terça-feira, 5 de maio de 2020

GUERRA ESTÁ NA MODA

Descobri agora que Guerra e Paz, o livro de Tolstói, virou moda neste período de quarentena. Tem matéria na FSP de hoje, com Fernanda Torres, com quem não simpatizo nem um bocadinho, contando sua experiência de ter lido o clássico. O curioso é que, assim como ela, comecei a ler Guerra e Paz em um contexto completamente solto do atual. Peguei pra ler em dezembro do ano passado, ao encontrar uma edição barata - quase de graça - no kindle. 1 real. Guerra e Paz a 1 real. Por que não? Lá me fui.
Até eu descobrir que aquilo era uma edição condensada e em tradução para o português de Portugal levou um tempo. Mas eu não queria encarar a tradução célebre agora no Brasil, publicada primeiro pela Coscac Naif, que fechou, e comprada e relançada pela Cia das Letras. Porque cheguei a pegar um exemplar na Biblioteca da Câmara, levei pra casa e quem acabou lendo (isso acontece frequentemente) foi Rejane Medeiros antes de mim. E reclamou dos trechos em francês. Mais tarde, nossa querida Ana Luiza Camara me contaria que passou pelo mesmo problema. Ambas largaram o livro.
Lembrei então de uma outra tradução, baratinha também, pela L&PM em livros que eles chamam "de bolso". Vá lá. 4 volumes.Só que meio difíceis de achar todos na mesma livraria. Comprei o volume 2, que correspondia ao trecho em que me achava no falso-português do kindle. Foi como uma revelação. Num instante consegui distinguir as famílias, os agrupamentos, os conflitos e principalmente as ideias - porque Guerra e Paz é como um filme feito em vários formatos. É como Oliver Stone naquele filme sobre uma dupla de malfeitores pop-modernosos cujo nome me escapa. Ou como no JFK pra ficar no mesmo cineasta. De uma cena pra outra ele muda a fotografia, o enquadramento, a granulação, o uso ou não de cor.
Assim é Guerra e Paz, ora é romanção descarado (daí Fernanda Torres dizer que parece uma novela das oito, e em grande parte está certa), ora é um ensaio sobre questões militares, daqui a pouco passa a ser um texto absolutamente questionador sobre a teoria da História (viu, Flavia Assaf, vai lá, se é que já não foi), daqui a pouco pega um caminho algo místico elaborando toda uma filosofia sobre transcendência e moralidade e por aí vai. Isso às vezes assim de um capítulo para o outro (o formato geral é bem fragmentado, de capítulos curtos num livro longo), sem preparar o leitor com transição alguma. E tem essa coragem a que a atriz também se refere de fazer de figuras histórias como Napoleão - talvez o principal personagem do livro - em figuras ficcionáveis com base no que Tolstói achava não só dele, mas do que pensavam sobre ele, erroneamente ainda segundo o autor.
Mas voltando à vaca fria, comecei a lei por essa curiosidade, contando que teria bastante tempo por causa das férias que estavam começando, e num período em que ninguém ouvia falar em coronavírus. Veio a pandemia e eu lá preso no livro (não totalmente porque quem conhece o Leitor Bagunçado sabe que ele é tão impaciente que lê vários ao mesmo tempo), misturando fanatismo por Napoleão com nossa mais que primitiva atração brazuca por Bolsonero, o abandono de Moscou com o cerco da pandemia, as dúvidas adolescentes de Natasha com a lembrança também remota do drama da Anna Karenina cujo primeiro volume eu havia lido décadas atras (e a quem preciso, agora, reencontrar).
Só agora lendo não apenas Guerra e Paz mas sobretudo o comentário final que a edição da L&PM traz entendi melhor todo aquele ensaio desesperado que Dostoievski compõe em Memórias do Subsolo, e que me solapou totalmente também anos atrás. Neste posfácio, Tolstói comenta que a literatura russa jamais vai ser ater aos formatos consagrados do romance europeu, diz que aquilo que escreveu não é só uma narrativa, também não é só uma dissertação e por aí vai. Eles já eram assim, eu é que não notava. Minha curiosidade pelos autores russos foi às esferas e só por isso não devo sentir tanta falta assim de todo dia após o café da manhã ler um pouquinho do Guerra e Paz, guardando o ouro pra mais tarde à noite, após o trabalho.
E numa hora inesperada Rejane veio me dizer que o livro se tornara um dos mais procurados nas livrarias que entregam volumes em casa, segundo uma reportagem que ela leu no Globo. Foguetões soem na noite das letras. Em meio a tanta escuridão, há uma velha forma de luz sendo renovada. É pra comemorar em meio às trevas.

P.S . Não adianta eu colocar o link pra matéria de hoje da FSP porque nem todo mundo terá acesso. Lamentavelmente.

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