional do suplício e por um instante abstrai dos racionais em seu entorno o instinto de aniquilação mútua. Para o cinéfilo que não é mais pai de meninos pequenos pode até parecer piegas, óbvio, metaforicamente pobre demais. Mas só pra eles.

A maratona cinematográfica acidental da passagem 2011-2012 também incluiu um outro filme do qual restou apenas o nome: “Missão Impossível- O Protocolo Fantasma”. Nomão pomposo, sessão de ingressos disputadíssimos no shopping natalense, a expectativa de ver um mero filme “de espionagem” que é como a gente chamava o gênero na infância, um Tom Cruise ancião vestindo uma malha falsa de juventude forçada e mais nada. Não consigo lembrar de uma mísera cena. É o contrário do que aconteceu com “Alvin e os Esquilos 3” (segure sua onda, eu avisei que isso é a crônica de um pai-cinéfilo), que enxertou quase à revelia várias e várias sequências nas minhas memórias de freqüentador agora eventual da sala de projeção. Tem uma explicação: fui obrigado por meus filhos a assistir duas vezes – eu disse duas, é sério – ao filme das férias. Nem a minha simpatia também eventual por “Saimon” que vira “Simon” me livra do trauma de rever tudo aquilo de novo – e eu nem preciso contar que, de volta a Brasília, Cecília e Bernardo já voltaram a ver o mesmíssimo filme no cinema mais duas outras vezes, felizmente sem a minha supervisão, que aproveitei pra conferir outras atrações em cartaz, o que explica o fato de repentinamente eu ter a impressão de morar num cinema. Tchau, esquilos: até o capítulo 4, e que demore muito (lembrando que, neste ínterim, teremos Madagascar 3 e, viva! um respiro, “A Ameaça Fantasma” de volta em 3D).

Pois bem, enquanto Cecília e Bernardo arrastavam Rejane e Ivone pra mais duas sessões esquilosas já aqui em BSB Citi, obtive uma licença para ver “Dois Coelhos” (se aparecer mais um filme com bicho no nome eu saio correndo pro meu home cinema) e, ufa, “Os Descendentes”. Do primeiro, que vi sem ter lido uma linha a respeito, logo entendi tratar-se de um cruzamento de Tarantino com “Lost”, aquele negócio de mostrar algo aqui e só  mais em seguida revelar os antecedentes da cena, dando a ela um novo significado. Não é tão novo assim. Lembra também o mexicano Iñarritu (é assim que escreve? Claro que não, mas você entendeu) de “Babel” e quejandos. Não é ruim – e tem uma Alessandra Negrini na plenitude de suas capacidades, pra ficar no tucanês cinematográfico – mas também não é essa batata quente toda. Soa exibicionista. E se trata, principalmente, daquele tipo de filme a que você se sente obrigado a assistir de novo, pra conferir os truques narrativos em que caiu na primeira vez em que o viu. Tem uma última referência, que não vi ninguém fazer, que é Jorge Furtado. É como se fosse um filme do cineasta gaúcho rodado numa câmera equipada com um bate-estaca. Perde-se um pouco de inteligência contemplativa no processo. Sai-se da sala entre confuso e vazio: um videoclip de água poluída é o filme, com diria o compositor baiano.




E o que dizer de “Os Descendentes”? Em tudo que leio sobre o filme, sinto exatamente isso: uma falta do que dizer. Todo mundo gosta, é da mesma lavra do diretor do saboroso “Sideways”, um ou outro fica forçando uma barra pra se mostrar, “enquanto crítico”, superior ao cineasta (caso da moça da Veja, aquela que treina seus vastos dons estilísticos usando filmes como pretextos), mas o fato é que este é o tipo da produção que rouba as palavras dos comentaristas. É um filme de imersão, uma piscina narrativa que lhe envolve tanto que você vai perdendo a capacidade perceptiva de analisar com distanciamento – e se é assim, é ótimo, ora. É o que mais você espera do clássico cinema contador de histórias em imagens que os americanos desenvolveram à exaustão. Em casos assim, dane-se o crítico: a fruição do espetáculo áudio-visual (e estamos falando de um filme bem pouco espetaculoso, com sua trama comum e seus personagens quase patéticos de tão normais) é muito superior às medidas da régua usada pelo analista. E ainda tem um quitute para a parte masculina da platéia: ou você não acha que aquela forma destrambelhada de George Clooney correr quando fica sabendo que foi traído pela mulher é um desfavor a esta parte da raça? Só perder para o andar trôpego e ridículo de Chico Buarque nas ruas do Rio que aparecem no primeiro daquela série de DVDs em que o músico e compositor brasileiro revê sua trajetória. Pois é: Clooney e Chico, dois dos maiores queridinhos da mulherada, precisam ter um defeito bem à vista, daqueles que nem desviando o olhar dá pra deixar de notar, pra compensar o resto da humanidade que veste calças (com o perdão da imagem no final da frase que, mesmo tendo perdido completamente o sentido desde 1968 em Paris, ainda quebra um galho se o caso é destituir os artistas em questão de um mínimo do fascínio que nossas mulheres insistem em lhes dedicar).

Esqueci alguma coisa? Falei sobre “O Protocolo Fantasma” que poderia se chamar “O Filme Fantasma”? Então é isso: mesmo carente de  cinema em tela grande, o fato é que, com a qualidade da projeção cada vez menos condizente com minha miopia quase cinquentona, ando preferindo ver os filmes em casa, no conforto e na definição do DVD-Blue Ray, do que no sufoco de filas e barulhos paralelos do cinema. E em casa pelos meus olhos passaram, tema para outras conversas, desde um velho e pessimista Elvis Presley (antecipando a onda revisionista dos filmes pró-indígenas americanos de meados dos anos 80), “Estrela de Fogo”, até a elegância anticomunista de “A Insustentável Leveza do Ser”, de que eu mal me lembrava. Voltando ao cinema propriamente dito e pra encerrar o papo, esqueci de dizer que no caso do “Tom Cruise Fantasma” ainda tiver que assistir tudo com dublagem de português, esse fenômeno Classe C que depõe contra a própria, mas isso é outra história.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Biblioteca do Sopão

Enfim, e com o atraso regulamentar, a tradicional lista de fim de ano no Sopão, Hamaca e agregados:

Livros que este blogue leu em 2011

  • MUITO ALÉM DO NOSSO EU - Miguel Nicolelis
  • O SOLAR DA FOSSA - Toninho Vaz
  • A FORTALEZA DOS VENCIDOS - Nei Leandro de Castro
  • A MAGIA DO COTIDIANO - Clotilde Tavares
  • SARAMAGO - João Marques Lopes
  • GRANDES FILMES - Roger Ebert
  • BOA VENTURA - Lucas Figueiredo
  • PARIS É UMA FESTA - Ernest Hemingway
  • 1808 - Laurentino Gomes
  • OBRA COMPLETA - Manoel de Barros
  • MEMORIAL DE AIRES - Machado de Assis
  • OS TRANSPARENTES - Florence Dravet
  • O DOSSIÊ ODESSA - F. Forsyth
  • PORNOPOPÉIA - Reinaldo Moraes
  • DO GOLPE AO PLANALTO - Ricardo Kotscho
  • ASSIM FALOU ZARATUSTRA - F. Nietzsche
  • 5O ANOS A MIL - Lobão
  • O GATO SOU EU - Fernando Sabino
  • A CABANA - William P. Young
  • ITALO CALVINO - PEQUENA COSMOVISÃO DO HOMEM - Gustavo de Castro
  • O JOGO DOS OLHOS - Elias Canetti

Sopão por aí




 


Mercado Público de Caicó-RN, restaurado com respeito ao desenho original do prédio.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Festa no interior




Quando você chega lá à noite tem a impressão de ver, a partir dos elevados da estrada, uma planície de vagalumes. É a cidade iluminada aos pés da serra da Borborema, uma cordilheira que vem da Paraíba com suas ondulações geológicas e só acaba por lá, no que chamamos de boqueirão – um dos marcos físicos, culturais e paisagísticos da cidade em questão. É Parelhas, no Seridó potiguar, município típico do semi-árido nordestino e feito para e por quem tem resistência ao rigor do clima e dos sertões, na margem direita do leito seco do rio que dá nome à região, a 240 Km de Natal. A população atual, segundo o IBGE, é de 20.354 habitantes (não mais que 14 mil na época em que efetivamente deixei de morar lá). E como em todo o país, sobretudo no interior do Brasil a partir da era Lula, a cidade se espalhou  e autoturbinou-se em gente, comércio, atividades e também tumulto – o que é o subproduto indesejado de todo crescimento que ocorre assim, depois de anos de demanda represada.

Hoje, 20 de janeiro, é a data nacional de Parelhas, que tem em comum com o Rio de Janeiro o padroeiro protetor contra as pestes que dizimam civilizações. É o dia de São Sebastião (por ter nascido na véspera, recebi o nome dele), o santo a quem os pioneiros que desbravavam a região no século XIX, nos capítulos seguintes à célebre Guerra dos Bárbaros, dedicaram suas orações e sua fé em busca da cura para um surto de cólera que se espalhou por aqueles sertões no ano de 1856. A história humana é curiosa: dos piores fatos podem nascer as mais inesperadas conseqüências, inclusive as melhores delas. Parelhas nasceu assim: da mistura da devoção ao santo invocado para deter “a peste da fome e guerra” (como diz o hino que se ouve em cada esquina nesta época do ano por lá) e do lazer dos sertanejos de então, que era disputar corridas de cavalo em parelhas – daí o nome que a cidade tomou. Até hoje se diz, em tom de brincadeira, “vamos às parelhas”. Os mais ortodoxos completam: “às parelhas do major Antão”. Uma tosca capela foi erguida em homenagem ao santo padroeiro como forma de apelo para que a epidemia de cólera cessasse. E em torno dessa capela e do casario já existente, instalou-se a cidade incrustada quase no centro da barriga do elefante com que se parece o mapa do Rio Grande do Norte.

Seria abuso recorrer a Carlos Drummond de Andrade e dizer que Parelhas hoje é um retrato na parede – e como dói. Não vou fazer isso: a parte do retrato até se aplica, porque o meu interesse pelas urbanidade metropolitana que se manifestou muito cedo realmente me levou pra longe de lá assim que foi possível. É um caminho que sempre quis, depois foi uma necessidade estudantil que se impôs, em seguida tornou-se uma condição profissional inevitável. Gosto das cidades grandes, interessa-me e me estimula o mundo informativo que elas trazem, embora aprecie, por uns dias, a calma e a poesia do nosso Brasil interior. Mas não há mais aquela dor que o poeta tanto lamenta quanto cultiva: o que existe é uma contemplação de longe que de vez em quando se torna uma saudade da cidade física e da gente com quem a dividi quando dela chego perto, como fiz nas férias de agora por uma semana. Tenho lá amigos que preferiram ficar na sua paisagem natural, outros que saíram por aí e retornaram para se instalar definitivamente, outros que vão eventualmente como eu, embora bem mais. Por um lado, a cidade que reencontrei agora é um caos urbano como qualquer outro – e isso me assustou um pouco. Ruas onde durante anos o parelhense se abasteceu calmamente de leite nas vendas domésticas hoje são corredores de trânsito onde dificilmente se passa trinta segundos sem ouvir o ronco de motos e automóveis  – ou o barulho trovejante dos carros de som apregoando uma festa ou uma promoção do comércio (esses sempre existiram, mas nunca com a dimensão que tomaram agora).

Mas há outra face – mais silenciosa, pungente e necessária – desse meu encontro com a cidade onde cresci (por acaso e só por isso, nasci em Caicó, ali ao lado). São os momentos de transcendência interiorana que experimento quando me vejo diante de um pedaço da geografia do doce passado – um canto de rua, a velha casa que meu pai construiu e onde “sempre” morei (hoje ligeiramente reformada pelos atuais proprietários), a foto de seu Severino como eu o via quando menino e que hoje posso contemplar no seu túmulo, a biblioteca municipal que forneceu os primeiros livros lidos numa cidade sem livrarias, a fachada do grupo escolar e muitos outros. É uma coleção de sensações que se experimenta diante de um elemento urbano qualquer que, na sua imobilidade comunicativa de testemunha do tempo, lembra a contribuição que deu pra você se tornar a pessoa que é. E isso acontece o tempo todo, independente do barulho em torno, do crescimento caótico, da cacofonia festiva das comemorações nos dez dias em que Parelhas celebra São Sebastião. É o melhor, o momento só seu, o instante Cinema Paradiso que faz a vida parecer muito mais do que um filme. Quem veio de outra cidade, sobretudo de uma cidade do interior, vai entender o que estou querendo dizer. Quem não veio mas tem sensibilidade urbana e humana, também. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

4.6




Quatro ponto seis deve ser como um motor cansado, mas tranqüilo. Uma máquina engrenada mas já prejudicada em dispositivos laterais como a visão física. Uma composição de carga que foi deixando os secos e molhados pelas estações enquanto aprendia a adquirir a leveza do vazio. Um caminhão veloz, embora pesado. Um carrossel francês de um filme em branco e preto que fica muito bem quando aparece num filme novinho em 3D. Um navio de cruzeiro quando todos os turistas barulhentos dormem – e sem risco de naufrágio por artes de afoitezas de comandante noviço. A parte mais espessa da fumaça que a esquadrilha de aviões deixa no ar, com a sabedoria e o desprendimento de sumir quando mais a multidão cá embaixo tenta enxergá-la melhor.

Quatro ponto seis deve ser como reaprender a andar de bicicleta sem medo de estourar a unha do dedão do pé ainda em definição. Como mergulhar em antigos vídeos da tevê a lenha no YouTube e voltar se sentindo completo como uma tela de alta definição da Sony. Como reunir a família e anunciar que vai largar o emprego pra dar uma volta ao mundo, sem a menor chance de isso acontecer – só pra ver as reações a uma pilhéria de quarentão a caminho dos cinquentinha. Deve ser como se sentir o eterno cozinheiro daquela Madeleine proustiana que você incorpora ao cardápio de imagens mesmo sem ter lido a série de livros. Como descobrir uma Madeleine por hora em sabor, cheiro, visão e audição – como passar a conviver muito mais intensamente com a sensação de deja vu que, segundo Matrix, nada mais é do que o sistema se traindo.

Quatro ponto seis deve ser como um choro de Paulinho da Viola tocando por dentro do corpo, usando as câmaras do pulmão como viola e os antebraços como cordas. Deve ser como ser um brinquedo antigo, desbotado e mesmo assim querido, aquela testemunha tão muda quanto lírica de um tempo que passeia sobre a sua baça pessoa. Quatro ponto seis deve ser um baita poema de Drummond, desses  que a gente decora quando tem 20 e poucos anos e nunca mais esquece, o das coisas findas, que muito mais que lindas, essas ficarão. Deve ser como calmo e quente como uma enseada nordestina; pungente e tocante como uma valsa de Edu e Chico, simples como uma jangada, triste como Portugal, feliz e apascentado como um rio no instante vasto em que se faz estuário. Vamos ver, de amanhã em diante, como é mesmo essa qualidade de viver em escala quatro ponto seis. Vamos ver.