quarta-feira, 8 de abril de 2020

O VÍRUS, SEGUNDO G.



O coronavírus mete medo, esvazia metrópoles, põe de joelho líderes mundiais apressadinhos, transforma seres comuns em super-homens de tanto que eles aparecem na tevê, causa revolta em subseres humanos mimados com as facilidades de um tempo astucioso, muda hábitos embutindo a promessa de nos fazer melhores nem que seja um tantinho assim, enfim, enfim, faz e acontece sem nem precisar ser visível ou tátil – é como uma intuição, uma interrogação atrás da orelha, um átomo impossível de ser explodido no ar, na matéria, nos organismos.

O Brasil é um país, enorme, implacavelmente visível, de uma extensão impossível de ser totalmente percorrida por gente que nele nasceu e habita por 80, cem anos, agigantado, uma mancha ampla se espalhando nos mapas geográficos da Terra inteira – é até mais tangível do que gostaríamos, na medida em que aqui e ali dá vontade de esquecer que estamos dentro dele, totalmente dominados.

A instabilidade não é, literalmente, nem um vírus e muito menos um país, mas é, sim, as duas coisas – e ambas temos sido há 500 e tantos anos. É o nosso vírus mais endêmico, nossa doença mais teimosa, nosso traço mais distinto. O vírus da instabilidade contém tudo o que fomos e somos, embala nossa história, desenha nosso perfil, resume nossa tão fugidia quanto mitificada identidade nacional. Nós, tente não ficar chocado, somos como um vírus inquieto e mutante que no entanto não consegue sair do lugar, tamanha a nossa instabilidade atávica e crônica. E se você acha que estou exagerando aproveite que está trancado em casa – assim esperamos – e veja, ou como foi o meu caso,  reveja, o grande “Terra em transe”, o filme síntese da filmografia do baiano Glauber, aquele dionisíaco desfile das nossas fraquezas estandartizadas para todo o mundo ver e nós mesmos se estivermos dispostos, atentos e desprevenidos.

Assistir a “Terra em transe” num momento como este é bastante propício, não só pela série de eventos políticos que tanto nos tem diminuído ainda mais nos últimos anos, numa sucessão que dificilmente poderíamos acreditar duas décadas atrás. Com os reflexos locais da crise mundial do coronavírus, a contemplação em tela caseira das crises sobre crises com que Glauber Rocha compõe sua sinfonia cinematográfica de uma nação de brincadeirinha chamada El Dorado só ganha, cresce e se amplifica em êxtase e anticelebração. Um filme normal, em cenários habituais com personagens bem delineadinhos e cenas convencionais jamais conseguiria espelhar o que o Brasil foi e continua sendo – ao contrário do que chegamos a pensar, numa ilusão civilizatória tipo 3D só dez minutos e três governos atrás.



Era preciso um filme em que cada personagem fosse assim como uma flâmula rubra se entortando em dobras escandalosas ao vento do Aterro do Flamengo ou no alto do Morro do Careca para dar a dimensão exata de quem somos, assim como aqueles a quem nos submetemos ou aqueles outros a quem endeusamos e entregamos tudo, tudo, tudo. Uma cena de um impasse político com campanha de desestabilização, risco de renúncia e ameaça de resistência com armas não poderia, para ficar à altura dos dramas brasileiros, ser filmada assim num set que reproduz um gabinete comum, de secretário, prefeito, governador, deputado, senador ou presidente. Não: Glauber pega seu magote de personagens emblemáticos que representam cada um um naco maior de brasileiros – o empresário, o poeta, o político, o aproveitador, o oportunista, o povo cego, espoliado e também Jeca total – e os coloca num pátio aberto para as matas de uma encosta carioca. Neste palco amplo, aberto, suspenso como que sobre a história do Brasil inteira coloca tais personagens para interagir nesta ciranda enlouquecida por poder, mesquinharia e falta de rumos que tem sido o país em tantos e tão duradouros momentos – como agora, um ápice como outros que já tivemos.

Os balcões do Parque Lage, cartão postal do Rio de Janeiro, são um gabinete aberto das veias rasgadas a peixeira da vida brasileira. Ao longo do filme, solilóquios shakespereanos de indecisão, dúvida e fraqueza polvilham as ações – melhor seria dizer não-ações – do condutor do filme, o Paulo Martins dividido entre a política e a poesia, entre líderes com caminhos políticos diferentes, entre a empatia triste de Glauce Rocha e a efusividade em olhos verdes que é Danusa Leão. Neste empacado caminho, seguem ou param, avançam um pouco e tropeçam de novo o poeta e o país – quantas vezes já vimos esse filme de progressos curtos solapados por retrocessos permanentes no Brasil de fato, aqui fora da tela, seu reflexo vivo que só reforça os traços  aparentemente caóticos da construção glauberiana?

O vírus da instabilidade é a nossa doença de estimação que o coronavírus vem abraçar e beijar na noite da virada dos tempos. Se vamos melhorar depois dele, como se espera que aconteça mundo afora no freio de arrumação em que esta crise pode se transformar para quem  olha para ela com olhos de alguma esperança resiliente, os antecedentes não são os melhores. É o que nos gritam os panoramas do filme que, feito nos anos 60 parece novinho em folha e segue inventivo até quando usa a ser favor o descompasso entre imagem e som, numa época em que o áudio direto ainda era novidade ou luxo na indústria do cinema. A sonoridade de “Terra em transe” é um item à parte neste carnaval antropológico que emoldura nossas realidades fora de qualquer esquadro. Há sempre um barulho marcante ao fundo, instabilizando tudo, seja um tambor ou tiros de metralhadora, elementos tão importante quanto os crucifixos hipocritamente empunhados ou as bandeiras em rebelião de cores saturadas – e pouco importa que o filme seja em branco e preto, que nada mais colorido foi feito no país em cinema, nem mesmo quando atingimos o esperado padrão americano dos anos 90 em diante.



A câmera pendente, o enquadramento de risco, a luz estourada que tanto cega quanto esclarece, o interior de palácios que nos infla o falso orgulho e nos entrega decadentes e deslumbrados, o vasto mar em volta de uma terra teimosa e imutável, nossos vulcões que se não compõem a geografia explicita das matas queimam todo o nosso território por dentro, cozinhando ambições desmedidas, carbonizando possibilidades e espalhando a cinza sobre as novas camadas de matas que surgem, numa história aprisionadas em ciclos de Getúlios, Jânios, Jangos, Médicis, Lulas e Bolsonaros. Parece impossível escapar dessa troça permanente, este baile viciado, antifolia de derradeira festa que nunca é de fato a última e sempre se perpetua no tempo e no espaço, angariando novos organismos e novos infectados.

O coronavírus, esse que está aí fora e nos mantém presos aqui dentro, logo vai encontrar sua cura. Do Brasil de “Terra em transe” não podemos dizer o mesmo – apenas desejar o impossível.

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