A propósito do nosso sombrio momento histórico e de
uma série de livros da editora Contexto
É certo que estamos todos tristes. Não que certa
melancolia não nos acrescente algo. Mas é de outra natureza essa sombra sobre
nossos sentimentos - nada a ver com a
estranha alegria de ser triste de que falava o poeta português. É – esperamos –
um desapontamento demarcado, uma apatia ocasional, uma escuridão cercada por um
muro cheio de cacos de vidro chamado momento histórico.
Tudo é cinza em torno do verde/amarelo que nos roubaram
pra enfeitar Patos de Tróia. E chutamos pelo caminho restos de projetos de
país, papéis amassados com planos grandiosos que, entre retas e círculos, de
alguma maneira vínhamos desenhando com algum sucesso. Faliu o Brasil Grande,
quebrou o País do Futuro, furou-se o balão do Milagre Consumista, travou a
máquina do Gigante Acordado. Tudo se esvaiu num ralo que mistura descrença
ideológica com hipocrisia política, num escorrer rápido e precipitado como
jamais imagináramos – sem nos dar tempo sequer de parar a correnteza para
segurar algum elemento primordial que não precisa ser jogado fora junto com a
água suja do banho do continental bebê.
Foi bem neste clima que me caiu às mãos um livro –
sempre eles – capaz de, se não restaurar o que a realidade suja destruiu, ao
menos lembrar que esse tipo de processo pode não ser propriedade particular de
nosso apego infantil ao subdesenvolvimento. Foi um dos livros da série sobre
nacionalidades que a editora Contexto publica. Uma bela série, onde se pode ler
“tudo sobre” Os Ingleses, Os Espanhóis, Os Portugueses, Os Franceses, Os Russos
– e outros, num total, acho, de dez título. Vá ao site, escolha os que lhe
interessam e é capaz de, comprando uns cinco, ganhar o sexto. Vale cada
centavo: cada livro traz uma síntese histórica, social e cultural de cada povo,
como ele se uniu e como ameaça se desunir no dia a dia, vantagens e fraquezas,
momentos de alta e de baixa.
Digo isso com base em Os Espanhóis, o único que li até
agora – mas que foi justamente o livro que me devolveu um pouco de – como dizer,
esperança? Não, caça aí outra palavra nas vizinhanças dessas – no errático
Brasil de 2017. Descobri – ignorante como sou, e isso não é piada
autodepreciativa pra me elevar o conceito em efeito contrário – que em certos
aspectos, estamos bem à frente. O recente imbróglio em torno da independência
da Catalunha não me deixa mentir.
O livrinho vai fundo nas bases desse e de outros
movimentos separatistas hispânicos, além de cutucar as feridas espanholas como
quem abre a golpes de foice as veias abertas da América Latina. Suportar um
regime como o do general Franco por décadas – e só ver este regime cair quando
seu patrono de fato morreu, bateu as botas – é de triturar qualquer coração
civil, só pra deixar a coisa num clima bem Milton Nascimento dos anos 80.
Desculpe, mas fomos ligeiramente melhores, se é possível traçar escalas de
valores em matéria de ditadura. O fato é que nossos déspotas (os mais recentes)
caíram antes – ou, melhor dizendo, duraram menos em termos de paciência cidadã.
Os espanhóis tiveram que velar o presunto de Franco para poder pedir a palavra
e dizer “ai”.
O efeito Guerra Civil é de uma absurda capacidade de
gerar dor. Basta lembra a expulsão ou o sacrifício puro e simples de toda a boa
inteligência do país – escritores,
artistas, cientistas – vitimada pelas botas dos seguidores de Franco. Sem falar
nas levas de guerreiros republicanos entregues aos campos nazistas. É tanto
sofrimento condensado que, por um instante, entre uma página e outra, a gente
até acalenta a ideia de que o Brasil não terá sido tão cruel com sua gente.
Será? E a nossa singela escravidão?
O fato é que, fechando a exposição do que é ser
espanhol – e a síntese revela-se tão difícil quando a nossa eterna busca pela “identidade
nacional” – o autor não se faz de bonzinho: diz, pura e simplesmente, que o que
mantém a Espanha unida (porque, segundo ele, há camadas inteiras da população
incapazes de se comunicar minimamente com outras; e a divisão pro e
anti-independência da Catalunha taí pra provar) é alguma coisa como o medo...
de outra guerra civil.
O que une os espanhóis é algo como a consciência de
que tempos muito piores já foram vividos. É uma mistura de temor ancestral com
conforto possível. Bem classe média brasileira com medo de não ter dinheiro pra
pagar o colégio do filho, não? Mas é a isso mesmo que se chega após umas tantas
trezentas páginas que passam por figuras tão distintas quanto Don Juan e El
Cid, Felipe González e a cigana Carmem. O amigo arrisca aí uma síntese entre
Chacrinha e, argh, Jair Bolsonaro? Pobre Espanha, miserável Brasil. Talvez o
grande problema seja o mundo inteiro. Toc, toc, toc.
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