domingo, 12 de maio de 2013
A TV que não se vê
Glauber, Nelson e Cacá na direção; Yoná, Geraldo, Jardel e Autran em transe diante das câmeras; Sérgio Ricardo pilotando uma trilha sonora como um visionário violeiro cego, Rogério Duarte criando cartazes que viravam instataneamente esboços gráficos do momento histórico; todas essas mil e uma facetas do movimento conhecido como Cinema Novo são conhecidas, batidas, lidas e relidas, condenadas e redescobertas, estudadas e cultuadas à exaustão. É difícil acreditar mas do meio dessa barafunda de gente, idéias, imagens e linguagens que se fundiam em um período peculiar para cultura brasileira ainda é possível pinçar nomes menos conhecidos cuja importância foi tão grande para a criação daquela estética quanto a roupa de cangaceiro que Dona Lúcia costurou e Othon Bastos vestiu nas várias e várias e várias epifanias de "Deus e o Diabo"; ou a confusão político-cultural de Paulo Martins incorporada por Jardel Filho em "Terra em Transe". A pessoa tem nome e papel bem definido nessa história: Dib Lutfi, o fotógrafo que entendeu mais do que qualquer crítico a função da maneira brasileira de criar algo novo a partir da mera, mas instigante, falta de recursos para ser resolver um problema que a técnica negava à estética.
Dib Lutfi é o fotógrafo por trás das imagens de "Terra em Transe", o cinegrafista capaz de se entontecer sem perder o foco - não da imagem, atente, mas da idéia enquadrada - junto com o ator em decomposição no fundo das objetivas. Era o cara que nunca dizia não, que sempre encontrava un jeito - o "jeitinho brasileiro", visto sempre como algo pejorativo por quem insiste em demonizar o próprio povo. Pouco valeria a intenção comunicada com caótico poder de sedução pelo diretor se o ator não sintonizasse suas terminações nervosas com o que o filme lhe pedia. E - aqui entra a importância deste Dib tão pouco lembrado até mesmo nos mil e um documentários, reportagens de tevê e livros sobre o Cinema Novo - de nada valeria também se o fotógrafo responsável pela imagem que definiria em arte final essa profusa confusão de conceitos, vivências e sensibilidades que era aquele cinema também não caísse ele próprio em transe junto com ator e diretor.
Esse nome meio esquecido do cinema novo está aqui para que se fale de um canal de tevê alternativo - desses que programadoras como a NET inclui em seus pacotes - que tem o poder de dar ao país o conhecimento sobre figuras como Dib. Foi no "Curta!", canal que recentemente caiu no meu pacote caseiro sem qualquer comunicação (imagino que para cumprir itens da legislação que obriga a inclusão de percentuais de produção nacional na programação), que assisti a um longo e detalhado documentário sobre Dib Lutfi.
Zapeando, encontrei um outro canal próximo deste "Curta!", que, por sinal, ainda falando dele, havia visto em pacote diverso do meu na casa de Titina Medeiros, onde assisti a um belo doc em curta metragem sobre um maranhense que de tanto cismar em atuar no cinema acabou fazendo carreira como ator de filme pornô e estava muito entusiasmado com a empreitada; história narrada em um filme quase todo feito num único take do camarada pedalando uma bicicleta contra um poente de "...E o vento levou".
O segundo canal dedicado à cultura brasileira e afins a que me refiro aqui chama-se Arte+ e tem uma programação que igualmente recupera, exibe, dá visibilidade a filmes dedicados ao melhor da música brasileira, do cinema, da literatura. Algo parecido com o que o próprio Canal Brasil também acaba fazendo. A diferença é que nestes canais menos conhecidos há uma aparente maior liberdade, que imagino decorrente do próprio descompromisso com a busca da audiência pura e simples.
Mas é preciso zapear, procurar, fuçar usando o controle remoto para encontrar essas novidades onde se pode assistir às melhores velharias. Onde qualquer um de nós pode assistir ao filme "Doramundo", que João Batista de Andrade fez no final dos anos 70 e não se acha em VHS, DVD ou no YouTube na íntegra? Pois é um dos destaques do "Curta" - que por sinal acaba de ganhar uma página no Facebook, procure lá. Este é um material que infelizmente não interessa à TV aberta convencional brasileira e nem mesmo aos canais fechados cada vez mais dominados pela estética de certa histeria audiovisual de filme de super-herói americano feito para criar franquias que significam verdinhas (e eu aprecio alguns, mas a questão não é essa).
Esse movimento, reflexo das mudanças na legislação que tanta gente critica sem parar um tantinho assim pra pensar (apenas reproduzindo o discurso das grandes redes), ocorre sem que haja propaganda, divulgação, incentivo: canais como o Curta!, como o Arte+, como o próprio Canal Brasil, assim como a programação de final de semana e dos horários menos concorridos politicamente da TV Câmara (onde há muita jazida de ouro televisivo à espera de coletores menos apressados) são biscoitos finos. E quanto mais o são, menos interessa ao sistema convencional de televisão voltado para o consumo levantar o cartaz dessas emissoras. Muito menos à imprensa que se julga tão responsável pelos rumos do país. Nem a universidade que como altar sacrossanto do rigor subestima tanto do que é feito na medida da paixão.
Este é um tipo de programação que parece só interessar aos malucos, distraídos e vorazes - o público que não tem pudor de apenas tangenciar a tal da normalidade. Grupos, tribos, clãs que vão se formando por aí. Enquanto isso, o silêncio que condena as audiências de tais canais ao traço é como um grito ensurdecedor contra a nossa mediocridade dia a dia cada vez mais burilada. Eu sei: renda é importante e sensibilidade não traz dinheiro. A esta altura dos tempos, bem que essa equação já poderia ter sido mudada. Curioso é que, dessa maneira oblíqua, a lei esteja ajudando, embora quase ninguém seja informado sobre isso. Se a gente lembrar que exatamente quem tem o papel social de informar não tem o interesse econômico e político de cumprir sua obrigação fica mais fácil de entender - mas ainda assim difícil de aceitar.
quarta-feira, 24 de abril de 2013
OBITUÁRIOS INESPERADOS
Por algum motivo oculto que o curso da vida ainda não me revelou, tenho sido frequentemente - ou repetidas vezes, de maneira não menos que marcante - objeto de um tipo de surpresa que poderia chamar de, no mínimo, intrigante. Sem rodeios, trata-se aqui do fato de ficar sabendo por uma notícia impressa, em jornal ou revista, da morte de pessoas queridas - sejam celebridades culturais ou gente com quem tive alguma proximidade.
Foi o que acabou de se dar agora mesmo, no instante que antecede o post que você lê neste momento, sabe-se lá em que circunstância do seu dia ou da sua vida. Estou folheando um exemplar de revista quando, virando a página, quase pulo da cadeira diante da capacidade de me ejetar emocionalmente que a notícia provoca. Fico sabendo, por meio de um susto impresso, sobre a morte do crítico de cinema Roger Ebert.
Morreu - e acho que só eu não sabia - o crítico que, descoberto ainda recentemente há poucos anos, proporcionou-me horas memoráveis de fruição ao analisar filmes e mais filmes aos quais eu, como tanta gente, me afeiçoei - e o fez com um texto que, de tão acuradamente analítico, dificilmente poderia escorrer tão suavemente pelos veios da mente deste leitor que vos fala.
Devorei dois livros de Roger Ebert, crítico notabilizado pelos comentários sobre filmes no Chicago Sun-Times, jornal da cidade norte-americana. Depois de ler suas análises - que não eram resenhas rápidas, especialidade de outra celebridade da área, Pauline Kael - os filmes renasciam diante dos olhos de qualquer leitor com uma queda mínima pela sétima arte. São livros em que os comentários de Ebert são feitos, não raramente, a partir de seminários instigantes, em que ele juntava estudantes de cinema em auditórios para analisar sequência por sequência, com a paciência de quem faz uma autópsia não num cadáver mas num repositório de belezas, grandes produções que entraram para a história do cinema.
A crítica de Roger Ebert, assim, vertia uma forma de arte de natureza áudio-visual em outra, uma forma particular de literatura feita como que por meio de um decalque daquilo que a gente via na tela grande. Sobreposição de linguagens de caráter revelador para quem tinha um de seus livros à mão.
E tudo isso de repente adquire uma outra condição quando, ao virar uma página de revista, fico sabendo da morte do crítico - ademais um senhor de idade para quem o ponto final da vida nem deveria ser algo de natureza tão abrupta. Ocorre que, ao retornar dos meus vastos e nunca incomuns períodos de alheiamente ao noticiário nosso de cada dia, costumo tropeçar em evidências como estas. E não é a primeira vez, nem é esta a única forma como este tipo de manifestação se ancora na minha forma de viver neste mundo.
Há alguns anos, trabalhava como redator no jornal Correio Braziliense. Enquanto aguardava os repórteres entregarem suas matérias prontas para serem retrabalhadas, por exemplo, rumo a uma edição de domingo repleta de bons textos que precisaram apenas ser reformatados em páginas atraentes, dei um pulo numa sala próxima à redação para passar os olhos em edições recentes do Diário de Natal, que como integrante dos mesmos Diários Associados, enviava regularmente seus exemplares para Brasília. Eram tempos pré-internet, onde só se podia ler o jornal de um estado distante recorrendo a esses artifícios.
Abro o Diário e vou folheando sem pressa quando deparo com a notícia da morte do jornalista Alfredo Lobo, que outro dia mesmo estava ali naquela mesma redação, à frente do caderno de Turismo. Pra deixar mais claro o impacto da notícia: Alfredo Lobo foi um dos muitos jornalistas encerregados de fazer uma das inúmeras mudanças editoriais no jornal Tribuna do Norte, também de Natal, durante a década de 80. E foi o responsável por um dos períodos mais ricos para quem lá esteve enquanto ele inseria no jornal natalense um frescor que dia a dia o diferenciava do concorrente - justamente o Diário onde anos depois eu leria a notícia da sua morte.
Mudando para Brasília, reencontrei Lobo - ele mesmo um dos principais responsáveis pela minha mudança para cá, mas isso é outra história -, no Correio Braziliense; eu como redator novato na sessão Brasil/Política e ele como editor do suplemento de Turismo. O tempo moveu suas rodas, Lobo deixou o Correio, voltou a Natal para novo desafio - reformar outro jornal, desta vez o Diário - e o contato foi se perdendo. Um dia, Lobo de volta a Brasília mas trabalhando em alguma assessoria, nos encontramos num shopping e almoçamos juntos, relembrando os tempos de Natal. A roda do tempo move-se novamente e... aqui estou eu na sala próxima à redação do Correio com o Diário nas mãos e o coração aos saltos.
Ainda bem que não era a primeira vez (!?): pois é, já havia acontecido antes. Morei durante um bom tempo no conjunto Parque das Pedras, em Natal, em tempos de vacas magras e felicidade urgente. Tempos de inflação em alta, quando a gente alugava um apartamento por uma fortuna que, dois meses depois, valiam quase nada. E nisso, pulando de um apartamento do Parque das Pedras para outro, acabei ocupando um imóvel de propriedade de um médico que vivia em Brasília (!), mas cujo aluguel devia ser pago à sua avô, uma solitária e nostálgica velhinha que residia num quartinho de fundos de uma casa em Petrópolis, ali perto do Palácio dos Esportes, em Natal.
Dona Letícia Galvão tinha perdido quase tudo na vida - o marido, o único filho, os bens, o conforto. Só restou a ela o neto, um único e escasso neto como diria o dramaturgo. Na sua velhice solitária, Dona Letícia escrevia romances a ponta de lápis em cadernos pautados, vivia rodeada de fotografias e figuras de revistas que lhe remetiam aos tempos passados, e tinha toda uma vida de recordações acondicionadas em um cômodo escuro onde o único brilho vinha de uma tevê de 14 polegadas que o neto lhe comprara há pouco tempo.
Toda vez que eu ia pagar o aluguel, Dona Letícia me alugava - com o perdão do trocadilho, que está aqui apenas para você me entender melhor e não por galhofa. Eram horas e horas escutando as histórias dos saraus literários que aconteciam na casa de Dona Letícia quando ela era apenas uma poetisa na flor da juventude; uma corredeira de minutos escoando naquela casa de fundos enquanto ela lembrava do dia-a-dia com os pais e as irmãs numa Natal que não existia mais; ampulhentas virando e revirando enquanto ela, melancolicamente, mudava das lembranças de outrora para a penúncia dos dias de então, quando a relação com as irmãs - que também lhe restaram, mas de nada serviam - desandava. Sessões de um quase monólogo muito típico de pessoas mais velhas diante de ouvintes bem novos que invariavelmente denotava também a falta que ela sentia da presença física do neto distante no tempo e no lugar.
Sensibilizado com o mundo de Letícia Galvão, cheguei a produzir uma reportagem na TV Cabugi, que a repórter Lúcia Matias preparou com esmero e me entregou prontinha para uma edição minimamente sensível (sonorizada, infalivelmente, com Elis Regina cantando os sonhos mais lindos que sonhou). Mas acabei mudando de moradia e me distanciando de Dona Letícia, seus cadernos e suas memórias. Um dia, outro dia qualquer como aquele em que fiquei sabendo da morte de Alfredo Lobo, ou como hoje diante da revista com o obituário de Roger Ebert, abro um jornal casualmente na redação da TV Cabugi e lá está: um anúncio de missa de sétimo dia em lembrança da alma de Letícia Galvão. Publicado pelo neto, a única pessoa no mundo que lhe restara no final da vida.
Com a confidente Letícia, o renovador Alfredo Lobo e o instigante Roger Ebert vou aprendendo que, mais do que fazer doer o coração, a morte é este ponto final que intriga a cabeça da gente; expõe nossa vulnerabilidade, esquadrinha essa intangível falta de dimensão mensurável que somos nós outros, os vivos.
Mas tomar conhecimento por meio de uma nota impressa no jornal sobre o falecimento de quem nos foi querido, ainda que distante, às vezes inalcançável, é como recobrir a morte de uma camada a mais de perplexidade.
Dói de um tipo de doçura como a do chocolate que cobre a massa do bolo de aniversário: você fica a pensar na vida e na morte como esse sabor de nada no fundo da boca, como se uma entidade desconhecida lhe houvesse tirado o doce das mãos da criança que você, sem saber, continua sendo.
domingo, 31 de março de 2013
CINE JOÃO BATISTA
Pra quem ficou na curiosidade depois de percorrer o post anterior, aqui vai uma mesa posta com filmes documentais feitos por João Batista de Andrade nos tempos da TV Cultura e do Globo Repórter pioneiro da Globo. Era um país emudecido abrindo brechas para se conhecer e se reconhecer na tela da sala de estar. Questões sociais que hoje, com tudo aberto, tudo declarado, tudo possível e tudo permitido, as leis de mercado nem sempre permitem que sejam expostas com o vigor daquela triste época. Coisas do tempo e das sociedades. Com vocês, João Batista: vejam comigo que eu também só conhecia esses títulos pelos nomes (a partir da leitura do livro-depoimento do cineasta, "Alguma solidão e muitas histórias", organizado por Maria do Rosário Caetano); é uma estreia atrasada mas viva. Vejam e passem para a frente:
1.Wilsinho Galileia (sobre a construção narrativa de um bandido oficial)
2.Céu aberto: (a partir da agonia de um país acompanhando os boletins médicos sobre Tancredo Neves)
3.Migrantes: o título é auto-explicativo no Brasil dos anos 70
1.Wilsinho Galileia (sobre a construção narrativa de um bandido oficial)
2.Céu aberto: (a partir da agonia de um país acompanhando os boletins médicos sobre Tancredo Neves)
3.Migrantes: o título é auto-explicativo no Brasil dos anos 70
4. Greve! (primeira parte do doc sobre as greves no ABC paulista, primeiro movimento social de contestação a balançar as bases da dituradura no final na década de 70)
PECADOS DA SEMANA
Meu Domingo de Ramos foi uma bicicleta, pra me harmonizar cristianamente com os novos hábitos de consumo-esporte-deslocamento dos que estão muito além de Deus. Adquirida em supermercado a preço de ocasião que é pra não incorrer no pecado do farisaísmo professante.
Meu jejum de esmoler literário buscou o pão essencial da palavra no anti-santo Itamar Assunção, o músico-poeta que ganhou liturgia nova via o catecismo blues da não freira Zelia Duncan, no CD "Tudo Esclarecido". Do qual recomendo pelo menos a audição - de joelhos, por favor - de "Noite Torta". Coisa para contrastar com estes dias de paixão.
Meu lava-pés foi testar minhas crendices sociais assistindo ao mais recente filme de Cláudio Assis, uma absoluta antimissa marginal filmada em branco e preto com maestria comovente pelo Papa Walter Carvalho, interpretada e protagonizada pela figura natimorta de um poeta de rua do tipo que tanto denuncia os que estão à sua volta quanto lambe a suculenta pena que alimenta em relação à sua própria pessoa. Um Cristo de outra extração, feito pelo ator Irandir em transe glauberiano - uma estranheza que agora as leis de incentivo permitem sem que o realizador precise doar a sua vida pelo irmão, digo, pela arte. Se o público não vem atrás como apóstolo excitado deste evangelho ao avesso o problema é dele, dizem.
Minha sexta-feira santa foi festiva se comparada àquela dos meus tempos de outrora. Nada de desligar a televisão, nada de música fúnebre no rádio, nada de casas não varridas, comidas não tocadas, banhos não tomados, nada de nada de nada de nada de antigamente - que, por sinal, parece que foi ontem. Agora tudo pode: graças a Deus, somos os novos deuses da liberdade individual. Claro que um bispo aqui outro acolá, às vezes onde menos se espera, onde menos cabe a presença de tais bispos, atrapalha um pouquinho: mas o que seria da vida sem um obstáculo pra gente remover? Então: minha sexta-feira não foi santa, foi comum. Melhor (digo, pior): foi bem pecadora. Repleta de sons, imagens, letras, notas (musicais), percepções, contemplações. Como a gente nunca se contenta, faltou nostalgia: deu vontade ver a Paixão de Cristo na televisão em branco e preto. Mas nenhum canal exibiu. Meu pecado supremo: ouvir Madeleine Perroux como quem prova uma hóstia ensanguentada no dia do sacrifício de Adonai. Madeleine é irresistível e Deus há de me perdoar. (Divida este pecado auditivo comigo dando um play num dos videos que acompanham esse não evangelho).
Meu sermão da montanha, o pungente depoimento do quase padre de tão sofrido João Batista de Andrade, o cineasta que o Brasil parece ter esquecido lá nos anos 80. Sou seguidor de João desde que um dia, em 1984, entrei no Cine Veneza, em Recife, e esqueci quem era, quando era, onde era, o que era, ingressando sem lenço nem documento na história e nas histórias de "A Próxima Vítima", filme em que João Batista usa uma série de assassinatos de prostitutas no bairro do Braz, em São Paulo, para falar do que, diria ele, são questões sociais eternamente tratadas como se fossem problemas policiais. O filme mistura demandas sociais com telejornalismo viciado, uma pegada noir nunca oportunista com um ritmo de thriller que jamais perde a brasilidade. Vi e revi - e nunca mais vi outra vez porque é um desses títulos que não apareceu em DVD (desesperançado demais, só tem chance se virar cult). No filme, João insere todo o seu ideário falido, seu sofrimento professo diante dos obstáculos que a vida colocou na vida dele e do país dele - por acaso, o nosso; não olhe para o lado, leitor. O baque de 64 (golpe), a trava de 68(AI-5), o trauma de 75 (Vlado). E no livro, tudo isso está muito bem narrado, organizado, dissecado, estudado e só não posso dizer que está digerido, porque João Batista de Andrade (que também realizou o já clássico "O homem que vivou suco" e faria aqui em Brasília "O cego que gritava luz") tem o bom gosto de se declarar permanentemente em crise, sem nunca superar certas coisas. Um delas daria um filme que jamais foi feito - bem que ele tentou: "Vlado", a história do homem e do seu tempo.
João foi amigo de Vladimir Herzog (outro Cristo, sacrificado na ceia dos nossos generais e civis de linha dura, como se vê na foto que abre o post) e integrou a equipe do telejornal revolucionário que o jornalista colocou no ar pela TV Cultura de São Paulo. Alguém poderia retomar o projeto e filmar "Vlado": até mesmo alguém com um olhar tipo ano 2000, como Fernando Meirelles, que vem de outra tradição no cinema brasileiro. Outro dos novos realizadores poderia seguir a onda e tirar do papel o projeto "Os Demônios", outro filme que João Batista não conseguiu fazer, sobre um tema que palpita na ordem do dia: as limitações da lei de anistia expostas no roteiro feito com Lauro Cesar Muniz a partir da volta de um exilado ao país na brisa política de 1979. Filmes que não foram feitos, no livro de João Batista editado pela Imprensa Oficial de São Paulo e organizado por Maria do Rosário Caetano, ganham força muito maior do que tantos que já entraram e já saíram de cartaz sem deixar rastros. É preciso dar atenção a eles, esses outros sacrificados da semana das oferendas mais sofridas.
Domingo de Páscoa, cá estou eu, esperando o suor da caminhada se evaporar do corpo pecador enquanto atualizo a sopa amarga que o jejum frequentemente me serve. Todos continuam sendo muito bem-vindos a tal banquete, meus irmãos em lástimas, glórias e registros docemente macerados.
quarta-feira, 20 de março de 2013
FEITO BONECAS RUSSAS

No caso de McEwan, chega a parecer uma repetição: também no seu mais que conhecido "Reparação", singramos mares de culpa mal digerida e ressentimentos guardados nos bolsos dos personagens para apenas e somente ao final descobrir que o livro é, em si mesmo, um gigantesco e emocionado pedido de desculpas: a própria materialização deste reparo emocional que dá título ao romance. No filme feito a partir do livro essa resolução surge ainda mais afirmativa, forte, acachapante. Neste "Serena", cujo lançamento mundial se deu numa das festas literárias de Paraty, o batuta McEwan nos enrola da primeira até praticamente a última página - e o sabor dessa mistificação é a pimenta do livro, muito além da idéia de que se trata de uma brincadeira com o gênero do romance de espionagem, que é a forma como o título foi vendido no mercado editorial. Ao final da leitura, a gente percebe que esse papo de exercício de narrativa de guerra fria, essa emulação gaiata de John Le Carrè era mais uma piada de Ian McEwan pra despistar o leitor. Exatamente como Hitchcock fazia no lançamento dos seus filmes - ou ao menos do seu filme mais impactante (embora, certamente, não o melhor), o "Psicose" que está de volta à mesa dos assuntos (mas este é outro assunto, para um próximo livro das aventuras do Leitor Bagunçado).
O nosso Hatoum, naturalmente, ventila outras atmosferas nas suas histórias filtradas pelas memórias familiares de um clã libanês recontextualizando a vida na Amazônia brasileira. Sai Londres, entra Belém do Pará. "Relato de um certo Oriente" é um saboroso texto quase impressionista, que se lê como se estivesse fechando os olhos para entrar num sonho sonhado por outro alguém, uma dissertação onírica disfarçada de saga familiar. Não tem como não lembrar da Macondo de García Marquez lendo Milton Hatoum, mas não é bem disso que se trata. Onde o Nobel latino saturava páginas e páginas com pequenas e gigantescas lendas de aldeia, empanturrando nossos olhos de caminhos de contos, Hatoum investe muito mais no cheiro literário exalado pelos seus personagens. Dá-se muito pouco no seu "Relato", mas sente-se muito a cada vez que se vira uma página. Se o leitor de repente se ver envolvido por uma bruma de calor, umidade e cheiro de roupas velhas não será por acaso: é obra da escrita do autor.

Só não deixa de ser curiosa a equivalência metalinguística de dois livros tão distantes no tempo e no lugar e tão próximos na qualidade e no enlevo proporcionado.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
À SOMBRA DOS METEOROS
Parece que um meteoro caiu na Terra enquanto eu estava de férias. Ou teriam sido dois? Quando a gente volta pra casa depois de uma viagem, ou de uma série delas como é o caso agora, parece que foi tomado por uma espécie medicinal de amnésia social que nos deixa à parte de todos os acontecimentos transcorridos, sejam grandes, pequenos, verdadeiros ou inventados, promovidos ou fantasiados.
O fato é que,
em termos astronômicos, o meteoro russo (não confundir com Tostói ou Putim)
passou praticamente do meu lado enquanto eu me distraía com as piscinas
naturais da Praia do Futuro e nem me dei conta. Outro astro parecido, que
acabou de entrar para o sistema solar da política nativa, também quase cai na
minha cabeça: um tal de “Rede”. Mas, qual nada, flanando pelo calorão de
Fortaleza, a palavra “Rede” pra mim não soaria como mais do que aquele artigo
para dormir à moda indígena que está à venda em nove entre dez barraquinhas de
praia.
Não que as
férias me transformem num autêntico marciano em temporada no planetinha das
expiações infindas: até eu, no enfado matinal do meu quarto de hotel, estou
sujeito a ligar a televisão na Globo News e ser informado da última catástrofe
ocorrida no astro que habitamos – e, mais uma vez, é curioso como meu sexto
sentido sempre liga na GNews em dias de catástrofes matinais. Ratzinger jogou a
toalha e deixou meio mundo de mitra caída.
De uma hora
pra outra, estando de férias ou no trabalho, viramos todos cardeais tanto
quanto nos tornamos técnicos de seleção em véspera de Copa do Mundo. Volto pra
casa e devoro a edição dominical do jornal “O Globo”, onde fico a par de tudo,
inclusive da nova celebridade do mundo dos conflitos mundiais: Tarcísio
Bertone. Tarcisão é o novo Ravengar do pedaço, o Zé Dirceu do Vaticano, o PC
Farias de Roma, o Renan da Cúria. Ele é assim-assim com Ratzinger, mas foi quem
botou Jeseph nessa enrascada, se eu entendi direito. O Globo foi muito mais
claro – ocupou-se em explicar a farofa política do Vaticano; enquanto a “Veja” –
que outrora era uma ótima fonte de esclarecimento em casos assim – esforçou-se
tanto por comentar, à sua maneira, o acontecido, que tornou tudo muito mais
confuso. Reza uma verdadeira missa pra
Bentinho, só faltou canonizar o cara – seu milagre justificatório à santidade
seria a coragem da renúncia – mas se contradiz toda ao ter que afirmar sobre a
ligação dele com Tarcisão. O conservadorismo não precisa de tamanha curva para
conquistar seus adeptos, ou reforçar os que já tem, como deve ser mais o caso
da “Veja” atual e seus leitores derradeiros. Melhor ser sincero, mas há tempos,
reconheço, honestidade intelectual não faz a cabeça de ninguém.
Agora você
imagine essas torções textuais quando se trata de matéria muito mais sensível
como é o caso do caso Yoani Sánchez.
Acho que em algum momento eu falei, lá nos primórdios deste texto, sobre
notícias verdadeiras ou não, inventadas ou fantasiadas. É por aí. Entre
Ratzinger e Yoani canonizados, sou mais Bentinho explodindo de ciúmes por
Capitu: em termos de fantasia, o noticiário de Machado é muito mais real.
CALDINHO DE FORTALEZA
O fato é que
Fortaleza queima a pele e aspira a umidade, mesmo sendo o portal do Atlântico
que também é. Soa estranho demais para a gente encontrar palavras. Quem sabe
relendo Alencar – este primeiro autor verdadeiramente brasileiro, segundo nos
vem nos alertando há tempos Ariano Suassuna, em contraponto ao domínio carioca
de Machado, sem tirar, obviamente, os méritos deste último, que não são poucos.
Mas o calor
seco de Fortaleza – que, comparação por comparação, lembra o de Brasília entre
setembro e novembro; mas aqui não tem
mar, coração! – não é coisa de literatura. É vero, e só lhe dá um refresco, tão
estranhamente quando a falta de vento nas praias urbanas, quando você está lá
no alto da cidade, na agradável Praça do Ferreira. Quer se ventilar? Suba. Quer
se fritar? Desça. Mas derreter não dá: embora a cidade conte com uma igreja gótica
perfeita como ilustração daquele ditado sobre “o calor de derreter catedral”, a
bela Notre Dame local, que não faria feio diante de nenhum corcunda, está livre
deste risco. Porque não existe suor em Fortaleza, e sem essa substância que
corre abundante nas peles que habitam ou visitam Natal, João Pessoa ou Recife,
criatura alguma – sobretudo catedrais – é capaz de derreter frente ao calor
ambiente.
Por fim, o
cearense: a ele nada disso incomoda. E novamente ao contrário do cidadão de
Natal, João Pessoa ou Recife, ele tá nem aí pra ar refrigerado. Não há, e por
vontade própria, muitos “ambientes climatizados” em Fortaleza. No hotel,
tomávamos café em temperatura ambiente – quase a do próprio café sorvido; de
maneira que não dava nem pra se refrescar queimando a língua de propósito. Tudo
bem que era um hotel temático, emulação dos anos 30 – mas não precisava exagerar.
Disse a nossa guia amiga local Regina Luna que parte do específico calor local
vem do fato de a cidade ser muito asfaltada – faltam os aprazíveis calçamentos
de pedra de Natal (tá vendo, Natal? E vocês aí sempre se diminuindo diante do
mundo...).
Certo mesmo
é que o pessoal do Ceará não gosta de ar condicionado – nem os taxistas,
acredite – e, quando usa, é numa potência bem baixinha. Entrar no quarto do
hotel exigia uma espécie de despressurização da cabine aplicada à temperatura:
só uma meia hora depois de trancado lá dentro é que o aparelho começava a fazer
algum efeito.
Mais:
calorento e bem resolvido, o cearense tem um defeitinho quase imperceptível –
para eles, não para os visitantes: uma certa mania de soar o tempo inteiro como
humorista. Precisa não: basta ser natural. Mas o pessoal força um pouco a barra
– sobretudo guias turísticos e motoristas de táxis. Esses, em qualquer lugar aonde
se vá, sabe-se: são os resmungões de sempre, juízes do mundo, palmatórias das
misérias alheias. Agora você misture isso com um desejo não realizado de ser –
mais um – humorista no pedaço e terá uma ideia.
Encontramos
um que tentou tanto nos agradar insultando Lula – essa praga que se abateu
sobre o país e daí pra frente – que não fosse o bigodinho extemporâneo eu teria confundido facilmente com aquele
menino, Diogo Maynard. Mas esse taxista, pelo menos, era avesso ao calor e
ligou o ar condicionado no máximo – o máximo deles lá. Dizia que veio do sertão
e já tinha passado calor demais na vida para andar em temperatura ambiente. Eu falei
que a fixação no humor era uma constante. E Fortaleza, naturalmente cheia de
graça, nem precisa apelar.
sábado, 16 de fevereiro de 2013
Todos ao barracão
Seria uma injustiça chamar Joel Monteiro de “novo ator”, mas é que o protagonismo que ele assume na nova montagem dos Clowns, criada com o diretor convidado Marcio Aurélio, obviamente se impõe. Para quem não liga o nome à pessoa, Joel deu vida ao canalha-abilolado Pereira, na montagem que Yamamoto dirigiu para o primeiro texto teatral do polivalente Xico Sá, “A Mulher Revoltada”, apresentada brevemente num circuito Rio-Brasília. Mas a ascensão de Joel ao posto de personagem mais cobiçado da dramaturgia planetária não é a única novidade neste “Hamlet – Um Relato Dramático Medieval” que assombra as noites claras de Nova Descoberta e que, além de Yamamoto, tem também Lígia Pereira na assistência de direção. Temos ainda, ao menos neste início de temporada, uma encenação que tem feito alguns sentirem falta de certa leveza lúdica que já é parte do estilo Clowns de fazer teatro e recriar nas bandas de cá a dramaturgia do supremo bardo ocidental. Esses dois elementos, o Hamlet mais para incisivo do que para vulnerável que Joel nos apresenta – um Hamlet que visualmente remete mais ao Otelo, mas cuja revolta é tão marcante que já apresenta respingos de um Ricardo III – e o caráter enxuto, violentamente exato, implacavelmente seco da montagem são os marcos iniciais desta nova aventura do grupo. Quem aproveitar a temporada de apresentações no próprio barracão vai ter um ganho a mais: parte daquela atmosfera de claustro familiar habitado por intrigas, ressentimentos e ódios mal contidos vai se perder no esplendor de um Teatro Alberto Maranhão, por exemplo.
Essa claustrofobia é bem o oposto do que se costuma ver nos espetáculos dos Clowns, especialmente do último, esse sucesso popular que foi o “Sua Incelença Ricardo III”, germinado dionisiacamente sob a batuta conjunta de Yamamoto e Gabriel Villela. Os Clowns saem da profusão pop-festiva que marcou a temporada anterior para o seu inverso: a busca de uma exatidão que pede intensidade contida onde o espetáculo anterior era pura inventividade expandida. Mas não há como o germe criativo original dos nossos clowns não se inocular nas veias da revolta hamletiana: é claro que isso começa a acontecer quando o príncipe atormentado se aproveita da passagem pelo reino de um grupo de teatro mambembe para reencenar, provocativamente, o assassinato do pai. A respiração típica dos Clowns começa a surgir aqui – e a impressão que temos é de que, quanto mais o grupo vá cimentado a montagem, mais esse sopro vá se transformando no vento nordeste que caracteriza o seu trabalho. Por hora, ele se infiltra em algumas frestas, como os fiapos de ironia com que César Ferrario quebra a inflexibilidade pomposa de seu personagem; no colorido dos movimentos que a dupla Camille Carvalho e Paula Queiroz usa para emoldurar com leveza o peso do retrato encenado; na loucura translúcida, branca e percussiva da Ofélia de Titina Medeiros. E, é evidente, no aparelho vocal de Marcos França e no uso que ele faz deste instrumento músico-dramático, porque se houver uma trilha sonora capaz de identificar o grupo a quilômetros, será a voz deste ator, e a musicalidade é um adereço à parte da companhia, sejam em prosa ou em verso. Não à toa, cabe a Marcos França o rei usurpador – como lhe coube o próprio Ricardo III do espetáculo anterior e o mestre de cerimônias do “Roda Chico” de divertida memória. Com a elegância de costume de Renata Kaiser, não há Shakespeare que não esteja sujeito a ganhar uma nova descoberta pelas caravelas desta trupe.
Hoje e amanhã; e de 20 a 24 de fevereiro, no Barracão dos Clowns, rua Amintas Barros, 4673, Nova Descoberta, Natal RN. De quarta a sexta às 20h, sábados e domingos às 19h. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Informações: (84) 3221-1816
sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013
DA VIDA DOS OUTROS
Biografias são espelhos. Nelas o leitor projeta suas anônimas e pequenas querelas diárias em busca do reflexo vindo de vidas trágicas, imensas, corajosas e desafiadoras. No Brasil recente, aprendemos com Fernando Moraes e Ruy Castro a ler biografias bem espanadas, em que a trajetória dos biografados, além de ilustrar o que pode uma vida no painel geral das circunstâncias, acentua o valor dessas últimas, construindo painéis históricos de irresistível força atrativa e informalidade narrativa. A gente abre o livro e tenta se ver no que for possível, seja diante de um músico que revolucionou a estética de um país como João Gilberto em “Chega de Saudade” ou no enfrentamento de uma ditadura exclusivista e ferrenha, como Fidel em “A Ilha”.
Desde então, a gente nunca mais parou de se mirar neste espelho. Um dos mais reluzentes que está atualmente na praça – digo, nas livrarias – é o primeiro volume da trilogia em que trabalha Lira Neto: seu “Getúlio – Dos anos de formação à conquista do poder” é um daqueles livros caleidoscópicos, uma biografia que não se exime de examinar cada episódio paralelo que se meteu no caminho do mais trágico, desafiador e corajoso líder político do país. Lendo “Getúlio”, a gente se mira no espelho do tempo histórico – no que colocamos o próprio país de hoje para se comparar diante dos conflitos recorrentes do século passado – e ainda fica muito mais ilustrado. Para citar alguns exemplos, há páginas e páginas sobre figuras como o “Leão de Caverá”, sobre fenômenos como o “Borgismo” no Rio Grande do Sul, sobre a mais que recorrente personalidade que é “Oswaldo Aranha”, uma visão mais transversal sobre Luiz Carlos Prestes do que nos deu outro clássico do gênero, “Olga”, de Fernando Moraes. O “Getúlio” de Lira Neto é este livro-espelho, essa biografia-totem que tanto quanto erige os detalhes que levaram à construção do mito também lhe desconstrói os pedaços de contradição que caracterizaram o homem.
Nada disso: o caminho de Dilma, descrito com a força dos fatos pessoais inseridos nas várias realidades do Brasil que a biografada viveu, soa coerente, progressivo, às vezes até meio automático. Amaral preenche os vazios da narrativa reconstruindo episódios recentes da vida política do país, como as mil e uma crises da campanha eleitoral que levou Dilma ao Planalto, no que ajuda o leitor a didaticamente reorganizar suas informações dispersas sobre o período – este, sabe-se, é outro dos efeitos das melhores biografias. O leitor sente falta de um pouco mais de proximidade com a Dilma dos bastidores, mas talvez isso se dê pelo fato de ela estar aí, no exercício de sua presidência e de seu poder político, o que sempre reforça a curiosidade em torno da pessoa, dos novos obstáculos que enfrenta, como enfrenta, com que lógica, o que pensa, onde quer chegar – enfim, é o resíduo natural de um livro como este.
O que mais sobressai na verdade são as frases e os raciocínios exatos da atual presidenta, em vários momentos da vida. Uma delas, das primeiras a produzir seus reflexos na página, diz que “A vida não é fácil. Nunca foi.” Aí está a essência do que diz a frase de abertura deste texto: biografias são espelhos – e é se vendo como reflexo anônimo nesta frase da célebre primeira mulher a ser presidente do Brasil que a máxima se confirma e se reinventa. Precisa chegar a presidente para entender aquela sentença? Há outras, tão marcantes quanto: “Sou uma mulher dura cercada de homens meigos”, lembra? E sobre aquela tendenciosa entrevista a William Bonner e Fátima Bernardes durante a campanha, na bancada do Jornal Nacional, que incomodou todo mundo por um excesso de cobrança que não se veria diante dos demais candidatos: “Eu achei que ia ser uma entrevista chochinha. Eles resolveram esquentar...” Pois é, ao contrário dos seus eleitores, Dilma nem ligou.
O terceiro livro a fazer parte desta conversa não é exatamente uma biografia, mais uma memória dos tempos infantis. Duros tempos infantis, bem diversos da maneira como o presente trata suas crianças – inclusive aquelas que já têm pra muito mais de 18 anos. Não importa: “Formosa És – Memórias do Internato”, em que Clotilde Tavares relembra seus tempos de criança de oito anos entre os muros de uma escola de freiras no interior de Pernambuco, na cidade de Bom Conselho, é um espelho vivo tanto quanto qualquer biografia – o que, como memória, ela também não deixa de ser. Estamos entre janeiro de 1956 e dezembro de 1957, o Brasil é outro, o Nordeste brasileiro nem se fala, a moralidade é imperativa, as possibilidades de uma família criar seus filhos com conforto e perspectiva é incerta, o mundo até parece ser em branco e preto ou sépia como um velho filme do tipo “Marcelino, Pão e Vinho”. Clotilde rememora a experiência de, tão criança, ver-se instalada num colégio interno de regras rígidas e hipócritas como a época, um tempo que hoje pode até parecer meio idílico, mas só é assim se a gente varrer da memória os padrões de comportamento quase talibânicos de tão bolorentamente religiosos e intolerantes que vigoravam então.
No espelho de “Formosa És” enxergamos os dias atuais por meio dos raios foscos que aquele tempo passado emitia: Clotilde é exata, e quanto mais dura, direta, sem rodeios mais soa forte, autêntica, dramática e impactante sua reconstituição. A bem da verdade, somente pela extensão – é um livro breve, que se lê muito rapidamente – o relato pode soar erroneamente leve. Não se trata disso: esqueça a face doce da autora e aproxime-se dela pelo seu lado mais cortante, aqui de longe o seu melhor. “Éramos famintas. Vivíamos famintas” é o tipo da frase que dá bem a medida do texto – e quem, como eu e muitos amigos, viveu em colégio interno saberá bem do que Clotilde está falando. Mas mesmo para quem nunca sentiu essa fome crônica e existencial do ser chamado “estudante de internato” este “Formosa És” será, a despeito da brevidade do volume editado pelos “Jovens Escribas” de Natal-RN, um espelho amplo como um painel na parede, projetando infâncias, carências e primeiras rebeldias de um Brasil a caminho de se tornar o complicado, mas muito mais arejado, país atual. Mirem-se nestes três livros e se deixem iluminar por tudo o que tais biografias são capazes em matéria de reflexão.
quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013
SORTE, ARTE E FESTA
Assim como no CCBB, na Caixa Cultural 2013 também começa com uma série de exposições de artes plásticas perfeita para quem deseja iniciar o ano abrindo os poros da visão: a série “Sorte na Arte” traz para Brasília os trabalhos originais de Di Cavalcanti, Djanira (acima), Poteiro, Glauco Rodrigues, Carlos Scliar e outros artistas feitos para ilustrar bilhetes da loteria federal. São telas, gravuras e outras criações que reproduzem o colorido de festas populares como o São João e o Natal, além de outra série feita em 1967 para exaltar os heróis nacionais – mas embora o ano traia o propósito Brasil Grande de então, não feche os olhos de cara, que um Tiradentes sempre pode lhe aparecer em molduras muito mais pop art à brasileira do que poderiam desejar os sisudos generais do período. A exposição fica em cartaz na Caixa Cultural até 3 de março, de terça a domingo, das 9 às 21h. www.caixa.gov.br/caixacultural
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
HAMLET CHAMA
Hamlet em Nova Descoberta é realmente Hamlet em uma nova descoberta, sob o luar do litoral nordestino, aclimatando seus rancores familiares aos tabuleiros brazucas. Aqui, fiordes e gargantas dão lugar ao ventinho que nem com toda leveza é capaz de espanar completamente as cismas humanas dos irmãos mais ou menos torturados do príncipe dinamarquês – eu, você, nós. Hamlet em nova descoberta, com maiúsculas e com minúsculas, é a recriação potimundializada do texto clássico em costura fina pelas máquinas pensantes dos Clowns de Shakespeare. A temporada é no próprio barracão onde a montagem foi forjada em suores bálticos pelos artistas, no bairro de Natal onde o sol se reparte entre quartéis e universidades. A partir do próximo dia 13, de quarta a sexta às 20h e às 19 aos sábados e domingos. Ingressos a R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Convém não perder tempo que o espaço é apropriadamente pequeno - mas há saída de segurança para quem não suportar, mais do que o medo das catástrofes, a claustrofobia da trama – e a lotação logo se completa. Não se aperreie se, ao sair do espetáculo, vier uma vontade de esfaquear os coqueiros nos muitos terrenos baldios do bairro. Pode ser o Hamlet nordestinizado produzindo seus explosivos deslocamentos de ar.
VAI PASSANDO A PROCISSÃO
domingo, 3 de fevereiro de 2013
VOAR, COM ARTE
O ano recomeça bem servido de arte visual em Brasília: no CCBB a tarde desse sábado, 2 de fevereiro, era de muitos preparativos para novas exposições. A que mais chama atenção é a do artista chinês Cai Guo-Qiang, cujos artefatos algo mecânico e desconcertantemente poéticos vai tomar conta de todos os espaços a partir de 5 de fevereiro (também no Museu Nacional dos Correios). Estivemos lá ontem para testar da melhor maneira possível os efeitos de uma cirurgia de correção de miopia e o que vimos, sem óculos e com a acuidade que a curiosidade também provê, foi uma algaravia interessante de máquinas, engrenagens, furadeiras e burburinhos ansiosos de vozes humanas que voltam a se integrar à vida da cidade em busca de trabalho e beleza. Também está sendo montada uma exposição cujo mote é o desejo humano de voar. Há protótipos pendurados em galpões ainda em montagem e deu pra ver, como se fora uma performance em si, os operários grudando no alto do prédio a frase que tenta deixar o visitante no clima dessa nova levitação. Acompanhe a montagem e voe você também: mas não esqueça de voltar ao CCBB quando o espetáculo de fato começar.
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