O coronavírus mete medo, esvazia metrópoles, põe de joelho
líderes mundiais apressadinhos, transforma seres comuns em super-homens de
tanto que eles aparecem na tevê, causa revolta em subseres humanos mimados com
as facilidades de um tempo astucioso, muda hábitos embutindo a promessa de nos
fazer melhores nem que seja um tantinho assim, enfim, enfim, faz e acontece sem
nem precisar ser visível ou tátil – é como uma intuição, uma interrogação atrás
da orelha, um átomo impossível de ser explodido no ar, na matéria, nos
organismos.
O Brasil é um país, enorme, implacavelmente visível, de uma
extensão impossível de ser totalmente percorrida por gente que nele nasceu e habita
por 80, cem anos, agigantado, uma mancha ampla se espalhando nos mapas
geográficos da Terra inteira – é até mais tangível do que gostaríamos, na
medida em que aqui e ali dá vontade de esquecer que estamos dentro dele, totalmente
dominados.
A instabilidade não é, literalmente, nem um vírus e muito
menos um país, mas é, sim, as duas coisas – e ambas temos sido há 500 e tantos
anos. É o nosso vírus mais endêmico, nossa doença mais teimosa, nosso traço
mais distinto. O vírus da instabilidade contém tudo o que fomos e somos, embala
nossa história, desenha nosso perfil, resume nossa tão fugidia quanto
mitificada identidade nacional. Nós, tente não ficar chocado, somos como um
vírus inquieto e mutante que no entanto não consegue sair do lugar, tamanha a
nossa instabilidade atávica e crônica. E se você acha que estou exagerando
aproveite que está trancado em casa – assim esperamos – e veja, ou como foi o
meu caso, reveja, o grande “Terra em
transe”, o filme síntese da filmografia do baiano Glauber, aquele dionisíaco
desfile das nossas fraquezas estandartizadas para todo o mundo ver e nós mesmos
se estivermos dispostos, atentos e desprevenidos.
Assistir a “Terra em transe” num momento como este é bastante
propício, não só pela série de eventos políticos que tanto nos tem diminuído
ainda mais nos últimos anos, numa sucessão que dificilmente poderíamos
acreditar duas décadas atrás. Com os reflexos locais da crise mundial do coronavírus,
a contemplação em tela caseira das crises sobre crises com que Glauber Rocha compõe
sua sinfonia cinematográfica de uma nação de brincadeirinha chamada El Dorado só
ganha, cresce e se amplifica em êxtase e anticelebração. Um filme normal, em
cenários habituais com personagens bem delineadinhos e cenas convencionais
jamais conseguiria espelhar o que o Brasil foi e continua sendo – ao contrário
do que chegamos a pensar, numa ilusão civilizatória tipo 3D só dez minutos e três
governos atrás.
Era preciso um filme em que cada personagem fosse assim como
uma flâmula rubra se entortando em dobras escandalosas ao vento do Aterro do
Flamengo ou no alto do Morro do Careca para dar a dimensão exata de quem somos,
assim como aqueles a quem nos submetemos ou aqueles outros a quem endeusamos e
entregamos tudo, tudo, tudo. Uma cena de um impasse político com campanha de
desestabilização, risco de renúncia e ameaça de resistência com armas não
poderia, para ficar à altura dos dramas brasileiros, ser filmada assim num set
que reproduz um gabinete comum, de secretário, prefeito, governador, deputado,
senador ou presidente. Não: Glauber pega seu magote de personagens emblemáticos
que representam cada um um naco maior de brasileiros – o empresário, o poeta, o
político, o aproveitador, o oportunista, o povo cego, espoliado e também Jeca
total – e os coloca num pátio aberto para as matas de uma encosta carioca. Neste
palco amplo, aberto, suspenso como que sobre a história do Brasil inteira
coloca tais personagens para interagir nesta ciranda enlouquecida por poder,
mesquinharia e falta de rumos que tem sido o país em tantos e tão duradouros
momentos – como agora, um ápice como outros que já tivemos.
Os balcões do Parque Lage, cartão postal do Rio de Janeiro,
são um gabinete aberto das veias rasgadas a peixeira da vida brasileira. Ao longo
do filme, solilóquios shakespereanos de indecisão, dúvida e fraqueza polvilham
as ações – melhor seria dizer não-ações – do condutor do filme, o Paulo Martins
dividido entre a política e a poesia, entre líderes com caminhos políticos
diferentes, entre a empatia triste de Glauce Rocha e a efusividade em olhos verdes
que é Danusa Leão. Neste empacado caminho, seguem ou param, avançam um pouco e tropeçam
de novo o poeta e o país – quantas vezes já vimos esse filme de progressos
curtos solapados por retrocessos permanentes no Brasil de fato, aqui fora da
tela, seu reflexo vivo que só reforça os traços aparentemente caóticos da construção
glauberiana?
O vírus da instabilidade é a nossa doença de estimação que o
coronavírus vem abraçar e beijar na noite da virada dos tempos. Se vamos melhorar
depois dele, como se espera que aconteça mundo afora no freio de arrumação em que
esta crise pode se transformar para quem
olha para ela com olhos de alguma esperança resiliente, os antecedentes
não são os melhores. É o que nos gritam os panoramas do filme que, feito nos anos 60 parece
novinho em folha e segue inventivo até quando usa a ser favor o descompasso
entre imagem e som, numa época em que o áudio direto ainda era novidade ou
luxo na indústria do cinema. A sonoridade de “Terra em transe” é um item à
parte neste carnaval antropológico que emoldura nossas realidades fora de qualquer
esquadro. Há sempre um barulho marcante ao fundo, instabilizando tudo, seja um
tambor ou tiros de metralhadora, elementos tão importante quanto os crucifixos
hipocritamente empunhados ou as bandeiras em rebelião de cores saturadas – e pouco
importa que o filme seja em branco e preto, que nada mais colorido foi feito no
país em cinema, nem mesmo quando atingimos o esperado padrão americano dos anos
90 em diante.
A câmera pendente, o enquadramento de risco, a luz estourada
que tanto cega quanto esclarece, o interior de palácios que nos infla o falso
orgulho e nos entrega decadentes e deslumbrados, o vasto mar em volta de uma
terra teimosa e imutável, nossos vulcões que se não compõem a geografia
explicita das matas queimam todo o nosso território por dentro, cozinhando ambições
desmedidas, carbonizando possibilidades e espalhando a cinza sobre as novas
camadas de matas que surgem, numa história aprisionadas em ciclos de Getúlios, Jânios,
Jangos, Médicis, Lulas e Bolsonaros. Parece impossível escapar dessa troça
permanente, este baile viciado, antifolia de derradeira festa que nunca é de
fato a última e sempre se perpetua no tempo e no espaço, angariando novos organismos
e novos infectados.
O coronavírus, esse que está aí fora e nos mantém presos
aqui dentro, logo vai encontrar sua cura. Do Brasil de “Terra em transe” não
podemos dizer o mesmo – apenas desejar o impossível.
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