terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Neurociência para todos


No filme “Como se fosse a primeira vez” (Peter Segal, EUA, 2004), uma dessas comédias ligeiras que você esquece tão logo saiu do cinema ou desligou o DVD player, repete-se o impulso narrativo clássico de qualquer filme padrão desse gênero: garoto encontra garota, para em seguida garoto perder garota e logo depois garoto tentar reconquistar garota. A diferença é que isso acontece todos os dias, já que a garota em questão – a Drew Barrymore a quem fomos apresentados quando ela ainda era uma criança no “E.T” de Spielberg – padece de uma enfermidade que a faz esquecer todo o seu passado recente, e principalmente o que se deu no dia anterior, e viver num eterno domingo que se repete ao infinito. Quem  mais sofre com isso – com a dose de sofrimento divertido que uma comédia romântica proporciona – é o comediante Adam Sandler, que tem de reconquistar todo dia a garota de sua vida.

E o que esta singela produção típica do cinema em série americano para home diversão pode ter a ver com algo  tão sério quando a neurociência que projetou para o mundo o paulista Miguel Nicolelis, este mesmo que está fazendo de uma experiência de intercâmbio ciência-sociedade no município de Macaíba, grudado em Natal-RN, uma amostra de como nada nesse mundo – e nem  mesmo no suposto segmentado mundo da ciência – tem que se isolado daquilo que o rodeia?  Acontece que “Como se fosse a primeira vez” contém, na sua insuspeita estrutura de roteirão padronizado de Hollywood, uma demonstração cabal – quase uma tradução involuntária – das teses defendidas por Miguel Nicolelis no livro “Muito além do nosso eu”, cuja leitura o SOPÃO acaba de encerrar. Se você nunca ouviu falar de conceitos como cérebro relativista ou interface cérebro-máquina não sabe o que está perdendo – mas se viu o filme aqui citado, já foi introduzido no assunto ainda que à sua revelia.

Todas as manhãs, Adam Sadler tem que se aproximar de Drew Barrymore, sabendo que ela vai tratá-lo como se nunca o tivesse visto, embora na véspera o casal tenha tido um típico dia de namorados em início de relacionamento. Depois de uma noite de sono, ela não o reconhece mais (porque não lembra nada da véspera, nunca) e ele sabe que tem de testar estratégias para reaver sua namorada desmemoriada. Ocorre que, quando ele tenta usar o mesmo truque que deu certo na véspera, nem sempre tem sucesso. Muitas vezes, fazendo igual, é pateticamente repelido, num efeito absolutamente inesperado. E então precisa inventar uma nova estratégia, num eterno trabalho de reconquista de alguém que se tem alguma lembrança dele é apenas nas reservas profundas do inconsciente.
Já o livro “Muito além do nosso eu” é ensaio científico capaz de cativar tanto leigos quanto iniciados – e não é fácil atingir essas duas distintas faixas de leitores -, que funciona, no nível da leitura, como uma grande narrativa épico-didática, algo que ora soa como uma aventura de adolescentes na floresta dos conhecimentos secretos, ora como um manual de biologia dado a figuras de almanaque. Lê-se este livro com a fruição de quem aprecia um romance de idéias, conceitos e experiências. Não é correto dizer que ele desce redondo o tempo inteiro: há densas páginas ocupadas por cipoais de informação prévia que o leitor atravessa captando os dados meio que na base da intuição (e aqui, o leitor iniciado, claro, não terá dificuldade alguma) para então, logo em seguida, inesperadamente, ser premiado com verdadeiras clareiras informativas, momentos de transcendência em que Nicolelis enfim explica onde queria chegar. É assim, de um júbilo narrativo e estilístico gratificante e impressionante, por exemplo, o momento em que ele narra – e a palavra é essa, porque no livro o cientista convive em paz com o excelente narrador – o instante em que, estimulando o cérebro de uma macaca no laboratório de sua universidade nos EUA, fez um robô se mover no outro lado do mundo.

E esta é apenas parte do prazer de atravessar um livro que fala sobre como o cérebro estrutura a visão que temos do mundo e de nós mesmos, de como o ser humano foi construindo ao longo da história extensões do corpo a partir do potencial dessa mesma massa cinzenta, como a gente chamava nos tempos de escola secundária. Sem falar na divisão básica que serve de patamar para toda a exposição, que se dá entre os chamados localizacionistas e os apelidados de distributivistas: de um lado, cientistas que insistem em estudar o cérebro como se fosse um produto segmentado, onde cada grupo de neurônios se especializa em uma tarefa e se recusa a executar outras; de outro, a escola em que Nicolelis se encaixa, que vê o cérebro com uma colméia de múltiplas habilidades em que, quando uma parte falha, outras assumem as tarefas remanescentes, num trabalho conjunto que, na prosa do cientista, tem muito a ver como a forma como os grupos humanos agem quando se dedicam à política democrática de massa em movimentos como... as Diretas Já, que marcaram o saudoso ano de 1984.
E o filme, rapaz, o que tem a ver com isso? Se você ainda não ligou os pontos, perceba que, imprevisto, surpreendente e dado a buscar alternativas a cada vez que é confrontado com situações que só na aparência parecem iguais, o cérebro humano reage de formas diferentes – uma vez que é movido tanto pelos estímulos externos quando por suas disposições intestinas de configurações flexíveis. Assim, a cada vez que Sadler aborda Barrymore, o cérebro dessa responde de uma maneira diversa, como a provar, no nível de um filme rotineiro e mediano, aquilo que as mais de 500 páginas de “Muito além do nosso eu” despejam graciosamente em nossos cérebros de leitores entretidos com os humores da mente humana.
Dito isso, é ler o livro, assistir ao filme, botar seu cérebro pra caçar as conexões, deleitar-se com os achados e tentar não se impacientar com as savanas de informações prévias de natureza biológica e química que antecedem as revelações que a neurociência de Nicolelis lhe entrega. Com aquela mistura inesperada de rigor científico com respiração humana, curiosidade libertária e incerteza fecunda.

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