sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

DA VIDA DOS OUTROS


Biografias são espelhos. Nelas o leitor projeta suas anônimas e pequenas querelas diárias em busca do reflexo vindo de vidas trágicas, imensas, corajosas e desafiadoras. No Brasil recente, aprendemos com Fernando Moraes e Ruy Castro a ler biografias bem espanadas, em que a trajetória dos biografados, além de ilustrar o que pode uma vida no painel geral das circunstâncias, acentua o valor dessas últimas, construindo painéis históricos de irresistível força atrativa e informalidade narrativa. A gente abre o livro e tenta se ver no que for possível, seja diante de um músico que revolucionou a estética de um país como João Gilberto em “Chega de Saudade” ou no enfrentamento de uma ditadura exclusivista e ferrenha, como Fidel em “A Ilha”.
Desde então, a gente nunca mais parou de se mirar neste espelho. Um dos mais reluzentes que está atualmente na praça – digo, nas livrarias – é o primeiro volume da trilogia em que trabalha Lira Neto: seu “Getúlio – Dos anos de formação à conquista do poder” é um daqueles livros caleidoscópicos, uma biografia que não se exime de examinar cada episódio paralelo que se meteu no caminho do mais trágico, desafiador e corajoso líder político do país. Lendo “Getúlio”, a gente se mira no espelho do tempo histórico – no que colocamos o próprio país de hoje para se comparar diante dos conflitos recorrentes do século passado – e ainda fica muito mais ilustrado. Para citar alguns exemplos, há páginas e páginas sobre figuras como o “Leão de Caverá”, sobre fenômenos como o “Borgismo” no Rio Grande do Sul, sobre a mais que recorrente personalidade que é “Oswaldo Aranha”, uma visão mais transversal sobre Luiz Carlos Prestes do que nos deu outro clássico do gênero, “Olga”, de Fernando Moraes. O “Getúlio” de Lira Neto é este livro-espelho, essa biografia-totem que tanto quanto erige os detalhes que levaram à construção do mito também lhe desconstrói os pedaços de contradição que caracterizaram o homem.
Um corte brusco – nem tão brusco se você conseguir estabelecer certas conexões até meio óbvias – e caímos nas mãos de um novo produtor de espelhos. É o jornalista Ricardo Amaral que, aproveitando a proximidade com a pessoa e os acontecimentos que são a presidenta Dilma em sua ascensão de integrante da equipe de transição do então recém-eleito Lula até a substituição do próprio no Palácio do Planalto, construiu uma biografia cheia de raios luminosos que é a vida da ex-guerrilheira que virou a autoridade número um do país.  “A Vida quer é Coragem” refaz os passos dessa trajetória e a torna muito mais natural do que a gente sempre quis acreditar que pudesse ser.
Nada disso: o caminho de Dilma, descrito com a força dos fatos pessoais inseridos nas várias realidades do Brasil que a biografada viveu, soa coerente, progressivo, às vezes até meio automático. Amaral preenche os vazios da narrativa reconstruindo episódios recentes da vida política do país, como as mil e uma crises da campanha eleitoral que levou Dilma ao Planalto, no que ajuda o leitor a didaticamente reorganizar suas informações dispersas sobre o período – este, sabe-se, é outro dos efeitos das melhores biografias. O leitor sente falta de um pouco mais de proximidade com a Dilma dos bastidores, mas talvez isso se dê pelo fato de ela estar aí, no exercício de sua presidência e de seu poder político, o que sempre reforça a curiosidade em torno da pessoa, dos novos obstáculos que enfrenta, como enfrenta, com que lógica, o que pensa, onde quer chegar – enfim, é o resíduo natural de um livro como este.
O que mais sobressai na verdade são as frases e os raciocínios exatos da atual presidenta, em vários momentos da vida. Uma delas, das primeiras a produzir seus reflexos na página, diz que “A vida não é fácil. Nunca foi.” Aí está a essência do que diz a frase de abertura deste texto: biografias são espelhos – e é se vendo como reflexo anônimo nesta frase da célebre primeira mulher a ser presidente do Brasil que a máxima se confirma e se reinventa. Precisa chegar a presidente para entender aquela sentença? Há outras, tão marcantes quanto: “Sou uma mulher dura cercada de homens meigos”, lembra? E sobre aquela tendenciosa entrevista a William Bonner e Fátima Bernardes durante a campanha, na bancada do Jornal Nacional, que incomodou todo mundo por um excesso de cobrança que não se veria diante dos demais candidatos: “Eu achei que ia ser uma entrevista chochinha. Eles resolveram esquentar...” Pois é, ao contrário dos seus eleitores, Dilma nem ligou.


O terceiro livro a fazer parte desta conversa não é exatamente uma biografia, mais uma memória dos tempos infantis. Duros tempos infantis, bem diversos da maneira como o presente trata suas crianças – inclusive aquelas que já têm pra muito mais de 18 anos. Não importa: “Formosa És – Memórias do Internato”, em que Clotilde Tavares relembra seus tempos de criança de oito anos entre os muros de uma escola de freiras no interior de Pernambuco, na cidade de Bom Conselho, é um espelho vivo tanto quanto qualquer biografia – o que, como memória, ela também não deixa de ser. Estamos entre janeiro de 1956 e dezembro de 1957, o Brasil é outro, o Nordeste brasileiro nem se fala, a moralidade é imperativa, as possibilidades de uma família criar seus filhos com conforto e perspectiva é incerta, o mundo até parece ser em branco e preto ou sépia como um velho filme do tipo “Marcelino, Pão e Vinho”. Clotilde rememora a experiência de, tão criança, ver-se instalada num colégio interno de regras rígidas e hipócritas como a época, um tempo que hoje pode até parecer meio idílico, mas só é assim se a gente varrer da memória os padrões de comportamento quase talibânicos de tão bolorentamente religiosos e intolerantes que vigoravam então.
No espelho de “Formosa És” enxergamos os dias atuais por meio dos raios foscos que aquele tempo passado emitia: Clotilde é exata, e quanto mais dura, direta, sem rodeios mais soa forte, autêntica, dramática e impactante sua reconstituição. A bem da verdade, somente pela extensão – é um livro breve, que se lê muito rapidamente – o relato pode soar erroneamente leve. Não se trata disso: esqueça a face doce da autora e aproxime-se dela pelo seu lado mais cortante, aqui de longe o seu melhor. “Éramos famintas. Vivíamos famintas” é o tipo da frase que dá bem a medida do texto – e quem, como eu e muitos amigos, viveu em colégio interno saberá bem do que Clotilde está falando. Mas mesmo para quem nunca sentiu essa fome crônica e existencial do ser chamado “estudante de internato” este “Formosa És” será, a despeito da brevidade do volume editado pelos “Jovens Escribas” de Natal-RN, um espelho amplo como um painel na parede, projetando infâncias, carências e primeiras rebeldias de um Brasil a caminho de se tornar o complicado, mas muito mais arejado, país atual. Mirem-se nestes três livros e se deixem iluminar por tudo o que tais biografias são capazes em matéria de reflexão.

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