segunda-feira, 13 de abril de 2020

CARLÃO E O TELETRABALHO



Essa onda de trabalho em casa me lembra a todo momento o amigo querido, Carlão de Souza. Uma de suas manias, ao conversar comigo e se queixar quando precisava cruzar a cidade de Neópolis até a Ribeira pra pegar no batente na velha Tribuna do Norte, era sonhar com o dia em que o mundo se rendesse ao... teletrabalho. Esta palavrinha mágica frequentava o vocabulário de Carlão tanto quanto rock, uísque, poesia, lirismo e mundo cão. Se todo mundo tem um vocabulário próprio em que certos termos se repetem formando um estilo verbal, eis um grupo delas que combinava com as falas do amigo querido.

Ele sonhava, mesmo, assim falando com o olhar no céu, nas nuvens ou nas tempestades, não importa. Que a humanidade já deveria ter descoberto o teletrabalho, que era um desperdício esses deslocamentos, que trabalhando em casa ele dava perfeitamente conta de escrever sua crônica e assinar lindamente como a Linda Baptista cujos textos saboreávamos. Que enquanto escrevia em casa ele poderia beber algo – que nem hoje faz minha colega Mariana Monteiro na Asa Sul aqui em Brasília, enquanto lá era Natal, ali por 1988, 89, os melhores anos da minha convivência com o amigo querido que nos deixou daqui a pouco faz um ano, vejam só.

O tempo passa, os chavões escritos não caem, mas novidades surgem – e eis o teletrabalho com que sonhava Carlão se impondo por força da necessidade e fazendo uma pequena revolução caseira na vida de quem desempenha vários tipos de trabalho intelectual. O que Carlão não sabia – ele ficava no limite do sonho, e como o sonho é enganoso, hein? – é que o teletrabalho divide espaço com o filho pre-adolescente que não escolhe hora pra pedir sua ajuda (imagino o amigo querido fazendo teletrabalho pra TN na casa de Neópolis e Alex, 10, 12 anos, pentelhando querendo saber sobre um mito grego de que tanto já gostava naqueles tempos), assim como com o almoço atrasado e louça por lavar. O amigo querido tinha, naquela época, a culinária nota mil de Jô e o machismo reinante pra não ter que se preocupar com o destino dos pratos, panelas e talheres após uma lauta refeição. Mas, hoje... sei não, amigo querido. Daí de onde você está dá pra ver que o teletrabalho não tem sido a única novidade – em boa hora, sustento apesar dos dedos murchos de relaxar na pia. 

Mas desconfio que o teletrabalho deixaria o amigo querido muito mais produtivo. Sem ter que digirir a Banheira – esse era o apelido do carrão velho que ele usava na época – pela Salgado Filho e Hermes da Fonseca adentro ouvindo Marisa Monte cantando Speak low, teria sim mais tempo para adiantar os livros que viria a escrever no futuro, num momento em que só tinha nesta lista o mitológico Crônica da Banalidade. Poderia ouvir mais Nei Lisboa cantando Junkie ou a trilha sonora do filme Cal enquanto batucava nas pretinhas. Reunir mais amigos para turbinar os assuntos que movimentariam o caderno de fim de semana do jornal e jogar conversa fora entre um parágrafo e outro sem se preocupar com deadlines e quejandos.

É isso, amigo querido – o panorama aqui embaixo não melhorou nada, nada. Nem dá pra fazer uma carta como aquela que Chico enviou para Boal e que quando se viu estava sendo cantarolada na boca de todo mundo com algum juízo e moderada dose que fosse de sensibilidade poética e política. A Marieta sempre estará mandando aquele abraço de Gil para os seus e essas novas geografias astrais nunca vão nos separar de fato. Daí de onde você está, gracejando sem maldade mas com empatia das nossas perdições terráqueas, faz um teletrabalho de outra natureza entre tecnô e pajelô pra ver se a gente, na próxima missiva, tem algo melhor para contar. Alô, alô, querido amigo, aqui quem fala é da Terra, que roda, roda e permanece a mesma. E mais não digo porque o teletrabalho, esse bicho tão calado quanto ansioso, me chama.

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