terça-feira, 7 de abril de 2020

DE REPENTE, NA MESMA ESQUINA




O título excelente, já dramaticamente conclusivo, não poderia antecipar melhor o que viria pela frente, especialmente em um livro voltado em reposicionar o passado. “De repente a vida acaba” poderia ser o epitáfio dos dias presentes, mas por uma dessas ironias que cercam tantas obras de arte ele na verdade remete ao estado de espírito urbano, jovem-adulto, ligeiramente acadêmico e totalmente pop, digamos assim, da década de 80.

Pelo título também se deduz tudo o mais básico, já que estamos obviamente falando do a esta altura bem conhecido romance lançado no final do ano passado por Clotilde Tavares. Pois é, de repente a vida acaba, como atualmente nos convencemos dia e noite sem precisar nem sequer sair às ruas, ou por isso mesmo – e já peço perdão pelo humor involuntário em hora tão delicada. Mas uma poção que seja de humor havemos de preservar, com o cuidado de não jogar mais ácido nas feridas dos que a doença derrubou, levou ou de seus amigos e parentes.

De repente a vida acaba é uma daquelas constatações de senso comum que, quando postas assim a seco na capa de um mais do que digno romance, repentinamente servem de referência para se avaliar tudo – do motivo pra levantar da cama todas as manhãs, ou todas as tardes para os boêmios de que já-já nos ocuparemos de que o livro se vale para descortinar a cultura de uma época em tantos momentos saudosa, até o medo do contágio por um novo, corona ou não, vírus letal.

Clotilde Tavares já nos deu crônicas incríveis, poemas sensíveis, livros brilhantes sobre assuntos tão diversos quanto a vida em escolas de freiras no cariri paraibano até as práticas holísticas aplicadas ao cotidiano. Já nos divertiu com performances teatrais que teimam em não deixar o teto da boa memória, como a tresloucada personagem da peça “Papai pirou nas ondas do rádio” que tivemos o prazer de ver no palco do Teatro Alberto Maranhão, em Natal. Já deu conselhos na televisão para quem anda com o astral meio apagadinho (e nisso, eu levo um pouco da culpa), já circulou de jornais a jornais do RN e da PB com suas tão simples quanto afiadas análises dos nossos cotidianos, já deu aulas na UFRN em dois departamentos completamente distintos,  já escreveu e montou seus textos teatrais.

O que mais faltava, senão um romance digno do nome, que não fosse um corriqueira construção de enredos e personagens, mas sim – e sem proclamar desnecessariamente essa ambição – um apurado e sensível painel de um tempo e lugar que tantos de nós, na faixa dos 40 anos pra frente, ou viveram diretamente, ou tomaram contato por tabela?

“De repente a vida acaba” tem, sim, claro, personagens bem construídos, diálogos exatos, situações inesperadas, conflitos estimulantes e tem até um desfecho com atmosfera de thriller, daqueles em que o leitor não consegue largar o livro e come palavras em busca de saber como aquilo tudo vai acabar. Mas o que o romance tem de mais notável é a recuperação de uma época, o registro magnífico do que eram as noites e noitadas de Natal a partir especialmente da segunda metade dos anos 80, num espelho óbvio do que se dava em outras capitais no mesmo período, numa configuração que de fato nunca mais se repetiria daquela forma.

Do Bar do Buraco ao Chernobyl, de uma Ponta Negra dark até uma Redinha em neblina e sombras, está tudo ali, nas aventuras e desventuras sem limites de uma geração que vivia tudo em intensidade máxima, sem saber do futuro distópico de um coronavírus e ainda prestes a ser informada sobre outra ameaça em aproximação,  o HIV precoroniano cujos grupos de riscos soavam muito mais convenientes a quem não fazia parte da tripulação daquele alegre barco a navegar madrugadas infindas.

No livro temos duas personagens que sustentam este Guernica de bares, noites, solidões, encontros e desencontros. Uma vive plenamente as explosões de tal período, a adorável Lady Night de quem o leitor sentirá severas saudades assim que encerrar a leitura afoito pra saber como tudo se resolveu – ou se concluiu, se é possível usar estes termos. Aline, este é seu nome, é uma referência na narrativa inteira que acessamos por meio dos originais do livro que deixou escrito e que caiu nas mãos da personagem viva – embora algo morta – que lê seus relatos e faz com eles a reconstrução daquele período. Maria Eulina é a outra face da moeda onde foi fundido o perfil de Aline, e de tal oposição Clotilde tira o máximo proveito, para deleite nosso aqui do outro lado das páginas. Com essas duas figuras e os figurantes com quem elas interagem no passado recente de Lady Nigh e no presente sem sentido de Maria Eulina é erguida a estrutura do livro e modelada a poesia de um tempo.



   
Muitos viveram aquele período e o retrataram à sua maneira, em Natal e alhures. Lembro da “Crônica da Banalidade” do querido amigo Carlão de Souza, como  lembro da poesia de Ana Cristina César, pra ficar em dois exemplos e não atazanar a pobre memória em decomposição. Mas o que faz de “De repende a vida acaba” algo tão especial é, para além de uma hoje muito aclamada voz literária feminina que décadas atras não era tão comum e fazia falta, é a entrada neste universo a partir de situações bem pouco idealizadas. Tudo é bem realista e de certa maneira comum nas situações de Clotilde engendra. A mente de Maria Eulina é absolutamente condizente com a pobreza dos tempos atuais, não há a busca por uma posição que a coloque na condição de personagem-mito. Nem mesmo com Aline, que se faz cercar o tempo todo de uma encenação que modifica todos os lugares onde chega, há esse tipo de mistificação. As duas são comuns, cada uma à sua maneira – e  é a partir de pessoas comuns, que trabalham burocraticamente na secretaria de alguma coisa sem evolar qualquer angústia kafquiana que este painel de uma vida adulta, emancipada, boêmia e entregue artisticamente à magia das possibilidades é delineado nas páginas do romance de Clotilde.

Quem lembra da autora circulando nos anos 80 no calçadão da avenida João Pessoa em Natal, com aquele seu riso impiedoso que tanto congrega quanto provoca, durante um evento cultural de rua qualquer aproveitando pra divulgar seu livro de poesias “Bilhetes de suicida” há de mesclar imediatamente sua imagem com a da Lady Nigh do livro. Mas como felizmente somos muito mais mútiplos do que imagina a míope classificação social, ali também há lugar para a ranzinice semi-idosa de uma Maria Eulina. As tintas autobiográfica sempre serão uma das matérias primas da boa ficçção e qualquer especulação é mera fuga do que realmente interessa para quem de fato não está entendendo nada. Esta lembrança está aqui dada à dificuldade que tenho em sugestionar o leitor quanto ao que foram aqueles anos, aquelas noites e aqueles grandes encontros numa Natal de fato muito mais disfarçadamente tranquila. Talvez essa imagem da poeta no calçadão diga alguma coisa pra quem me acompanhou até aqui e está incomodado se perguntando, mas de que este rapaz está mesmo falando?

Clotilde Tavares não tem este problema e “De repente a vida acaba” é a prova disso. Uma viagem ao espírito esquecido de uma época que ainda tem tanto a nos oferecer hoje e especialmente amanhã, quando o coronavírus passar. Quiçá muitos leiam seu livro e encontrem, para além do drama que ao fim e ao cabo purifica, a inspiração que de alguma maneira transforma. E eu não estou falando de um livro de auto-ajuda.

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