quarta-feira, 16 de maio de 2012

Um livro, muitos filmes



A narrativa sobre o Glauber Rocha pré-Deus e o Diabo feita pelo cronista do Leblon contém pelo menos três boas ideias de roteiro para filmes. E uma omissão típica de quem não enxerga além da Zona Sul do Rio de Janeiro

Um bom livro sobre cinema, cineastas ou de ensaios sobre a sétima arte pode ser aquele que contém um filme interno, com uma narrativa que mesmo sendo escrita produz um efeito visual irresistível, personagens que cativam ou trechos/cenas que impactam. Pois o livro que o mala-pop Nelson Motta escreveu sobre a juventude de Glauber Rocha, “A Primavera do Dragão”, consegue ser bem mais que isso. O que dizer de um livro que contém em suas econômicas 360 páginas – muitas delas ricamente ilustradas num projeto gráfico que lembra mais uma revista de bom gosto – três filmes possíveis? Ficam faltando somente cineastas dispostos a encarar a tarefa de tirar esses filmes do livro e colocá-los nas telas. Mas são absolutamente filmáveis e apreciáveis em sala escura ou DVD pelo menos três das histórias que o último cronista do Leblon garimpou ao pesquisar a vida de Glauber Rocha desde a infância até o momento da consagração no Festival de Cannes em 1964 (com a exibição de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” que, embora perdendo para o francês “Os Guarda-Chuvas do Amor”, foi a grande sensação daquele ano) para este livro tão bonito quanto interessante – e ligeiro, o que conta muito para os leitores ditos impacientes.

As sinopses estão lá, à espera de quem se candidate a filmar: a mais fascinante delas poderia se chamar “A Princesa da Casa do Padre”. Iria narrar o fascínio que reinou entre os moradores do vilarejo onde um certo dia chegaram Glauber e sua tropa de artistas e técnicos para rodar “Deus e o Diabo”. Havia, entre todos, uma estrela – mas que estrela! Era Yoná Magalhães, que numa temporada teatral em Salvador virou a menina dos olhos do filho de um latifundiário local. E filho de latifundiário baiano nos anos 60, você sabe, pode tudo: até fazer com que Yoná, que já era uma atriz “nacional” na época, largasse tudo para casar com ele e viver na Bahia. Ocorre que o tal filho de latifundiário tornou-se também o principal financiador de “Deus e o Diabo” (essas contradições brasileiras, vá entender) e Yoná seu principal personagem feminino, a Rosa, como está cansado de saber quem assistiu ao filme. Pois bem: como já chegou estrela a Salvador, sempre houve em torno de Yoná um tratamento de celebridade à antiga. Agora você transfira isso pro lugarejo onde foi filmado “Deus e o Diabo”. O relato do livro é de que foi alugada apenas para Yoná a casa do vigário local – obviamente, a melhor da cidade. E lá vivia a atriz, protegida pelas janelas fechadas, gerando um rumor de curiosidade e veneração entre os habitantes locais que, coitados, mal sabiam o que era a produção e realização de um filme. Não demorou a se espalhar a história de que quem vivia na casa do padre era uma espécie de princesa. Dá ou não um filmaço? Pense nisso nas mãos de Guel Arraes, com um tratamento lírico-cômico-nordestino como só ele é capaz de fazer sem culpa?

A outra história é sobre a cena em que o personagem do beato Sebastião exorta sua multidão de seguidores e sobe com eles o monte santo do lugar. Essa multidão de quatrocentos figurantes foi recrutada entre os moradores do lugarejo mesmo. E recebia um salário para atuar no filme. Mas quem disse que eles estavam dispostos a subir o tal monte umas quatro vezes, debaixo dos gritos de Glauber e diante daqueles trambolhos esquisitos que eram as câmeras? Deviam se perguntar: pra que subir tanto – uma vez não basta? Enfim, houve resistência. Foi preciso que aquele mesmíssimo filho de latifundiário recorresse a um pagamento extra: latas de leite que ele retirou dos estoques do pai, que também tinha o costume de diversificar seus negócios. Com a promessa de duas latas de leite em pó para quem participasse da cena, choveu figurante. Veio gente dos vilarejos vizinhos, o beato brilhou e, como vem diz Nelson Motta no livro, “Glauber chorava atrás das câmaras”.  Mas como diz aquele personagem de Billy Wilder numa das falas mais célebres da história do cinema mundial, “ninguém é perfeito”. Pois um defeito na câmera melou a filmagem e foi preciso fazer tudo de novo. Sem estoques de leite em pó, restou a alternativa de rifar uma máquina de costura entre os figurantes pra ver se novamente era possível atrair outra multidão. Deu certo, como você pode ver alugando o DVD e vendo novamente  o filme. Uma história à parte que dava sozinha um outro filme, bastasse um Fernando Meirelles encarar a missão com a mesma energia de seu antecessor no posto de cineasta número um do país. “Os Figurantes de Deus e do Diabo” não seria um mau título. Até um documentário renderia, nas mãos de um cabra disposto a encontrar, hoje, os mesmos figurantes de então e ver como eles se encontram agora.

A última das três histórias contidas no livro “A Primavera do Dragão” que merecia ser filmada é de natureza mais poética, daria um filme mais singelo, uma produção mais Walter Salles: narraria a decisão de Glauber, muito antes de filmar qualquer coisa, de sair em expedição pelo interior do Nordeste para se inteirar melhor da realidade de sua gente e de seu país. É um road movie perfeito como foi, por exemplo, “Cinema, Aspirinas e Urubus”, de Marcelo Gomes – outro que poderia rodar com os pés nas costas essa terceira história. E seu momento culminante se dá quando Glauber encontra o poeta pernambucano Ascenso Ferreira num vagão de trem. Só a locação já é um poema visual em si: Ascenso, lembrem-se, é o autor daquele célebre poeminha cujo trecho todo mundo conhece e que repete, na sua métrica, o barulho do trem em movimento: “Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende / Vou danado pra Catende/ Vou danado pra Catende/ Com vontade de chegar” (o poema é o Trem das Alagoas). Sentiu alguma coisa meio “Diários de Motocicleta” no clima desse encontro? Então...

O livro é mais que conhecido; a capa, com uma foto de Glauber solarizada, lembra aquele disco de Caetano Veloso de 1981 (“Outras Palavras”); a leitura corre ligeira que nem o trem das Alagoas; as ilustrações dão a impressão de que você está lendo uma dessas revistas culturais; as histórias de bastidor são saborosas como é imprescindível neste tipo de livro; as letras são grandes para quem já está com a vista prejudicada e “A Primavera do Dragão” ainda contém esses três filmes embutidos. Dessa vez o mala-pop Nelson Motta matou a pau. Só cometeu um deslize: esqueceu de mencionar na introdução um outro livro, tão importante quanto (ou mais) que traz a biografia inteira de Glauber Rocha( “Glauber Rocha – Esse Vulcão”), escrito pelo baiano e companheiro de geração do cineasta João Carlos Teixeira Gomes. Mas, como o alcance da lente intelectual de Nelson Motta não vai além da Zona Sul do Rio de Janeiro (e, quando passa disso é sempre ali pros lados de Manhatã), o esquecimento fica explicado. O fato é que são livros diferentes – enquanto o do carioca de Manhatã vale como bate-papo divertido, o do baiano brazuza se sustenta nas suas 600 páginas como estudo de profundidade explicitada. Melhor ler os dois. Enquanto se espera que aqueles três filmes entrem em cartaz.

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