segunda-feira, 14 de maio de 2018

SINAL FECHADO



Não fique triste, amigo meu, mas a verdade é que tudo pode piorar. Não apenas o que está por vir, mas também o que já foi. Por esses dias, ficamos sabendo - belo momento pra esse tipo de revelação, mas quem pode escolher quando as verdades decidem sair desfilando nuas por aí? - que o general Geisel autorizou pessoalmente a continuação dos assassinatos de militantes que lutavam contra a ditadura durante os nossos anos de chumbo grosso - e que o adjetivo raspe da expressão o que ela possa ter de aceitável, pra não dizer (quem diria?) simpático. 

Antes de tomar posse no Palácio do Planalto ocupado por generais e de ser informado sobre as execuções, essas já passavam de 100 - e o novo general-presidente mandou seguir adiante. Detalhes aqui. A verdade é que, ao contrário do que sempre acreditamos, nunca houve propriamente uma "linha dura" como parte integrante dos grupos militares (e também civis, não convém esquecer) que mandaram e desmandaram no país durante a longa noite de 20 anos sem democracia formal. Tudo era "linha dura". 

O general Sylvio Frota não era a ponta de um radicalismo, não era um extremista no sistema que, quando passava do limite e limava do horizonte político um Manoel Fiel Filho ou um Vladimir Herzog, ganhava um puxão de orelha do velhinho bondoso Geisel, que deixou morrer o AI-5 na data marcada. Não, era tudo a mesma coisa - um amálgama de bordas imprecisas que decidia pela morte quanto julgava necessário. E assim se foram mais de 100 vidas. 

A revelação em papéis guardados em bibliotecas e bancos de dados norte-americanos gerou um noticiário que, de tão chocante, é capaz de furar até a sessão de notícias em que nos afundamos nos jamais previstos dias que correm. É triste porque funciona como um bumerangue ironicamente indesejado: sempre quisemos a verdade sobre a violência da ditadura brasileira, sempre foi importante contar o que aconteceu, expor, denunciar, levar às escolas, às novas gerações. Justamente para impedir o que vemos agora: legiões de novos ignorantes seguindo como pombinhos o defensor dessa violência. 

Mas agora, justo agora, soa pior: não parece fazer efeito para deter ou esclarecer os novos iludidos, que vivem numa bolha onde este tipo de informação nem entra - e, se entrar, é instantaneamente queimada pelo ácido da pós-verdade, como um foguete de papelão entrando na atmosfera da Terra. Já para os minimamente informados e conscientes dos elementos não só da física como da história, a revelação tem o poder de nos vedar mais um caminho, mais uma possível saída, ainda que de efeito apenas imaginário:  agora, nem adianta olhar para trás, se voltar para o passado, pois que o que imaginávamos ruim era mais terrível ainda. 

Assim que bati o olho na manchete da Folha de S. Paulo com essas revelações, lembrei imediatamente um mal estar que me dominava quando eu lia dois dos livros da série sobre a ditadura escrita por Elio Gaspari. O texto era ótimo, o arcabouço histórico estava ali, mas algo me incomodava - me fazia mesmo parar de ler de vez em quando. Pensava que era o fato de os livros terem sido construídos a partir dos cadernos do general Golbery, uma fonte que não tinha como turvar um pouco com algas de parcialidade o lago informativo escavado pelo jornalista. Mas isso não respondia totalmente minha pergunta, não disciplinava meu incômodo. Quando vi o noticiário sobre os documentos que mostram a autorização expressa de Geisel para a continuidade das execuções que atingiram sobretudo ex-guerrilheiros do Araguaia entendi imediatamente - mas com alguns anos de atraso - a razão daquele mal estar. Outro jornalista atento, Luis Costa Pinto, já disse aqui no Facebook que Gaspari vai ter que reavaliar o que escreveu. Vai ter um trabalhão. E com a soberba típica dos jornalistas, dificilmente o fará.

Mas o estrago está feito e um bolo de documentos amarelados mostrou que, longe da visão que vinha prevalecendo graças a monumentos consagrados como os  livros de Elio Gaspari e outras "contribuições" menos festejadas, agora sabemos que tudo era muito mais monolítico - e decidido com uma fria formalidade que nada tem a ver com o propagado espírito brasileiro. Ali, naquele triste momento, o Brasil era um gelado território de guerra sem ética ou limites. Muito mais germânico do que baiano. Um país de sinal fechado, olá, como vai, e agora, quem sabe?

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