Essa onda de trabalho em casa me lembra a todo momento o
amigo querido, Carlão de Souza. Uma de suas manias, ao conversar comigo e se
queixar quando precisava cruzar a cidade de Neópolis até a Ribeira pra pegar no
batente na velha Tribuna do Norte, era sonhar com o dia em que o mundo se
rendesse ao... teletrabalho. Esta palavrinha mágica frequentava o vocabulário
de Carlão tanto quanto rock, uísque, poesia, lirismo e mundo cão. Se todo mundo
tem um vocabulário próprio em que certos termos se repetem formando um estilo
verbal, eis um grupo delas que combinava com as falas do amigo querido.
Ele sonhava, mesmo, assim falando com o olhar no céu, nas
nuvens ou nas tempestades, não importa. Que a humanidade já deveria ter descoberto
o teletrabalho, que era um desperdício esses deslocamentos, que trabalhando em
casa ele dava perfeitamente conta de escrever sua crônica e assinar lindamente
como a Linda Baptista cujos textos saboreávamos.
Que enquanto escrevia em casa ele poderia beber algo – que nem hoje faz minha
colega Mariana Monteiro na Asa Sul aqui em Brasília, enquanto lá era Natal, ali
por 1988, 89, os melhores anos da minha convivência com o amigo querido que nos
deixou daqui a pouco faz um ano, vejam só.
O tempo passa, os chavões escritos não caem, mas novidades
surgem – e eis o teletrabalho com que sonhava Carlão se impondo por força da
necessidade e fazendo uma pequena revolução caseira na vida de quem desempenha
vários tipos de trabalho intelectual. O que Carlão não sabia – ele ficava no
limite do sonho, e como o sonho é enganoso, hein? – é que o teletrabalho divide
espaço com o filho pre-adolescente que não escolhe hora pra pedir sua ajuda
(imagino o amigo querido fazendo teletrabalho pra TN na casa de Neópolis e Alex,
10, 12 anos, pentelhando querendo saber sobre um mito grego de que tanto já
gostava naqueles tempos), assim como com o almoço atrasado e louça por lavar. O
amigo querido tinha, naquela época, a culinária nota mil de Jô e o machismo
reinante pra não ter que se preocupar com o destino dos pratos, panelas e talheres
após uma lauta refeição. Mas, hoje... sei não, amigo querido. Daí de onde você
está dá pra ver que o teletrabalho não tem sido a única novidade – em boa hora,
sustento apesar dos dedos murchos de relaxar na pia.
Mas desconfio que o teletrabalho deixaria o amigo querido
muito mais produtivo. Sem ter que digirir a Banheira – esse era o apelido do
carrão velho que ele usava na época – pela Salgado Filho e Hermes da Fonseca
adentro ouvindo Marisa Monte cantando Speak low, teria sim mais tempo
para adiantar os livros que viria a escrever no futuro, num momento em que só
tinha nesta lista o mitológico Crônica da Banalidade. Poderia ouvir mais
Nei Lisboa cantando Junkie ou a trilha sonora do filme Cal
enquanto batucava nas pretinhas. Reunir mais amigos para turbinar os assuntos
que movimentariam o caderno de fim de semana do jornal e jogar conversa fora
entre um parágrafo e outro sem se preocupar com deadlines e quejandos.
É isso, amigo querido – o panorama aqui embaixo não melhorou
nada, nada. Nem dá pra fazer uma carta como aquela que Chico enviou para Boal e
que quando se viu estava sendo cantarolada na boca de todo mundo com algum
juízo e moderada dose que fosse de sensibilidade poética e política. A Marieta
sempre estará mandando aquele abraço de Gil para os seus e essas novas
geografias astrais nunca vão nos separar de fato. Daí de onde você está,
gracejando sem maldade mas com empatia das nossas perdições terráqueas, faz um
teletrabalho de outra natureza entre tecnô e pajelô pra ver se a gente, na
próxima missiva, tem algo melhor para contar. Alô, alô, querido amigo, aqui quem
fala é da Terra, que roda, roda e permanece a mesma. E mais não digo porque o
teletrabalho, esse bicho tão calado quanto ansioso, me chama.