O primeiro
Gabo vinha já trazia um assassinato sob encomenda, ruelas saturadas de cores
latinas, parentescos e paixões carnais e cruzadas. Era “Crônica de uma morte
anunciada”, que capturei entre as jóias dispersas nas estantes da biblioteca
municipal de Parelhas, interior do RN, cidade onde cresci. O acervo, mal sabíamos nós inocentes aprendizes de
leitores, continha um vasto manancial de pepitas numa cidade pequena e sem
livrarias. Faltava um orientador, um cérebro capaz de tanger as aventuras
literárias dos infantes. Mas, com na ausência reside a força, eu e os amigos
nos metíamos entre aquelas estantes e, sabe-se lá com base em quais desígnios, separávamos
o lixo cívico tão em voga nas infâncias dos anos 70 da moeda literária forte que
também, como por milagre – nada a ver com o econômico de então – ali existia.
O segundo
Gabriel Garcia Marquez deve ter sido mesmo o tijolo fundamental dessa América
de nosotros, “Cem anos de solidão”, que certamente eu consegui em outra
biblioteca. Um parênteses para encaixar a realidade dessa circunstância nas
facilidades dos dias atuais: livros, naqueles tempos de estudante, raramente
saiam do próprio bolso; livrarias eram vitrines onde o desejo fetichista de
adquirir este ou aquele outro título se contentava em apenas projetar-se nos
reflexos. “Cem anos”, então, tenho quase certeza, veio da Biblioteca Central da
UFRN e foi devidamente devorado numa daquelas férias no interior em que se dava
um tempo da universidade ocupando por tardes memoráveis de evasão mental os
bancos da praça da cidade do interior. O clássico absoluto de García Marquez,
nesta condição, fez companhia a coisas como “A ilha” e “Olga”, de Fernando Moraes, e “O cavaleiro
da esperança” e “Tocaia grande”, de Jorge Amado. O banco da praça continua lá e pode confirmar
tudo isso. Anos mais tarde houve uma releitura a partir de um volume baratinho,
desses de promoção das bancas, adquirido num feriadão em Fortaleza. Releitura é
o máximo: a gente esquece da importância das vitaminas para o corpo e fica só
sentindo o gostinho do prato.
Depois da
primeira leitura de “Cem anos”, veio “O amor nos tempos do cólera”, aquela
leitura prazerosa que se faz quando já se estabeleceu uma sintonia anterior com
um dado autor. Gabo era como vizinho, companhia para os dias de domingo
enquanto o sol e o vento natalense batiam com carinho nas vidraças da janela da
Residência Universitária Campus I, apartamento 11 – o célebre apartamento 11, permitam esse enxerto – onde fez
companhia a Bukowski e um bocado de malditos de estimação. “O amor” foi o primeiro Gabo de próprio
bolso, resultado da renda de repórter iniciante, tomado pela paixão a um
ofício. Bons tempos.
Recentemente,
Gabo reapareceu nas mais de 500 páginas em espanhol de “Viver para contar”, que
comprei em Buenos Aires e li no original, certamente perdendo muito da
informação objetiva que o livro traz mas tão certamente quanto saboreando muito
mais a musicalidade da escrita primeira desse texto memorialista. “Viver para
contar”, como acontece com livros marcantes, sempre vai me lembrar o tempo e
lugar em que foi lido, no caso dele os oitões, sombras de árvores e calçadinhas
da casa onde morei no Lago Norte, em BSB Citi. A edição propriamente dita caiu
no fosso de um momento de extremo desapego que me acometeu quando nos mudamos
da casa de volta para este apartamento aqui no Sudoeste. Doei pilhas de livros
para uma escola pública de segundo grau na Asa Norte, entre eles meu “Viver
para contar” salpicado de grifos e ainda cheirando à ansiedade que vazava dos
meus olhos enquanto o decifrava com meu espanhol de terceira.
Outros Gabo
virão antes que o próprio complete os cem e se iguale em longevidade ao
arquiteto brazuca que todo dia ri da morte.
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