segunda-feira, 28 de maio de 2012

Verdade e Ficção


Romance-espionagem de Luiz Gutemberg pode até parecer livro de bolso, mas revela-se mais incisivo ao reconstituir o mundo dos generais-presidentes do que o painel documental de Élio Gaspari. E ainda vale por uma comissão da verdade informal.


O livro está fora de catálogo, mas a discussão está na ordem do dia. Agora que a Comissão da Verdade foi instalada e designada, toda vez que você ouvir um convertido de última hora dizer que é preciso também apurar os tais “crimes da esquerda”, pode muito bem lhe tacar na cabeça o romance de espionagem brazuca “O Jogo da Gata-Parida”, de Luiz Gutemberg, edição da Nórdica hoje só disponível em sebos, como o exemplar que encontrei no Sebinho de Brasília e tracei em velocidade bem maior do que a que o país levou para admitir a criação da Comissão da Verdade.

Mas qual o poder de fogo de um livro típico daqueles lançamentos da década de 80, quando jornalistas censurados durante anos finalmente botavam pra fora, como podiam, as histórias da violenta repressão política vivida pelo país até a noite anterior? O leitor pode achar que se trata de leitura datada, feita para dar vazão a um sentimento de época, coisa que o Brasil não leva mais que 15 anos para esquecer e tocar pra frente. Poderia ser, mas o diabo dos detalhes, aquele que mora onde menos se espera, trata de proporcionar uma outra leitura à ficção semidocumental que produziu Gutemberg, jornalista que habitou o vídeo dos telejornais da TV Bandeirantes durante anos, você lembra. Era o “Guti”, como gostava de abreviar Marília Gabriela.

O primeiro detalhe é uma ironia: o fato de uma ficção ter tanto a dizer sobre a página infeliz da nossa história. Sim, porque ao juntar as informações e o caldo de cultura do período da transição iniciado no governo Geisel até a indicação do general Figueiredo para sucedê-lo, Gutemberg até deu novos (codi)nomes aos personagens da já distante “abertura política”, mas o que está descrito na sua elaboração ficcional comporta, pela liberdade do gênero que aqui e ali beira o livro de bolso (e isso não é um defeito, ao contrário), uma reconstrução muito mais verdadeira do que, por exemplo, aquela série de livros documentais escritos por Elio Gaspari.

Não que o painel composto pelos livros de Gaspari seja ruim – é outra coisa que se lê afogando num pântano de curiosidade histórica das mais movediças. A questão é que, se Gaspari construiu toda sua elaboração do período militar a partir de notas e impressões do general Golbery – sua fonte pretérita que acabou definindo muito de sua visão, com a qual nem sempre o leitor atento tende a concordar – no caso de Gutemberg o ponto de vista é mais, digamos, “assumido” – e por tabela, intelectualmente mais honesto. Assiste-se à novela política e paramilitar da imposição do general Figueiredo como “candidato do sistema” – vencendo com as armas da época dois concorrentes de peso ombro a ombro nas mesmas fileiras do generalato, é lógico – por dentro do processo, entre quartéis, salas do “serviço” (SNI) e carros equipados com transmissores para ouvir  telefones e ambientes grampeados como jamais sonhou a inocência ética de um Gilmar Mendes.

Ou seja: enquanto a não ficção séria de Gaspari gargareja a voz oculta de Golbery, a ficção livresca de Gutemberg não tem pudor de contar tudo – ou ao menos o episódio da escolha de Figueiredo dentro do painel geral da ditadura – pela ótica interna dos generais no poder. Resultado da equação: o “inventado” , no caso, pode ser muito mais contundente do que o “recriado”. Sobras da equação: se, entre os própios militares da cúpula do poder, cada qual mais guarnecido de costas quentes do que o outro, as artimanhas competitivas contavam com chumbo para-oficial de tamanho poder de fogo – há até um sequestro na história de Gutemberg – imagine-se o que tal poder não chancelaria diante dos esfarrapados e ingênuos grupos de esquerda armada nas noites anteriores?

No  livro de Gutemberg não tem Marighella, Lamarca ou Yara. Não tem a Dilma da ficha publicada pela Folha. Tem Figueiredo, Octávio Medeiros, o próprio Golbery e os demais integrantes da távola militar de então. Não li, mas posso dizer por informações transversais que tem também o elevado grau de conspiração interna presente em outra não ficção marcante do período – a “Guerra das Estrelas” em que outro jornalista conhecido, Carlos Chagas, narra outra sucessão, a de Costa e Silva, de quem foi assessor.

Por oposição, e por não sair nunca dos limites verde-oliva do alto generalato brasiliense do final dos anos 70, o livro de Gutemberg serve de espelho à investigação da Comissão da Verdade recém-instalada. Toda vez que alguém vier falar em excessos da esquerda, sua chapa de vidro em forma de páginas impressas estará lá, refletindo e devolvendo em raios luminosos de fina ironia a desproporcionalidade da acusação. “O Jogo da Gata-Parida”, que poderia muito bem ser relançado à sombra desses novos acontecimentos, é uma comissão da verdade informal e à parte, que as novas gerações esquecidas ou mesmo ignorantes das coisas de então poderiam e deveriam conhecer.

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