sábado, 11 de abril de 2020

UM CLÁSSICO NA PANDEMIA

Cecília e eu acabamos de assistir (ela, pela primeira vez) a “E o vento levou”. DVD  no leitor, sofá em posição confortável, olhos e ouvidos atentos e prontos pra descolar um pouco – e só terapeuticamente - da realidade em volta e... alto lá. Que o velho filme se põe a conversar, do seu jeito, com a pandemia aqui fora e seus efeitos. Duvida? Confira na lista a seguir.

1-Scarlett O’hara é seguramente a primeira negacionista célebre do cinema. No início do filme, cercada por pretendente aduladores, fútil e caprichosa como certa pessoa dos meios políticos atuais, ela graceja quando os rapazes lhe falam  da possibilidade de guerra. Não vai ter guerra coisa nenhuma e se insistirem, eu deixo vocês falando sozinhos... Como se sabe, o pano de fundo do filme é a Guerra da Secessão americana que estourou duas sequências à frente desta no filme. Alguma semelhança com a gripezinha?

2-Rhett Buttler mostra o quanto os papéis sociais, mesmo os mais estabelecidos, podem mudar quando um evento de proporções trágicas ameaça grandes comunidades. No início do filme é visto como  pouco mais do que um pária, contrabandista que se vale de oportunidades fáceis para encher os bolsos. Quando a pandemia – ops, a guerra – explode, consegue levar mercadorias para Atlanta furando bloqueios militares dos yanques e, boom, torna-se um benquisto cidadão de bem admirado por todos. Quem será que vai mudar de papel social ao fim deste isolamento e seus efeitos?

3-Grande eventos traumáticos mudam padrões sociais. O que até ontem jamais seria aceito, mesmo em termos de hábitos e rituais cotidianos, passa a ser suportado agora, para um segundo depois ser admitido sem reservas, e mais uns meses após ser visto até como algo desejável. Numa cena de baile, em meio aos rumores da guerra, faz-se um leilão das garotas de família com quem os cavalheiros queiram dançar. Um diálogo entre velhinhas vai do espanto à justificativa em três breves falas (o roteirista é fera em concisão). Mas não fica nisso. O sempre ousado Rhett Buttler resolve quebrar a banca e oferecer 150 pratas em ouro puro pra tirar uma viúva para dançar. Inimaginável. Pois a proposta é aceita – especialmente pela viúva, a espevitada negacionista Scarlett – e segue o baile. De que pudores nos livraremos no futuro imediato, alguém arrisca? E quais serão os novos hábitos, além do majado teletrabalho?

4-Justamente por causa da impaciência de Scarlett por aquela dança, Rhett tira sarro do seu fake luto, decorrente do igualmente fake casamento. Os fakes estão por aí contaminando tudo há tanto tempo, por que a gente não  notava? Esse pessoal do gabinete do ódio não descobriu a roda, apenas a adaptou às tristes recentes circunstâncias brazucas.

5-Previsões apascentadoras para o conforto da platéia. Pois o proprio Rhett Buttler as comete quando gira feito mosca de padaria em torno do mel de Scarlett O’hara. Tasca-lhe numa cena ainda inicial a previsão de que a guerra civil estaria prestes a acabar, dependendo apenas de uma reles batalha. Estrategista, logo o cara se corrige e trata de transformar o evento em papel moeda, mas antes ele também teve seu momento “gripezinha”, numa das raras concordâncias com a megera desejada. A guerra estava só começando e as mais de duas horas de filme à frente seriam um mostruários de horrores, como bem  serve de exemplo a cena dos socorro aos feridos.

6-Falando nela, é outro momento que conversa aos gritos com a realidade atual, como se o filme clássico e a crise que o mundo vive hoje fossem duas pessoas tentando se comunicar cada qual de sua janela em prédios um de frente pro outro. Estamos em um descampado diante de uma espécie de hospital de campanha. É clássica a cena: Scarlett O’hara se aproxima em busca do médico para fazer o parto do anjo caído na Terra que é Olívia de Havilland. O quadro conduz tudo. Começa fechado no rosto preocupado da heroína e vai abrindo aos poucos, de maneira que tanto ela como a platéia se dão conta lentamente da extensão dos danos humanos causados pela guerra. Completamente aberta, a cena é um território de corpos em agonia espalhados por um vasto chão. Alguém falou em cadáveres aguardando sepultamento na Itália? Ou lembrou daqueles comboios de caminhões militares entulhados de caixões que viu no Jornal Nacional? Dentro do hospital, mais um diálogo tão curto quanto marcante – e que poderia ser dito hoje nos lugares da Espanha onde o atendimento médico não dá conta de socorrer a todos, como já começa a acontecer entre nós em Manaus. Scarlet pede ajuda ao médico para o parto e ele responde dizendo para ela ir atrás de uma mulher que dê conta, porque ali já está ocupado com muita gente morrendo. Quem disse que pegar um filminho antigo pra ver é garantia de esquecimento momentâneo do coronavírus lá fora?







7- Ainda tem a cena da lista de mortos, disputada por centenas de mãos certamente repletas de micróbios naqueles tempos em que a higiene era a última coisa com que se preocupar quando famílias perdiam pais e filhos nos campos de batalha e a comida em casa corria sempre o risco de acabar, quando não de ser saqueada. Não há como deixar de relacionar as listas dessas cenas com as já célebres curvas de casos e demais estatísticas sobre contaminados, casos suspeitos de Covid-19 e mortos pura e simplesmente.

8-Tem mais, mas a lista está ficando além do planejado e o objetivo do post é mais flagrar a curiosidade do que baixar a guarda do leitor por acaso mais influenciável a sinais ou qualquer coisa do tipo. Pra encerrar, vale registrar que, nesta epopéia toda, a curva (olha ela aí de novo, mas agora é outra) dramática da personagem Scarlett O’hara de alguma maneira tangencia a nossa aqui fora neste momento e lugar. Ela sai de uma zona de conforto absoluto, esnobando pretendentes e torrando supérfluos na sua plantation sulista sem necessidades primárias, para um quadro de falta de tudo, até comida – daí a célebre cena do torrão de barro erguido ao alto com a promessa de nunca mais passar fome. Aquilo somos nós, gente, a humanidade atual que até ontem estava atulhada de desnecessidades (permitam o neologismo) e desperdícios, arrotando uma soberba que alija quem não tem dinheiro ou condições dignas de vida, incinerando uma natureza com a qual há tempos não nos sentimos verdadeiramente conectados. “E o vento levou” é um épico de fundo histórico que trata da capacidade que o ser humano tem de se reconstruir. Scarlet O’hara se refaz inúmeras vezes ao longo do filme, nem sempre da forma mais ética – mas se refaz, busca, tateia e acha algum caminho. Neste percurso dramático, aprende algumas coisas e teima em não assimilar outras, construindo com essa desigualdade o seu destino final (embora termine fazendo uma nova promessa na famosa frase que resume o filme). Sim, a frase referida no parênteses nos cabe bem agora, se soubermos aprender a lição inteira e não somente pela metade como fez a personagem. “Amanhã será um outro dia” é a sentença precisa para suceder a outra frase dita por outra personagem, Ashley, o queridinho de O’hara. “É o fim do nosso mundo, Scarlett”, explica ele para a ainda e sempre teimosa protagonista. Tente assistir a “E o vento levou” sem sentir a sugestão invisível no ar como um novo vírus letal que lhe diz o quanto as duas coisas conversam.

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