domingo, 6 de maio de 2012

O veneno de Bethânia



A cantora devolve em forma de fino biscoito musical as agressões que sofreu quando do caso do site de poesia. A questão é: a virulência da resposta não a iguala à violência dos seus detratores? E mais: eles não tinham, sim, legitimidade para contestar o subsídio fiscal ao projeto?




Maria Bethânia queria fazer um site de poesia. Não deixaram, ela fez o de sempre – um disco. E não deixou barato, nem uma coisa nem outra. E sacramentou à revelia – quem, afinal, pode se considerar juiz ou réu quando se trata dos novíssimos tribunais de internet, atualização dos velhos tribunais de bar? – uma nova relação entre artista e público. Ou melhor: entre público e artista – e a ordem dos fatores, o internauta atento sabe, nunca fez tanta diferença. Quanto agora.


Pensou-se um site com uma poesia por dia, criou-se uma polêmica com um protesto por minuto. Algo muito propenso a, como de fato aconteceu, virar um insulto por segundo. Um mal entendido por milésimo de instante. Uma contramanada solta na velocidade dos clics. Curtiu/ Não curtiu. Cobrou, não pensou. Denunciou, condenou. O fenômeno do site de poesia de Bethânia foi um caso perfeito e acabado – por complexo e, pra usar um termo da moda, transversal – de crise de credibilidade algo além de público e artista, como já se disse. Entrou no caldeirão o oportunismo de atingir o consagrado no que ele tem de mais vulnerável – a leve crosta da fama que a certo jornalismo causa tamanho apetite a simples possibilidade de, entre dentes, quebrar. Jogou-se na receita uma pitada de ácido contra o bem-sucedido, seja ele quem for ou em que área estiver. E usaram-se porções generosas de determinados temperos bem próprios da nossa viciada cozinha: garrafadas de desmancha-reputação; purgantes para diluir hipocrisias há muito solidificadas; xaropes contra certa soberba que os baianos tossem com gosto na MPB de desde sempre.


Micou o site, morreu o projeto de uma poesia por dia a peso de ouro regiamente anotado no livro das subvenções tributárias nacionais. Enfim. Deu-se por esquecido. Calou-se a voz da cantora a não ser para cantar – voz que obviamente nem se deu ao trabalho de se pronunciar enquanto a arenga ocorreu. Passou. E quando ninguém mais lembrava, chegou o novo disco da mesmíssima voz calada no projeto de declamar poemas subsidiados. E no novo petardo que a cantora lançou no mercado, mais que sugestivamente chamado “Oásis de Bethânia”, veio aquilo que a Classe C muito pouco poeticamente chama de “o troco”. No oásis baiano da cantora de palestino nome bíblico, mina no aparelho de som a resposta líquida e certa para o caso arquivado. Está tudo lá, na faixa “Carta de Amor”, terno nome para uma ironia mais que declarada. Bethânia despeja imprecações musicadas contra quem a hostilizou em 140 toques. E o grau de ira dessa resposta é tal que, no limite, faz o ouvinte – ao menos este ouvinte aqui, que lhes fala – indagar-se se a virulência de tal retorno não justifica, nos finalmentes, os equívocos cometidos na ida.


Em claras palavras: Bethânia, como outros, é essa voz que não cansamos de admirar e de ouvir. E antes de concluir é preciso dizer que eu pessoalmente julgo que a dela é a mais brasileira das vozes, que se fosse o caso de mandar para um planeta de outro sistema alguma voz que representasse a nós, morenos filhos desta terra, não haveria de ser outra a não ser a dela. E a essa conclusão cheguei não ao ouvi-la cantar (o que seria  muito mais que o bastante), mas ao ouvi-la como narradora de uma série de documentários sobre países de língua e cultura portuguesa, exibida há alguns anos no canal GNT, mas isso, afinal, não passa de um parênteses.  O que se quer dizer, nesta sofrida tentativa de retratação de um brasileiro comum diante do retratado pela cantora em função do caso que envolveu seu nome é na verdade bem simples: por maiores que tenham sido as porções de ira gratuita despejadas nas time lines da vida, o brasileiro comum, o internauta distraído, o crítico de botequim, o ativista de shopping ou qualquer um outro desses tipos acabados da sociologia das novas relações sociais tinha, sim, o direito de contestar o emprego do instrumento da licença tributária como forma de financiamento cultural no projeto de uma poesia por dia criado pelo cineasta Andrucha Waddington e que seria estrelado pela voz que tanto amamos de Maria Bethânia.


Não que a legitimidade da contestação não existisse antes – como disse, ela sempre esteve posta mas só agora, por uma virada tecnológica que se não iguala ao menos reduz a distância entre produto e consumo, arte e público, pode ser exercida plenamente. Inclusive com seus subprodutos indesejáveis como o insulto, a incompreensão, o equívoco. Ao final do processo, fica a contestação pura e simples: o valor do site era alto e envolvia uma personalidade artística que o mercado  da música há muito consagrou – portanto e por princípio, alguém a quem seria demais oferecer mais uma subvenção governamental que, por uma questão de política pública, foi pensada para garantir um mínimo de visibilidade a setores prontamente barrados na porta do mesmo mercado que recebe Bethânia de braços abertos. E é melhor que Maria Bethânia e quem quer que seja – artista consagrado ou aspirante a celebridade na tevê – entenda isso, essa mudança, esse novo status conferido ao público, o mesmo público a quem ela e outros tantos tantas vezes atribuíram poderes muito maiores. Em teoria, porque a tecnologia social de então não permitia que tal poder efetivamente se manifestasse – exageros e abusos à parte.


Ocorre neste caso um paralelismo entre a arte musical industrializada – o disco, o show, o cantor, o artista – e o segmento da militância política tradicionalmente à esquerda: neste campo aqui, foi comum durante anos o sujeito minimamente na condição de líder abrir a boca e encher os pulmões para falar em defesa do povo. Pois este mesmo líder de outrora agora se estranha com o mesmo povo que declarou representar. Quem estava enganado: o povo ou o líder? Se botar na balança, é um  caso PPS demais para rivalizar com a tensão bem maior, que envolve mais sentimentos simbólicos, que toca em afetividades muito maiores, da relação artista-público. Mas o paralelismo está aí, claro como uma daqueles faixas de protesto tipo “Abaixo a ditadura” que a gente vê nas antigas fotos das manifestações do Rio de Janeiro de 1968. Também há outro jeito de demonstrar sua validade: tente imaginar aquele líder  arrogante dos anos 80, hoje convertido no mais incomodado conservador que perdeu seu lugar na história por falta de sensibilidade social gritando, no lugar de frases em defesa do “povo”, brados retumbantes em favor do “povão”.


Pronto: bastou um leve desajuste linguístico para desmascarar o falso consciente – aquele que usa o discurso da democracia política para justificar seu recorrente e jamais abandonado egoísmo de classe. O que Maria Bethânia tem a ver com isso? Palavras, que são matéria de poesia. O verbo a que ela recorre para compor sua resposta no CD da vez – aliás, belíssimo em tudo o mais; e lembrando um outro delicado e inspirado momento acústico a que poucos se referiram, o disco “Ciclo”, dos anos 80. As palavras estão aí, mudando de sentido, adquirindo novas colorações. E se Bethânia se vale do seu oásis para oferecer água venenosa a quem a desabonou talvez ela esteja repetindo o mesmo equívoco daqueles que lhe dirigiram baldes de lama sem antes se inteirar melhor do que se tratava. Inteirando-se, provavelmente manteriam a opinião – mas destilariam a virulência. A mesma virulência que a cantora devolve agora, em igual medida, embora com a elegância de um biscoito fino.

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