Ao contrário do que se disse durante anos, não há mais mistério algum em torno do assassinato da menina Ana Lídia, que foi sequestrada de um colégio na Asa Norte na Brasília de 1973 e depois encontrada morta num terreno onde hoje fica a UnB. O caso é conhecido e está para a capital do país como o sumiço de Carlinhos para o Rio de Janeiro e o assassinato da menina Araceli para o Espírito Santo. O Brasil mais novo parece querer ignorar, e parte do Brasil mais velho faz questão de esquecer na marra, mas vivíamos sob uma ditadura militar onde crimes, sobretudo contra crianças indefesas, não combinavam com o mundo de desenvolvimento cor-de-rosa que os militares faziam questão de afirmar.
Essa história já foi contada mil vezes – nos jornais,
a cada vez que o crime faz “aniversário”, na série da TV Globo que relembrava
os mistérios policiais mais conhecidos do país, nos sites sensacionalistas e,
todo ano, no dia de finados, quando o túmulo de Ana Lídia é um dos mais
visitados no principal cemitério de Brasília. Mas essa história ainda não havia
sido contada da maneira como está sendo agora. Primeiro, troque os nomes dos
personagens por precaução jurídica – até porque, lembre-se, ainda há arquivos
secretos sob o caso que não podem ser abertos -, depois transforme o que poderia
ser um relato apenas documental em uma ficção construída de maneira a
esclarecer pontos que a investigação do crime, feita propositadamente de
maneira falha, não cobriu ou deixou de lado ou simplesmente ocultou. Por fim –
e aqui está o mais importante – abra a janela dessa narrativa o máximo que
conseguir, para que o pano de fundo do momento político e histórico do país se
torne um personagem tão forte quanto a própria Ana Lídia – digo, Ana Clara.
O jornalista Roberto Seabra fez tudo isso, tendo ainda
o cuidado de alterar ligeiramente o nome da vítima desse assassinato recoberto
de camadas de circunstâncias que tornam a investigação – ainda que falha, ou
justamente por isso – tão representativa daquele tempo e lugar quando o próprio
crime. O que nosso amigo Beto faz é, mais do que construir uma ficção para
preencher os espaços que faltavam (embora a essência do que houve seja até bem
conhedido), situar o caso Ana Lídia no
painel histórico tomando todo o cuidado para que as peças se encaixem com a
máxima proximidade do que se deu de fato. O grande mérito de “Silêncio na
cidade”, o livro de Roberto Seabra lançado no final do ano passado, é não
deixar que esse crime seja visto como um episódio específico e isolado – tudo nessa
história remete a algo bem maior, o que faz com que Beto, ainda que indiretamente, “decifre” os outros dois casos
similares já citados aqui, Carlinhos e Araceli.
Você termina a leitura ansiosa de “Silêncio na cidade”
entendendo que havia, naquele triste momento brasileiro, uma tendência
criminal, digamos assim, que associava o consumo de drogas com a impunidade de que
tanto se reclama hoje em dia, fermentado pela farra dos filhos de “autoridades”
e especialmente pela censura à imprensa. Hoje em dia, mesmo com a imprensa
padecendo de outros problemas não menos graves, uma série de crimes daquela
natureza logo seria associada, como acontece com o noticiário em ondas sobre o
assédio na indústria do cinema americano, por exemplo, ou com os casos de
bulling nas nossas escolas. Com isso, ao menos um leitura sociológica inicial
já seria feita dando oportunidade ao debate público, à revisão de leis ou a uma
postura diferente e mais rígida da sociedade diante dos fatos, contribuindo
para combater abertamente esse ou outro tipo de violência. Enfim, um caso tão
triste e violento seria um instrumento para o exercício da cidadania – palavra proibida
naqueles tempos.
Transparência, cobrança, mobilização foi exatamente o que
não houve em 1973 – e não poderia mesmo haver, como entende qualquer pessoa
razoavelmente informada sobre o Brasil daquela época. “Silêncio na cidade”, ao
reforçar no próprio título essa limitação, tem o mérito de colocar um tijolo a
mais no muro narrativo que desde então vem sendo erguido em torno do martírio
da menina brasiliense. É um livro que, a partir de um crime “popular”, exalta a
importância do exercício político onde menos se espera. Um legado involuntário
do Brasil de 1973 para o país dos dias que correm.
Tião, você fez um competente apanhado literário e sociológico sobre o livro e seu entorno histórico. Fico te devendo essa.
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