quarta-feira, 7 de março de 2012

Gabo, 85



O primeiro Gabo vinha já trazia um assassinato sob encomenda, ruelas saturadas de cores latinas, parentescos e paixões carnais e cruzadas. Era “Crônica de uma morte anunciada”, que capturei entre as jóias dispersas nas estantes da biblioteca municipal de Parelhas, interior do RN, cidade onde cresci. O acervo,  mal sabíamos nós inocentes aprendizes de leitores, continha um vasto manancial de pepitas numa cidade pequena e sem livrarias. Faltava um orientador, um cérebro capaz de tanger as aventuras literárias dos infantes. Mas, com na ausência reside a força, eu e os amigos nos metíamos entre aquelas estantes e, sabe-se lá com base em quais desígnios, separávamos o lixo cívico tão em voga nas infâncias dos anos 70 da moeda literária forte que também, como por milagre – nada a ver com o econômico de então – ali existia.

O segundo Gabriel Garcia Marquez deve ter sido mesmo o tijolo fundamental dessa América de nosotros, “Cem anos de solidão”, que certamente eu consegui em outra biblioteca. Um parênteses para encaixar a realidade dessa circunstância nas facilidades dos dias atuais: livros, naqueles tempos de estudante, raramente saiam do próprio bolso; livrarias eram vitrines onde o desejo fetichista de adquirir este ou aquele outro título se contentava em apenas projetar-se nos reflexos. “Cem anos”, então, tenho quase certeza, veio da Biblioteca Central da UFRN e foi devidamente devorado numa daquelas férias no interior em que se dava um tempo da universidade ocupando por tardes memoráveis de evasão mental os bancos da praça da cidade do interior. O clássico absoluto de García Marquez, nesta condição, fez companhia a coisas como “A ilha”  e “Olga”, de Fernando Moraes, e “O cavaleiro da esperança” e “Tocaia grande”, de Jorge Amado.  O banco da praça continua lá e pode confirmar tudo isso. Anos mais tarde houve uma releitura a partir de um volume baratinho, desses de promoção das bancas, adquirido num feriadão em Fortaleza. Releitura é o máximo: a gente esquece da importância das vitaminas para o corpo e fica só sentindo o gostinho do prato.

Depois da primeira leitura de “Cem anos”, veio “O amor nos tempos do cólera”, aquela leitura prazerosa que se faz quando já se estabeleceu uma sintonia anterior com um dado autor. Gabo era como vizinho, companhia para os dias de domingo enquanto o sol e o vento natalense batiam com carinho nas vidraças da janela da Residência Universitária Campus I, apartamento 11 – o célebre  apartamento 11, permitam esse enxerto – onde fez companhia a Bukowski e um bocado de malditos de estimação.  “O amor” foi o primeiro Gabo de próprio bolso, resultado da renda de repórter iniciante, tomado pela paixão a um ofício. Bons tempos.

Recentemente, Gabo reapareceu nas mais de 500 páginas em espanhol de “Viver para contar”, que comprei em Buenos Aires e li no original, certamente perdendo muito da informação objetiva que o livro traz mas tão certamente quanto saboreando muito mais a musicalidade da escrita primeira desse texto memorialista. “Viver para contar”, como acontece com livros marcantes, sempre vai me lembrar o tempo e lugar em que foi lido, no caso dele os oitões, sombras de árvores e calçadinhas da casa onde morei no Lago Norte, em BSB Citi. A edição propriamente dita caiu no fosso de um momento de extremo desapego que me acometeu quando nos mudamos da casa de volta para este apartamento aqui no Sudoeste. Doei pilhas de livros para uma escola pública de segundo grau na Asa Norte, entre eles meu “Viver para contar” salpicado de grifos e ainda cheirando à ansiedade que vazava dos meus olhos enquanto o decifrava com meu espanhol de terceira.

Outros Gabo virão antes que o próprio complete os cem e se iguale em longevidade ao arquiteto brazuca que todo dia ri da morte.

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