Cada época tem o vilão mais conveniente aos interesses de quem vive de mercantilizar o ódio coletivo
Numa era
muito distante, quando um certo José Dirceu não incomodava uma mosca e portanto
não tinha motivos para ser tratado como inimigo público número um do país, a moda
era odiar os cirurgiões plásticos. Nem os políticos conseguiam tamanha
unanimidade ao contrário quanto eles – até porque, naqueles primórdios, o
sistema não permitia que houvesse políticos na completa acepção da palavra e no
inteiro exercício de suas funções. José Dirceu, aliás, fez o que pode pra mudar
isso – mas essa é outra história, com outros personagens. A figura que nos
interessa aqui é a do cirurgião plástico, autêntico ou pirata, que assombrou o
país nas páginas da revista Manchete ou na escalada do Jornal Nacional. Pois
esta semana, ele voltou.
O país que
tinha o afamado Ivo Pitanguy tinha também Hosmany Ramos, seu oposto e seu
inverso. Tínhamos o médico e o monstro: o primeiro era modelo internacional da
medicina estética brazuca e o segundo o golpista que se infiltrou na alta
sociedade – veja como o tempo muda as palavras, há quanto tempo você não lia
essa expressão “alta sociedade”? – carioca para conquistar prestígio e ocultar
sua sina criminosa. Pitanguy nunca deixou de ser clássico, mas Hosmany foi
parar na cadeia, de onde, decorridos tantos anos, já deve ter saído. Como nunca
mais esquartejou uma cliente com seu bisturi ensandecido, também nunca mais
ouvimos falar dele.
Até porque a
fila anda e tempos atrás o posto de Hosmany foi tomado por um desses novatos
estabanados como costumam ser os iniciantes sem sorte. O nome dele é Marcelo
Caron, sua área de atuação fica entre Taguatinga, no Distrito Federal, e
Goiânia, com passagens por Campinas, onde especializou-se em golpes financeiros
contra o Sistema Único de Saúde. Mas a especialidade mais – digo, menos –
reconhecida desse Caron eram lipoaspirações que faziam a cliente entrar na
mesa de operações e de lá passar direto à UTI, com prazo de uns dias para ser
transferida ao cemitério. Caron era médico, de fato - mas não tinha a especialização em cirurgia
plástica, hobby pra ele e desgraça para quem o procurava em busca de um
tratamento. Acabou tendo o registro de médico cassado e submergindo sob uma
montanha de processos criminais.
Esta semana,
Caron reapareceu, pasmen, numa blitz policial lá em Canguaretama, RN.
Descobriu-se que ele, oficialmente preso em regime semiaberto, “mora” na praia
de Pipa, ali pertinho, onde é até dono de uma pousada. No momento da prisão,
estava realizando essa atividade tão prosaica pra qualquer um que não é nem
cirurgião plástico e muito menos condenado por matar suas pacientes: voltar
para casa. O mundo está cheio de pessoas impressionantes, seja por suas
qualidade ou seus defeitos, porque tanto uma coisa quanto outra é capaz de
chocar pelo menos à primeira vista. Pois tanto quanto Caron voltando pra casa,
impressiona o caso do policial rodoviário que o identificou apenas por lembrar
das notícias sobre ele na televisão. Caron foi parar na delegacia, mas,
soube-se depois, poderá, sim, continuar morando em Pipa, mesmo sendo um preso
em regime semiaberto condenado em Goiás. Isso lembra ou não uma novela de
Gilberto Braga no horário nobre?
Antes que
alguém solte um indignado Brazil-zil-zil, convém lembrar que a ressurreição de
figuras como o cirurgião plástico golpista no país da impunidade servindo de
roteiro para histórias que nem a ficção criou com tanto apuro não é privilégio
aqui de baixo do Equador. Se fosse assim, não haveria casos igualmente bestiais
como o de um certo Paolo Gabriele, um sujeito cujas intenções são uma grande
interrogação e cujo procedimento vale por um livro de Dan Brown. Por estes dias, ficamos sabendo que
este italiano – que vem a ser, pela função que ocupa, talvez a mais suspeita pessoa do planeta, pois mais
do que um mordomo, é o próprio mordomo do papa – surrupiou uns documentos que
comprovam fraudes não na banca de bicho de Carlos Cachoeira ou nos contratos da
Delta, mas no próprio Vaticano, tá bom pra você?
Pra gente
ver como, sem perceber, perdemos tempo se formos dar bola ao noticiário geral
que tenta colocar uma emoção que seja no julgamento do tal mensalão. Enquanto a
velha mídia quer provocar torcicolos nos nossos pescoços fazendo a gente olhar
na marra para a modorra que tem sido o plenário do STF, temos aí – nesta mesma
imprensa, que não pode tudo – histórias como a de Marcelo Caron e Paolo Gabriele,
exumando velhos fantasmas dos tempos em que o culpado só podia ser o mordomo, Hosmany Ramos era o fim e também o máximo
– e quando um certo José Dirceu estava fazendo o caminho inverso, saindo da
clandestinidade que um tempo sem política, no sentido legítimo da palavra, o obrigou a abraçar.
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