O título excelente, já dramaticamente conclusivo, não
poderia antecipar melhor o que viria pela frente, especialmente em um livro
voltado em reposicionar o passado. “De repente a vida acaba” poderia ser o epitáfio
dos dias presentes, mas por uma dessas ironias que cercam tantas obras de arte
ele na verdade remete ao estado de espírito urbano, jovem-adulto, ligeiramente
acadêmico e totalmente pop, digamos assim, da década de 80.
Pelo título também se deduz tudo o mais básico, já que
estamos obviamente falando do a esta altura bem conhecido romance lançado no
final do ano passado por Clotilde Tavares. Pois é, de repente a vida acaba,
como atualmente nos convencemos dia e noite sem precisar nem sequer sair às ruas,
ou por isso mesmo – e já peço perdão pelo humor involuntário em hora tão delicada.
Mas uma poção que seja de humor havemos de preservar, com o cuidado de não jogar
mais ácido nas feridas dos que a doença derrubou, levou ou de seus amigos e
parentes.
De repente a vida acaba é uma daquelas constatações de senso
comum que, quando postas assim a seco na capa de um mais do que digno romance,
repentinamente servem de referência para se avaliar tudo – do motivo pra levantar
da cama todas as manhãs, ou todas as tardes para os boêmios de que já-já nos
ocuparemos de que o livro se vale para descortinar a cultura de uma época em tantos
momentos saudosa, até o medo do contágio por um novo, corona ou não, vírus
letal.
Clotilde Tavares já nos deu crônicas incríveis, poemas
sensíveis, livros brilhantes sobre assuntos tão diversos quanto a vida em
escolas de freiras no cariri paraibano até as práticas holísticas aplicadas ao
cotidiano. Já nos divertiu com performances teatrais que teimam em não deixar o
teto da boa memória, como a tresloucada personagem da peça “Papai pirou nas
ondas do rádio” que tivemos o prazer de ver no palco do Teatro Alberto Maranhão,
em Natal. Já deu conselhos na televisão para quem anda com o astral meio apagadinho
(e nisso, eu levo um pouco da culpa), já circulou de jornais a jornais do RN e
da PB com suas tão simples quanto afiadas análises dos nossos cotidianos, já
deu aulas na UFRN em dois departamentos completamente distintos, já escreveu e montou seus textos teatrais.
O que mais faltava, senão um romance digno do nome, que não
fosse um corriqueira construção de enredos e personagens, mas sim – e sem proclamar
desnecessariamente essa ambição – um apurado e sensível painel de um tempo e
lugar que tantos de nós, na faixa dos 40 anos pra frente, ou viveram
diretamente, ou tomaram contato por tabela?
“De repente a vida acaba” tem, sim, claro, personagens bem
construídos, diálogos exatos, situações inesperadas, conflitos estimulantes e
tem até um desfecho com atmosfera de thriller, daqueles em que o leitor não
consegue largar o livro e come palavras em busca de saber como aquilo tudo vai
acabar. Mas o que o romance tem de mais notável é a recuperação de uma época, o
registro magnífico do que eram as noites e noitadas de Natal a partir
especialmente da segunda metade dos anos 80, num espelho óbvio do que se dava
em outras capitais no mesmo período, numa configuração que de fato nunca mais
se repetiria daquela forma.
Do Bar do Buraco ao Chernobyl, de uma Ponta Negra dark até
uma Redinha em neblina e sombras, está tudo ali, nas aventuras e desventuras sem limites de
uma geração que vivia tudo em intensidade máxima, sem saber do futuro distópico
de um coronavírus e ainda prestes a ser informada sobre outra ameaça em aproximação,
o HIV precoroniano cujos grupos de
riscos soavam muito mais convenientes a quem não fazia parte da tripulação
daquele alegre barco a navegar madrugadas infindas.
No livro temos duas personagens que sustentam este Guernica
de bares, noites, solidões, encontros e desencontros. Uma vive plenamente as
explosões de tal período, a adorável Lady Night de quem o leitor sentirá
severas saudades assim que encerrar a leitura afoito pra saber como tudo se
resolveu – ou se concluiu, se é possível usar estes termos. Aline, este é seu
nome, é uma referência na narrativa inteira que acessamos por meio dos
originais do livro que deixou escrito e que caiu nas mãos da personagem viva –
embora algo morta – que lê seus relatos e faz com eles a reconstrução daquele
período. Maria Eulina é a outra face da moeda onde foi fundido o perfil de
Aline, e de tal oposição Clotilde tira o máximo proveito, para deleite nosso
aqui do outro lado das páginas. Com essas duas figuras e os figurantes com quem
elas interagem no passado recente de Lady Nigh e no presente sem sentido de
Maria Eulina é erguida a estrutura do livro e modelada a poesia de um tempo.
Muitos viveram aquele período e o retrataram à sua maneira,
em Natal e alhures. Lembro da “Crônica da Banalidade” do querido amigo Carlão
de Souza, como lembro da poesia de Ana
Cristina César, pra ficar em dois exemplos e não atazanar a pobre memória em
decomposição. Mas o que faz de “De repende a vida acaba” algo tão especial é,
para além de uma hoje muito aclamada voz literária feminina que décadas atras
não era tão comum e fazia falta, é a entrada neste universo a partir de situações
bem pouco idealizadas. Tudo é bem realista e de certa maneira comum nas situações
de Clotilde engendra. A mente de Maria Eulina é absolutamente condizente com a
pobreza dos tempos atuais, não há a busca por uma posição que a coloque na
condição de personagem-mito. Nem mesmo com Aline, que se faz cercar o tempo
todo de uma encenação que modifica todos os lugares onde chega, há esse tipo de
mistificação. As duas são comuns, cada uma à sua maneira – e é a partir de pessoas comuns, que trabalham burocraticamente
na secretaria de alguma coisa sem evolar qualquer angústia kafquiana que este
painel de uma vida adulta, emancipada, boêmia e entregue artisticamente à magia
das possibilidades é delineado nas páginas do romance de Clotilde.
Quem lembra da autora circulando nos anos 80 no calçadão da
avenida João Pessoa em Natal, com aquele seu riso impiedoso que tanto congrega
quanto provoca, durante um evento cultural de rua qualquer aproveitando pra
divulgar seu livro de poesias “Bilhetes de suicida” há de mesclar imediatamente
sua imagem com a da Lady Nigh do livro. Mas como felizmente somos muito mais mútiplos
do que imagina a míope classificação social, ali também há lugar para a ranzinice
semi-idosa de uma Maria Eulina. As tintas autobiográfica sempre serão uma das
matérias primas da boa ficçção e qualquer especulação é mera fuga do que
realmente interessa para quem de fato não está entendendo nada. Esta lembrança
está aqui dada à dificuldade que tenho em sugestionar o leitor quanto ao que
foram aqueles anos, aquelas noites e aqueles grandes encontros numa Natal de
fato muito mais disfarçadamente tranquila. Talvez essa imagem da poeta no calçadão
diga alguma coisa pra quem me acompanhou até aqui e está incomodado se
perguntando, mas de que este rapaz está mesmo falando?
Clotilde Tavares não tem este problema e “De repente a vida
acaba” é a prova disso. Uma viagem ao espírito esquecido de uma época que ainda
tem tanto a nos oferecer hoje e especialmente amanhã, quando o coronavírus passar.
Quiçá muitos leiam seu livro e encontrem, para além do drama que ao fim e ao
cabo purifica, a inspiração que de alguma maneira transforma. E eu não estou
falando de um livro de auto-ajuda.
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