1-Scarlett O’hara é seguramente a primeira negacionista
célebre do cinema. No início do filme, cercada por pretendente aduladores,
fútil e caprichosa como certa pessoa dos meios políticos atuais, ela graceja
quando os rapazes lhe falam da possibilidade
de guerra. Não vai ter guerra coisa nenhuma e se insistirem, eu deixo vocês
falando sozinhos... Como se sabe, o pano de fundo do filme é a Guerra da Secessão
americana que estourou duas sequências à frente desta no filme. Alguma semelhança
com a gripezinha?
2-Rhett Buttler mostra o quanto os papéis sociais, mesmo os
mais estabelecidos, podem mudar quando um evento de proporções trágicas ameaça
grandes comunidades. No início do filme é visto como pouco mais do que um pária, contrabandista que
se vale de oportunidades fáceis para encher os bolsos. Quando a pandemia – ops,
a guerra – explode, consegue levar mercadorias para Atlanta furando bloqueios
militares dos yanques e, boom, torna-se um benquisto cidadão de bem admirado
por todos. Quem será que vai mudar de papel social ao fim deste isolamento e
seus efeitos?
3-Grande eventos traumáticos mudam padrões sociais. O que até
ontem jamais seria aceito, mesmo em termos de hábitos e rituais cotidianos,
passa a ser suportado agora, para um segundo depois ser admitido sem reservas,
e mais uns meses após ser visto até como algo desejável. Numa cena de baile, em
meio aos rumores da guerra, faz-se um leilão das garotas de família com quem os
cavalheiros queiram dançar. Um diálogo entre velhinhas vai do espanto à
justificativa em três breves falas (o roteirista é fera em concisão). Mas não
fica nisso. O sempre ousado Rhett Buttler resolve quebrar a banca e oferecer
150 pratas em ouro puro pra tirar uma viúva para dançar. Inimaginável. Pois a
proposta é aceita – especialmente pela viúva, a espevitada negacionista Scarlett
– e segue o baile. De que pudores nos livraremos no futuro imediato, alguém
arrisca? E quais serão os novos hábitos, além do majado teletrabalho?
4-Justamente por causa da impaciência de Scarlett por aquela
dança, Rhett tira sarro do seu fake luto, decorrente do igualmente fake
casamento. Os fakes estão por aí contaminando tudo há tanto tempo, por que a
gente não notava? Esse pessoal do gabinete
do ódio não descobriu a roda, apenas a adaptou às tristes recentes
circunstâncias brazucas.
5-Previsões apascentadoras para o conforto da platéia. Pois
o proprio Rhett Buttler as comete quando gira feito mosca de padaria em torno
do mel de Scarlett O’hara. Tasca-lhe numa cena ainda inicial a previsão de que
a guerra civil estaria prestes a acabar, dependendo apenas de uma reles
batalha. Estrategista, logo o cara se corrige e trata de transformar o evento
em papel moeda, mas antes ele também teve seu momento “gripezinha”, numa das
raras concordâncias com a megera desejada. A guerra estava só começando e as
mais de duas horas de filme à frente seriam um mostruários de horrores, como
bem serve de exemplo a cena dos socorro
aos feridos.
6-Falando nela, é outro momento que conversa aos gritos com
a realidade atual, como se o filme clássico e a crise que o mundo vive hoje
fossem duas pessoas tentando se comunicar cada qual de sua janela em prédios um
de frente pro outro. Estamos em um descampado diante de uma espécie de hospital
de campanha. É clássica a cena: Scarlett O’hara se aproxima em busca do médico para
fazer o parto do anjo caído na Terra que é Olívia de Havilland. O quadro conduz
tudo. Começa fechado no rosto preocupado da heroína e vai abrindo aos poucos,
de maneira que tanto ela como a platéia se dão conta lentamente da extensão dos
danos humanos causados pela guerra. Completamente aberta, a cena é um território
de corpos em agonia espalhados por um vasto chão. Alguém falou em cadáveres aguardando
sepultamento na Itália? Ou lembrou daqueles comboios de caminhões militares entulhados
de caixões que viu no Jornal Nacional? Dentro do hospital, mais um diálogo tão
curto quanto marcante – e que poderia ser dito hoje nos lugares da Espanha onde
o atendimento médico não dá conta de socorrer a todos, como já começa a
acontecer entre nós em Manaus. Scarlet pede ajuda ao médico para o parto e ele responde
dizendo para ela ir atrás de uma mulher que dê conta, porque ali já está
ocupado com muita gente morrendo. Quem disse que pegar um filminho antigo pra
ver é garantia de esquecimento momentâneo do coronavírus lá fora?
7- Ainda tem a cena da lista de mortos, disputada por centenas de mãos certamente repletas de micróbios naqueles tempos em que a higiene era a última coisa com que se preocupar quando famílias perdiam pais e filhos nos campos de batalha e a comida em casa corria sempre o risco de acabar, quando não de ser saqueada. Não há como deixar de relacionar as listas dessas cenas com as já célebres curvas de casos e demais estatísticas sobre contaminados, casos suspeitos de Covid-19 e mortos pura e simplesmente.
7- Ainda tem a cena da lista de mortos, disputada por centenas de mãos certamente repletas de micróbios naqueles tempos em que a higiene era a última coisa com que se preocupar quando famílias perdiam pais e filhos nos campos de batalha e a comida em casa corria sempre o risco de acabar, quando não de ser saqueada. Não há como deixar de relacionar as listas dessas cenas com as já célebres curvas de casos e demais estatísticas sobre contaminados, casos suspeitos de Covid-19 e mortos pura e simplesmente.
8-Tem mais, mas a lista está ficando além do planejado e o
objetivo do post é mais flagrar a curiosidade do que baixar a guarda do leitor
por acaso mais influenciável a sinais ou qualquer coisa do tipo. Pra encerrar,
vale registrar que, nesta epopéia toda, a curva (olha ela aí de novo, mas agora
é outra) dramática da personagem Scarlett O’hara de alguma maneira tangencia a
nossa aqui fora neste momento e lugar. Ela sai de uma zona de conforto absoluto,
esnobando pretendentes e torrando supérfluos na sua plantation sulista
sem necessidades primárias, para um quadro de falta de tudo, até comida – daí a
célebre cena do torrão de barro erguido ao alto com a promessa de nunca mais
passar fome. Aquilo somos nós, gente, a humanidade atual que até ontem estava
atulhada de desnecessidades (permitam o neologismo) e desperdícios, arrotando
uma soberba que alija quem não tem dinheiro ou condições dignas de vida, incinerando
uma natureza com a qual há tempos não nos sentimos verdadeiramente conectados. “E
o vento levou” é um épico de fundo histórico que trata da capacidade que o ser
humano tem de se reconstruir. Scarlet O’hara se refaz inúmeras vezes ao longo
do filme, nem sempre da forma mais ética – mas se refaz, busca, tateia e acha
algum caminho. Neste percurso dramático, aprende algumas coisas e teima em não
assimilar outras, construindo com essa desigualdade o seu destino final (embora
termine fazendo uma nova promessa na famosa frase que resume o filme). Sim, a frase
referida no parênteses nos cabe bem agora, se soubermos aprender a lição
inteira e não somente pela metade como fez a personagem. “Amanhã será um outro
dia” é a sentença precisa para suceder a outra frase dita por outra personagem,
Ashley, o queridinho de O’hara. “É o fim do nosso mundo, Scarlett”, explica ele
para a ainda e sempre teimosa protagonista. Tente assistir a “E o vento levou”
sem sentir a sugestão invisível no ar como um novo vírus letal que lhe diz o
quanto as duas coisas conversam.
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