sexta-feira, 4 de maio de 2018

DESORDEM


Essa história de "leitor bagunçado" às vezes me dá umas rasteiras. Começou com uma brincadeira - uma autopiada - com a falta de ordem, coerência, sequencia, linearidade ou o que seja nos livros que eu vou lendo dia após dia. Uma declaração aberta sobre a admiração que tenho pelos amigos que conseguem seguir um roteiro invisível mal botam o pé numa livraria ou biblioteca. Eu, não: what a mess! De um Ian MacEwan eu passo pra uma Isabel Allende, sem nem um Miguel Sousa Tavares pra atenuar a travessia. 

Mas - ah, o mas - ocorre, aqui e ali, a vingança da organização, digamos assim. Como agora: ainda com os olhos sujos de lama e óleo cru depois de me espojar nas traquinagens de Mr. Trump na White House por meio dos semidiários perpetrados por Mr. Wolff, lanço meu olhar sobre a estante dos livros esquecidos - aqueles que você compra agora mas sabe que só vai ler muito depois; o que não os diminui nem um pouco, ao contrário - e caio de amores tipo first sight pelo "Império" de Gore Vidal. Sou tributário de Mr. Vidal desde os tempos de "Criação", doce poeira dos anos 80 no ar, e há tempos vinha querendo aspirar de novo os ares de suas narrativas ricas, elegantes, deliciosamente esnobes e irresistivelmente irônicas. 

Onde está o link? Ora, "Império", como devem saber os meus amigos que são leitores organizadíssimos, volta aos zeua do século XIX para duelar sobre temas caros aos irmãos do norte com a esgrima afiada de Mr. Vidal - política, poder, rituais de Washington, sumidades literárias cruzando em campinas com heróis de guerra e míticos homens de imprensa daqueles primórdios. O livro começa assim que acaba a guerra entre EUA e Espanha, inundando os salões das conversas com as avaliações mais díspares desse noticiário, ingressando mesmo na construção das vitórias e derrotas por meio de uma novidade asfixiante - a grande imprensa de monumentos como Pulitzer and Hearst. 

Persiste a pergunta: e o link, man, adonde está? Nas verdades construídas, nas guerras produzidas, nos interesses capazes de dispor as peças do tabuleiro político e convencer a massa de que é aquilo mesmo e não adianta discutir. Parece que a pós-verdade sempre existiu - o que acontece é que agora essa dama suja foi batizada com um nome limpo. Ou pelo menos as sementes estavam há tempos no solo americano - que dirá o nosso cá embaixo, hein? O aguardado link, numa frase, está na semelhança, na permanência, na persistência de certos painéis que aos olhos de hoje parecem ter nascido ontem.  Mr. Trump e sua corte de maltrapilhos da extrema direita bem que poderiam entrar, sem pedir licença, nos gabinetes onde os irmãos Caroline e Blaise Sanford circulam dentro desse "Império". Ali estava o tal ovo da serpente de "Fogo e Fúria". 

E aqui está a derrota da desorganização do dito leitor desordenado. Sem querer, pontes se constroem entre os livros na estante. Tristes links, neste caso. Como no dia em que quis fugir do tóxico noticiário interessado brazuca e acabei buscando refúgio - ledo engano - no "Rio das Flores" do português Tavares, apenas para perceber ali pela página 30 que - estética e história à parte, claro - havia trocado seis por meia dúzia. O best seller do portuga, bom que só a gota, sufoca o personagem principal na angústia de ter de conviver com a recém implantada ditadura do burocrata Salazar. Quando o revoltado Diogo resolve fugir daquilo, pega o Zepellin rumo ao Brasil - que o deixa fascinado. Mas aqui também havia um Estado Novo em gestação. Enfim, valeu o prazer da travessia de mar e livro, mas a desorganização - descubro - pode ser bem difícil, quase impossível. Uma utopia como hoje parece ser tudo o mais. 

Jogo tudo para o alto e me jogo na épica e enciclopédica aventura política de "Império" - um livro do tipo que implora por completa imersão. O próximo livro a pular da estante pra minhas mãos dirá enfim se a organização é uma sina ou uma inútil negação.

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