quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Aquém e além do Paradiso




Giuseppe Tornatore conquistou na maciota uma legião de admiradores com seu cinema memorialístico tipo torrão natal que fazia uma pequena cidade italiana parecer o espelho de um grotão global. Com “Cinema Paradiso” (1988), o cineasta conseguiu, ao mesmo tempo em que fazia uma sentimental ode à sétima arte, realizar também uma espécie de sonho implícito nas memórias de quem nasceu e cresceu no interior – seja da Itália, seja do Brasil. Aquela cidade, aquele cinema, aquele menino e aquele projecionista chamado Alfredo eram a recriação diante de nossos olhos abestalhados de um tempo e lugar onde nós mesmos, integrantes daquelas plateias hipnotizadas, havíamos habitado. Era mais que cinema, chegava a ser uma forma pagã e estética de religião. Um novo cult no cartaz, do tipo instantâneo e definitivo.

Tão cult que naturalmente eclipsou os filmes seguintes de Tornatore, como “O Homem das Estrelas”, “A Lenda do Pianista do Mar” e “Malena”. O primeiro ecoou como um quase natural desdobramento de “Paradiso”. O segundo,  crônica sobre um instrumentista num transatlântico, soou como uma novela literária diante do romance russo que foi o antecessor. O terceiro, no meu caso, nem cheguei a ver – só lembro dele já em vídeo ou DVD, hiato do cinema propriamente dito sempre é um desestímulo. Agora, encontro em Blue Ray a cópia estalando de nova do novo, ou mais recente, “Baarìa” que, pelo aspecto da embalagem e pelo teor dos trechos dos comentários que traz inscritos leva diretamente a “Cinema Paradiso”. Novamente Tornatore retorna à sua aldeia – o que, no caso dele, é quase certo que poderá corresponder à nossa.

Mas também há uma lei não escrita segundo a qual os fenômenos cult não se repetem assim-assim. E foi o que se deu. “Baarìa” é como se fosse “Cinema Paradiso” elevado à enésima potência: cada quadro é de uma composição milimetricamente bela; cada sequencia quase um filme por si só, mesmo com duração de cinco minutos; cada personagem retoca todos os tiques e toques que a gente começou a ver no mais cult filme do diretor; Morricone está de volta na trilha sonora; tem filme dentro do filme de novo, passagem de tempo e seus efeitos novamente, saga familiar outra vez. E no entanto não funciona como funcionou “Cinema Paradiso”.

Obstáculo local
 
A pergunta que fica martelando enquanto você tenta encontrar fruição em meio a tantos elementos é uma só: por que “Baarìa”, sendo visivelmente tão bem mais produzido e com um antecedente bem sucedido que lhe deu todas as coordenadas, não retira do espectador a mesma emoção de “Cinema Paradiso”? Enquanto o filme, demorado – aí pelas três horas que parecem durar cinco, o que já é um obstáculo – não acaba, os palpites vão se colocando entre você que o assiste e suas cenas quase inutilmente tão bem elaboradas. Desta vez, Tornatore se concentrou tanto nas coisas específicas de sua Itália natal que travou aquele elemento que pode fazer de uma obra de arte baseada na emoção local algo universal – um insumo muito particular capaz de fazer com que ao se falar de um quadrado,  componha-se um painel que diz respeito a um mosaico muito maior. Há muito de política interna italiana no filme, algo bem menos compartilhável do que a fruição do cinema em si que era evocada no “Paradiso”.

Para piorar, a estratégia narrativa do filme parte de um modelo que faz estancar os episódios: até a primeira meia hora, o que vemos são belas sequências interrompidas (por belos cortes, interessantes transições, mas nem isso diminui o incômodo) por outras, sem que uma deságue na seguinte. Você tem a impressão de estar assistindo a um conjunto de trailleres de futuros longas de Tornatore – como naquela proposição feita em literatura por outro italiano célebre, Ítalo Calvino (“Se um viajante numa noite de inverno”). No livro de Calvino, isso era a própria base tanto da investigação metaliterária quanto da fruição narrativa pura e simples. No filme de Tornatore – que, naturalmente, a certa altura felizmente abandona essa linguagem gaguejada – o que era para ser uma ilustração torna-se uma aporrinhação.

O resultado é um filme travado, que demora para envolver o espectador, por mais que o esplendor visual de cada sequência se imponha. É como algumas das  minisséries brasileiras feitas por Luiz Fernando Carvalho, como a adaptação de “A Pedra do Reino”: ele busca tanto a epifania audiovisual em cada cena que não consegue obtê-la em praticamente nenhuma, visto que, é sabido e corrente, pra se atingir um estado mínimo de transcendência em um momento da vida e da arte, é preciso muitos outros, anteriores e banais, que lhe sirvam a de contraponto, elevador e trampolim.
 
Caleidoscópico

“Baarìa”, ainda assim, é considerado por muitos críticos – como o nosso brazuca Luiz Carlos Merten, de “O Estado de São Paulo” – como o melhor filme de Tornatore. Eu, do meu canto no fundo desse cinema saturado de opiniões, diria que é o mais caleidoscópico. E que é justamente a ambição desmedia que retira dele o poder de fascinação que teve “Cinema Paradiso”.  O que o filme anterior conseguia da primeira à última cena – sobretudo na última, que também é citada em “Baarìa” – o mais recente até realiza, sim, mas no conjunto mínimo composto por cada sequência.

Como a primeira – que, não se sabe se propositadamente  ou não – cita, vejam só, o “E.T” de Spielberg: o menino que corre tanto pra comprar cigarros pra um adulto que repentinamente vê-se voando – e a gente, na plateia, junto com ele. É uma bela e instigante abertura, embora contaminada pela citação de outro cinema tão diverso, ou justamente por isso. Pena que não sustente este “Baarìa” no ar por inteiro.

Um comentário:

  1. Tião é bom demais ler seus escritos. Fazia tempo que não vinha aqui por falta de tempo. Bom demais!! Ah, e mesmo não sendo um Cinema Paradiso, deu vontade de ver Baarìa.

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