Quando você
chega lá à noite tem a impressão de ver, a partir dos elevados da estrada, uma
planície de vagalumes. É a cidade iluminada aos pés da serra da Borborema, uma
cordilheira que vem da Paraíba com suas ondulações geológicas e só acaba por
lá, no que chamamos de boqueirão – um dos marcos físicos, culturais e paisagísticos
da cidade em questão. É Parelhas, no Seridó potiguar, município típico do semi-árido
nordestino e feito para e por quem tem resistência ao rigor do clima e dos sertões,
na margem direita do leito seco do rio que dá nome à região, a 240 Km de Natal.
A população atual, segundo o IBGE, é de 20.354 habitantes (não mais que 14 mil
na época em que efetivamente deixei de morar lá). E como em todo o país,
sobretudo no interior do Brasil a partir da era Lula, a cidade se espalhou e autoturbinou-se em gente, comércio,
atividades e também tumulto – o que é o subproduto indesejado de todo crescimento
que ocorre assim, depois de anos de demanda represada.
Hoje, 20 de
janeiro, é a data nacional de Parelhas, que tem em comum com o Rio de Janeiro o
padroeiro protetor contra as pestes que dizimam civilizações. É o dia de São
Sebastião (por ter nascido na véspera, recebi o nome dele), o santo a quem os pioneiros
que desbravavam a região no século XIX, nos capítulos seguintes à célebre Guerra dos Bárbaros, dedicaram suas orações e sua fé em busca da cura para um
surto de cólera que se espalhou por aqueles sertões no ano de 1856. A história
humana é curiosa: dos piores fatos podem nascer as mais inesperadas conseqüências,
inclusive as melhores delas. Parelhas nasceu assim: da mistura da devoção ao
santo invocado para deter “a peste da fome e guerra” (como diz o hino que se
ouve em cada esquina nesta época do ano por lá) e do lazer dos sertanejos de
então, que era disputar corridas de cavalo em parelhas – daí o nome que a
cidade tomou. Até hoje se diz, em tom de brincadeira, “vamos às parelhas”. Os
mais ortodoxos completam: “às parelhas do major Antão”. Uma tosca capela foi
erguida em homenagem ao santo padroeiro como forma de apelo para que a epidemia
de cólera cessasse. E em torno dessa capela e do casario já existente,
instalou-se a cidade incrustada quase no centro da barriga do elefante com que
se parece o mapa do Rio Grande do Norte.
Seria abuso
recorrer a Carlos Drummond de Andrade e dizer que Parelhas hoje é um retrato na
parede – e como dói. Não vou fazer isso: a parte do retrato até se aplica,
porque o meu interesse pelas urbanidade metropolitana que se manifestou muito
cedo realmente me levou pra longe de lá assim que foi possível. É um caminho
que sempre quis, depois foi uma necessidade estudantil que se impôs, em seguida
tornou-se uma condição profissional inevitável. Gosto das cidades grandes, interessa-me
e me estimula o mundo informativo que elas trazem, embora aprecie, por uns
dias, a calma e a poesia do nosso Brasil interior. Mas não há mais aquela dor
que o poeta tanto lamenta quanto cultiva: o que existe é uma contemplação de
longe que de vez em quando se torna uma saudade da cidade física e da gente com
quem a dividi quando dela chego perto, como fiz nas férias de agora por uma
semana. Tenho lá amigos que preferiram ficar na sua paisagem natural, outros
que saíram por aí e retornaram para se instalar definitivamente, outros que vão
eventualmente como eu, embora bem mais. Por um lado, a cidade que reencontrei
agora é um caos urbano como qualquer outro – e isso me assustou um pouco. Ruas
onde durante anos o parelhense se abasteceu calmamente de leite nas vendas
domésticas hoje são corredores de trânsito onde dificilmente se passa trinta
segundos sem ouvir o ronco de motos e automóveis – ou o barulho trovejante dos carros de som
apregoando uma festa ou uma promoção do comércio (esses sempre existiram, mas
nunca com a dimensão que tomaram agora).
Mas há outra
face – mais silenciosa, pungente e necessária – desse meu encontro com a cidade
onde cresci (por acaso e só por isso, nasci em Caicó, ali ao lado). São os
momentos de transcendência interiorana que experimento quando me vejo diante de
um pedaço da geografia do doce passado – um canto de rua, a velha casa que meu
pai construiu e onde “sempre” morei (hoje ligeiramente reformada pelos atuais proprietários),
a foto de seu Severino como eu o via quando menino e que hoje posso contemplar no
seu túmulo, a biblioteca municipal que forneceu os primeiros livros lidos numa
cidade sem livrarias, a fachada do grupo escolar e muitos outros. É uma coleção
de sensações que se experimenta diante de um elemento urbano qualquer que, na
sua imobilidade comunicativa de testemunha do tempo, lembra a contribuição que
deu pra você se tornar a pessoa que é. E isso acontece o tempo todo,
independente do barulho em torno, do crescimento caótico, da cacofonia festiva
das comemorações nos dez dias em que Parelhas celebra São Sebastião. É o
melhor, o momento só seu, o instante Cinema Paradiso que faz a vida parecer
muito mais do que um filme. Quem veio de outra cidade, sobretudo de uma cidade
do interior, vai entender o que estou querendo dizer. Quem não veio mas tem
sensibilidade urbana e humana, também.
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