sábado, 16 de fevereiro de 2013

Todos ao barracão



O barracão do grupo teatral Clowns de Shakespeare, no bairro de Nova Descoberta, em Natal, é um quadrado hermético e escurecido de portas que parecem fechar para o mundo lá fora quem estiver lá dentro quando descem fanhosas como as de uma sapataria em fim de expediente. É um espaço para o exercício intenso do ensaio e do estudo – não para o prazer da apresentação ao público. Pois não haveria lugar melhor para se começar a apresentar uma rara versão de um Hamlet forjado num recanto litorâneo nordestino do que tal barracão: basta o diretor do grupo Fernando Yamamoto arriar as portas e o ambiente sufocante, escuro e inescapável começa a fazer o resto: você está pronto para ser apresentado a um novo ator, um novo Hamet, um novo espetáculo dos Clowns de Shakespeare.
Seria uma injustiça chamar Joel Monteiro de “novo ator”, mas é que o protagonismo que ele assume na nova montagem dos Clowns, criada com o diretor convidado Marcio Aurélio, obviamente se impõe. Para quem não liga o nome à pessoa, Joel deu vida ao canalha-abilolado Pereira, na montagem que Yamamoto dirigiu para o primeiro texto teatral do polivalente Xico Sá, “A Mulher Revoltada”, apresentada brevemente num circuito Rio-Brasília. Mas a ascensão de Joel ao posto de personagem mais cobiçado da dramaturgia planetária não é a única novidade neste “Hamlet – Um Relato Dramático Medieval” que assombra as noites claras de Nova Descoberta e que, além de Yamamoto, tem também Lígia Pereira na assistência de direção. Temos ainda, ao menos neste início de temporada, uma encenação que tem feito alguns sentirem falta de certa leveza lúdica que já é parte do estilo Clowns de fazer teatro e recriar nas bandas de cá a dramaturgia do supremo bardo ocidental. Esses dois elementos, o Hamlet mais para incisivo do que para vulnerável que Joel nos apresenta – um Hamlet que visualmente remete mais ao Otelo, mas cuja revolta é tão marcante que já apresenta respingos de um Ricardo III – e o caráter enxuto, violentamente exato, implacavelmente seco da montagem são os marcos iniciais desta nova aventura do grupo. Quem aproveitar a temporada de apresentações no próprio barracão vai ter um ganho a mais: parte daquela atmosfera de claustro familiar habitado por intrigas, ressentimentos e ódios mal contidos vai se perder no esplendor de um Teatro Alberto Maranhão, por exemplo.
Essa claustrofobia é bem o oposto do que se costuma ver nos espetáculos dos Clowns, especialmente do último, esse sucesso popular que foi o “Sua Incelença Ricardo III”, germinado dionisiacamente sob a batuta conjunta de Yamamoto e Gabriel Villela. Os Clowns saem da profusão pop-festiva que marcou a temporada anterior para o seu inverso: a busca de uma exatidão que pede intensidade contida onde o espetáculo anterior era pura inventividade expandida. Mas não há como o germe criativo original dos nossos clowns não se inocular nas veias da revolta hamletiana: é claro que isso começa a acontecer quando o príncipe atormentado se aproveita da passagem pelo reino de um grupo de teatro mambembe para reencenar, provocativamente, o assassinato do pai. A respiração típica dos Clowns começa a surgir aqui – e a impressão que temos é de que, quanto mais o grupo vá cimentado a montagem, mais esse sopro vá se transformando no vento nordeste que caracteriza o seu trabalho. Por hora, ele se infiltra em algumas frestas, como os fiapos de ironia com que César Ferrario quebra a inflexibilidade pomposa de seu personagem; no colorido dos movimentos que a dupla Camille Carvalho e Paula Queiroz usa para emoldurar com leveza o peso do retrato encenado; na loucura translúcida, branca e percussiva da Ofélia de Titina Medeiros. E, é evidente, no aparelho vocal de Marcos França e no uso que ele faz deste instrumento músico-dramático, porque se houver uma trilha sonora capaz de identificar o grupo a quilômetros, será a voz deste ator, e a musicalidade é um adereço à parte da companhia, sejam em prosa ou em verso. Não à toa, cabe a Marcos França o rei usurpador – como lhe coube o próprio Ricardo III do espetáculo anterior e o mestre de cerimônias do “Roda Chico” de divertida memória. Com a elegância de costume de Renata Kaiser, não há Shakespeare que não esteja sujeito a ganhar uma nova descoberta pelas caravelas desta trupe.
Hoje e amanhã; e de 20 a 24 de fevereiro, no Barracão dos Clowns, rua Amintas Barros, 4673, Nova Descoberta, Natal RN. De quarta a sexta às 20h, sábados e domingos às 19h. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Informações: (84) 3221-1816

Um comentário:

  1. Tião ficou muito massa!! Ontem terminamos nossa temporada e saímos muito felizes com ela. A temporada serviu para o amadurecimento do espetáculo e cada vez mais percebemos o quanto é necessário o exercício. É isso, vamos seguindo. Muito obrigada por tudo.

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