terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Crônica do pai-cinéfilo



O leitor bagunçado que é o autor desse blogue idem também é, ou tornou-se, por circunstâncias familiares, um cinéfilo em igual condição. Cinéfilo bagunçado é aquele que lê todas as resenhas e assiste a um por cento dos filmes sugeridos, quase sempre no horário em que é possível, quase nunca de acordo com a preferência pelo filme mas pela disponibilidade que a vida oferece, eventualmente sim, casando necessidade com expectativa. A vida deste cinéfilo se divide entre A.F e D.F, antes e depois dos filhos. Ao que já pude ouvir de quase todo mundo, isso acontece com quase toda gente: a parte da humanidade que, gostando de filmes ou não, torna-se pai de família. A gente perde a dependência química da visão de sagas em celulóide – hoje, em digital, mas neste caso o meio não interfere na mensagem – de tão poucas chances tem de se manter fiel a ela. Mamadeiras, quebra-cabeças e chamados insistentes de “papai, papai!” num tom de voz que indica que a convocação é pra ontem ocupam o lugar daquela sessão vespertina que parecia um hábito até a chegada do advento da paternidade.

Tudo isso pra dizer, sem firulas em tatibitate de adulto, que a paternidade responsável, infelizmente, não combina com o hábito de se manter em dia com o que de melhor – ou pior, dependendo da temporada – o cinema mundial tem a oferecer aos nossos olhos fatigados do imediato pós-parto. De maneira que o pai-cinéfilo (ou o ex-cinéfilo que foi assaltado pela condição de se tornar pai) costuma contrariar mesmo o gosto da maioria de aficionados por cinema que não é pai de meninos pequenos (no caso dos grandes, dizem que depois de fazer 14 os filhos são tomados por uma estranha mas providencial vergonha de andar perto dos seus progenitores, a conferir). A gente costuma vibrar com um filmeco qualquer que um expectador menos mutilado em seu hábito de ir ao cinema não considera mais do que banal – ou ruim mesmo. E quando vem aquele filme super-esperado, coberto de elogios, portador das mais abalizadas opiniões quanto aos cortes de linguagem que promove, o pai-cinéfilo pena tanto pra conseguir ver que... pode muito bem sair decepcionado, por mero excesso de expectativa. Ou então não entender mesmo umas partes, que a paternidade responsável tem dessas coisas: você assiste tanto ao DVD dos três mosqueteiros da Disney (Pateta, Mickey e Cia) que acaba ficando um pouco prejudicado mesmo quando se trata de sensibilidade estética e inteligência audiovisual.

Mas – sempre tem um mas, mesmo nas profundezas da vida de pai de duas crianças de seis e quatro anos numas férias de fim/início de ano que parecem não acabar nunca – o horizonte das possibilidades pode se abrir quando você menos espera. A mãe dos meninos de repente é tomada por um acesso de generosidade e libera você para uma sessão de... “Cavalo de Guerra” às... 21 horas, o que significa que você não vai voltar pra casa antes das 23. Ou então é o espírito das férias fora da sua cidade de moradia que permite uma quebra dos hábitos. Ou então é a própria programação de cinema das crianças que lhe leva de roldão como as águas das enchentes da temporada. O caso é que, por uma ou outra dessas circunstâncias, as portas dos cinemas se abriram pra mim neste final de 2011 e início de 2012 – e foi tanta emoção que até agora estou sem condições de julgar o que vi. Apenas vi, o que não é pouco. Vamos à crônica propriamente dita do pai-cinéfilo em ação:

O “Cavalo de Guerra” foi como um daqueles repleis que a vida vez em quando oferece: você com 4.6 rodados tem a chance de entrar no cinema e se sentir de novo com 1.9. É a volta do velho Spielberg pra quem gosta – e não para quem acha brega. Dizem que todo homem tem direito a chorar, no máximo, quatro vezes durante o ano. Levando em conta que vou chorar lá pra novembro, na formatura de Bernardo no Jardim de Infância da Escola Sagrada Família Menino Deus (como chorei na formatura de Cecília), restam dois prantinhos preu administrar, já que o segundo eu já gastei, claro, vendo “Cavalo de Guerra”. É o conforto do cinemão do cara que reinventou a arte de entreter e emocionar as grandes platéias em algum ponto da passagem dos anos 70 para os 80. É o cinema que não tem medo de levantar a cortina pesada da trilha sonora emotiva quando o personagem – mais uma vez, e obrigatoriamente, um garoto em rito de passagem, como aquele distante Christian Bale em “Império do Sol”, o meu preferido – vive seu momento decisivo. É a evocação de um sentimentalismo que o cinismo contemporâneo pisou em cima, esfregou o sapato e depois chutou para a sarjeta. É o filmão que lhe toma três horas do seu dia sem que você perceba que se passaram mais que dez minutos. É o filme de painéis, de horizontes, de pinturas de guerra que tanto abordam as tragédias humanas em língua média quanto trazem a sínteses desses acontecimento que de tão grandes para sempre esmagam a humanidade. E ainda tem a dolorosa cena do cavalo enredado no arame farpado das trincheiras que dividem aquela outra raça em facções em disputa – e a conseqüente e inesperada união momentânea que livra o animal irracional do suplício e por um instante abstrai dos racionais em seu entorno o instinto de aniquilação mútua. Para o cinéfilo que não é mais pai de meninos pequenos pode até parecer piegas, óbvio, metaforicamente pobre demais. Mas só pra eles.

A maratona cinematográfica acidental da passagem 2011-2012 também incluiu um outro filme do qual restou apenas o nome: “Missão Impossível- O Protocolo Fantasma”. Nomão pomposo, sessão de ingressos disputadíssimos no shopping natalense, a expectativa de ver um mero filme “de espionagem” que é como a gente chamava o gênero na infância, um Tom Cruise ancião vestindo uma malha falsa de juventude forçada e mais nada. Não consigo lembrar de uma mísera cena. É o contrário do que aconteceu com “Alvin e os Esquilos 3” (segure sua onda, eu avisei que isso é a crônica de um pai-cinéfilo), que enxertou quase à revelia várias e várias sequências nas minhas memórias de freqüentador agora eventual da sala de projeção. Tem uma explicação: fui obrigado por meus filhos a assistir duas vezes – eu disse duas, é sério – ao filme das férias. Nem a minha simpatia também eventual por “Saimon” que vira “Simon” me livra do trauma de rever tudo aquilo de novo – e eu nem preciso contar que, de volta a Brasília, Cecília e Bernardo já voltaram a ver o mesmíssimo filme no cinema mais duas outras vezes, felizmente sem a minha supervisão, que aproveitei pra conferir outras atrações em cartaz, o que explica o fato de repentinamente eu ter a impressão de morar num cinema. Tchau, esquilos: até o capítulo 4, e que demore muito (lembrando que, neste ínterim, teremos Madagascar 3 e, viva! um respiro, “A Ameaça Fantasma” de volta em 3D).

Pois bem, enquanto Cecília e Bernardo arrastavam Rejane e Ivone pra mais duas sessões esquilosas já aqui em BSB Citi, obtive uma licença para ver “Dois Coelhos” (se aparecer mais um filme com bicho no nome eu saio correndo pro meu home cinema) e, ufa, “Os Descendentes”. Do primeiro, que vi sem ter lido uma linha a respeito, logo entendi tratar-se de um cruzamento de Tarantino com “Lost”, aquele negócio de mostrar algo aqui e só  mais em seguida revelar os antecedentes da cena, dando a ela um novo significado. Não é tão novo assim. Lembra também o mexicano Iñarritu (é assim que escreve? Claro que não, mas você entendeu) de “Babel” e quejandos. Não é ruim – e tem uma Alessandra Negrini na plenitude de suas capacidades, pra ficar no tucanês cinematográfico – mas também não é essa batata quente toda. Soa exibicionista. E se trata, principalmente, daquele tipo de filme a que você se sente obrigado a assistir de novo, pra conferir os truques narrativos em que caiu na primeira vez em que o viu. Tem uma última referência, que não vi ninguém fazer, que é Jorge Furtado. É como se fosse um filme do cineasta gaúcho rodado numa câmera equipada com um bate-estaca. Perde-se um pouco de inteligência contemplativa no processo. Sai-se da sala entre confuso e vazio: um videoclip de água poluída é o filme, com diria o compositor baiano.




E o que dizer de “Os Descendentes”? Em tudo que leio sobre o filme, sinto exatamente isso: uma falta do que dizer. Todo mundo gosta, é da mesma lavra do diretor do saboroso “Sideways”, um ou outro fica forçando uma barra pra se mostrar, “enquanto crítico”, superior ao cineasta (caso da moça da Veja, aquela que treina seus vastos dons estilísticos usando filmes como pretextos), mas o fato é que este é o tipo da produção que rouba as palavras dos comentaristas. É um filme de imersão, uma piscina narrativa que lhe envolve tanto que você vai perdendo a capacidade perceptiva de analisar com distanciamento – e se é assim, é ótimo, ora. É o que mais você espera do clássico cinema contador de histórias em imagens que os americanos desenvolveram à exaustão. Em casos assim, dane-se o crítico: a fruição do espetáculo áudio-visual (e estamos falando de um filme bem pouco espetaculoso, com sua trama comum e seus personagens quase patéticos de tão normais) é muito superior às medidas da régua usada pelo analista. E ainda tem um quitute para a parte masculina da platéia: ou você não acha que aquela forma destrambelhada de George Clooney correr quando fica sabendo que foi traído pela mulher é um desfavor a esta parte da raça? Só perder para o andar trôpego e ridículo de Chico Buarque nas ruas do Rio que aparecem no primeiro daquela série de DVDs em que o músico e compositor brasileiro revê sua trajetória. Pois é: Clooney e Chico, dois dos maiores queridinhos da mulherada, precisam ter um defeito bem à vista, daqueles que nem desviando o olhar dá pra deixar de notar, pra compensar o resto da humanidade que veste calças (com o perdão da imagem no final da frase que, mesmo tendo perdido completamente o sentido desde 1968 em Paris, ainda quebra um galho se o caso é destituir os artistas em questão de um mínimo do fascínio que nossas mulheres insistem em lhes dedicar).

Esqueci alguma coisa? Falei sobre “O Protocolo Fantasma” que poderia se chamar “O Filme Fantasma”? Então é isso: mesmo carente de  cinema em tela grande, o fato é que, com a qualidade da projeção cada vez menos condizente com minha miopia quase cinquentona, ando preferindo ver os filmes em casa, no conforto e na definição do DVD-Blue Ray, do que no sufoco de filas e barulhos paralelos do cinema. E em casa pelos meus olhos passaram, tema para outras conversas, desde um velho e pessimista Elvis Presley (antecipando a onda revisionista dos filmes pró-indígenas americanos de meados dos anos 80), “Estrela de Fogo”, até a elegância anticomunista de “A Insustentável Leveza do Ser”, de que eu mal me lembrava. Voltando ao cinema propriamente dito e pra encerrar o papo, esqueci de dizer que no caso do “Tom Cruise Fantasma” ainda tiver que assistir tudo com dublagem de português, esse fenômeno Classe C que depõe contra a própria, mas isso é outra história.

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