sábado, 20 de fevereiro de 2016

Nosso amigo Umberto

 


Vai-se o escritor inacessível com quem tínhamos a maior intimidade

Encontrei Umberto Eco pela primeira vez num aeroporto. O de Recife,  certamente em 1985, quando espiava títulos numa livraria com o amigo Ítalo Dantas. O Nome da Rosa já era aquilo tudo - campeão de vendas, número um na lista então muito respeitada daquela revista idem. Sempre tive uma queda por primeiros parágrafos. Se me conquistar ali, já foi. Capitulei em festa ante as primeiras palavras da narrativa do noviço Adso, variação e citação do célebre "meu caro Watson", já idoso, ao apresentar de maneira irresistível a aventura medieval de seu mestre Guilherme de Baskerville. 

Eu já sabia quem era aquele Umberto, claro. Como todo estudante de Comunicação, ouvira falar dele vagamente, nas aulas do não menos saudoso Rogério Cadengue, por causa de Apocalípticos e Integrados - que nunca li, como tantos outros; mas cuja metáfora qualificativa será para sempre um ponto de referência toda vez que surge um novo meio, um facebook, um twitter e quem sabe mais o que virá por aí.

Leituras de estudante: ao lado, a edição que eu viria a comprar e ler, mais barata, vendida nas bancas, depois do sucesso do lançamento original.








Umberto, como muito bem estabeleceu a colega Sandra Crespo num post no facebook (leia aqui), será sempre para essa nossa geração aquele farol iluminando caminhos lá do alto, com o perdão de tão gasta imagem (mas é isso mesmo, paciência). Como um amigo - um mestre, tanto quanto Baskerville foi para Adso - que vez em quando, nos momentos precisos, reaparece com uma novidade para nos orientar nos movimentos intelectuais que a vida exige, sugere, propõe. É o tipo da pessoa inacessível com quem temos a maior intimidade. 

É como Ítalo Calvino para Gustavo de Castro, como Drummond pra Rejane, como Paulo Freire para Guia Bezerra, como Hilda Hilst para Jeanne Araújo, como Ariano Suassuna para Renato Ferraz e por aí vai. Essa citação festiva de tantos amigos é pra isso mesmo: pra que fique clara a sugestão de como Umberto Eco estava próximo, mesmo sendo um celebridade (a merecer o nome) tão remota.

Vieram O Pêndulo de Focaut, que tive o prazer de ler duas vezes - a primeira durante um período de crise brava (essa de que tanto falam hoje é fichinha) no início dos anos 90 quando trabalhava na agência de Ricardo Rosado e Solino, em Natal (faltava dinheiro para anúncios e anunciantes, a sede da agência estava sendo construída e enquanto isso a gente se esbaldava na biblioteca particular de Ricardo, na casa do próprio em Capim Macio, em Natal). A Ilha do Dia Anterior já foi justo na transição para Brasília: horas de recolhimento em meio à mudança de cidade num dos quartos do apartamento de Adriano e Flávia na 216 Norte. Era maio, na alta noite a temperatura descia para 15 graus e a leitura de Umberto Eco me aquecia. 

Nas jornadas mais acadêmicas, já havia passado em Natal pelas ideias de Sobre o Espelho e Outros Ensaios e Viagem na Irrealidade Cotidiana (da biblioteca sempre aberta de Caro de Souza) - inspeções semiológicas em que ele demole parques e simulacros do mundo do entretenimento tipicamente americano, como o shopping center - inexistente em Natal naquele momento. Serviu-me de empurrão, de referência sociológica, para muito texto nos jornais locais. Inclusive para o Natal Shopping logo que ele foi inaugurado. Acho até que exagerei, mas esse arrebatamento era próprio do momento e da idade.


Os ensaios de semiologia que destruíam shoppings e simulacros: empurrão para analisar cidades em mudança no final dos anos 80.













Em Brasília vieram outros (Segundo Diário Mínimo; Como Fazer uma Tese; Seis Passeios pelos Bosques da Ficção), mas Umberto Eco me deixou dois livros em casa ainda não lidos - Baldolino e A Misteriosa Chama da Rainha Loana - além de outros que ainda nem peguei na livraria, como O Cemitério de Praga e esse interessante O Número Zero, espelho do jornalismo embaçado que temos hoje em dia. 

De maneira que o escrito vai continuar vivinho aqui, à distância curta que separa um braço de uma estante de livros. Vivo também no rosto do amigo Ítalo, que gosto de dizer brincando que a idade transformou num sósia do semiólogo italiano. Vivo na memória que cada livro evoca, assim como nas associações que existem entre esses livros, essas memórias e os meus próprios amigos. 

Amigos a gente encontra, ao mesmo tempo em que grandes escritores a gente lê. Esse é o legado pessoal que Umberto Eco deixa pra mim. Examine aí o que ele deixou pra você: não tem homenagem melhor para um escritor que se vai ao mesmo tempo em que se deixa ficar, com firmeza e saudade, nessa matéria passageira por excelência que é a nossa imaginação individual e coletiva. Obrigado, Umberto Eco.

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