terça-feira, 3 de maio de 2016

A luneta de Alceu

Inquieto como um frevo de rua, o filme mistura cangaço e circo numa maratona de alegorias 


O filme de Alceu Valença é um rock-xaxado de imagens inquietas, colhidas por uma câmera que dança o tempo todo, construindo um cinema movimentado como o músico, cantor e compositor que se arrisca em outra linguagem. Nada fica quieto muito tempo no filme que aposta em gênero consagrado o bastante no cinema brasileiro para não trazer riscos ao realizador: o cangaço. Claro que nesta “Luneta do Tempo” temos o cangaço alegórico, como se o filme todo fosse uma ópera popular movida a um programa  musical aplicado sobre os signos mais caros dos sertões nordestinos. 


Alceu mixa o mito do cangaço com o mundo dos circos mambembes mais pobres, extraindo disso um suco cultural que fala muito próximo a quem guarda os marcos daquilo que se convencionou chamar de Brasil profundo. E não faz feio quando se trata dos recursos técnicos que o cinema precisa saber usar. Vide as cenas de tiroteio, que podem levar o espectador à lembrança de faroeste americano de soberania técnica, deixando na poeira das caatingas os truques manjados do cinema novo mais decadente (não do inaugural, onde a precariedade técnica era, por si só, uma nova linguagem reconstruída).


Alegórico, colorido, festivo, dionisíaco, algumas vezes violento como a realidade que afinal também evoca, em muitas outras também lírico como se espera de um Alceu Valença, “A Luneta do Tempo” tem ainda o carisma instantâneo, imediato, direto e envolvente de nossa (para os potiguares) Khrystal, que, cantora magnífica que conhecemos, no filma mal precisa abrir a boca para expressar o que vai dentro de uma cangaceira ferida não no corpo mas no amor-próprio do sentimento ultrajado. Belo desempenho mudo de uma das nossas mais potentes vozes. Verás que mesmo sem lançar mão do seu instrumento vocal Khrystal preenche a tela inteira – e olhe que vi na tela generosa do Cine Brasília – com sua máscara de mulher tão magoada quanto decidida – e veja que ela está rodeada por ninguém menos do que Irandhir Santos e Hermila Guedes.



“A Luneta do Tempo”, como o próprio nome sugere, ainda brinca com a forma como a passagem do tempo faz pouco das realidades humanas, reconstruindo as tais narrativas conforme as circunstâncias. É o momento de metalinguagem do filme, quando uma sequencia da “realidade” do cangaço é refeita em forma de drama circense, estabelecendo, como sempre acontece nesses casos, um interessante diálogo interno do filme com o próprio filme. Com um desfecho não menos interessante.


Breve, exato, em grande parte convencional, sim, o filme de Alceu soa como um cordel redondinho, uma canção como essas que contam uma história emocionante, um drama de circo feito com os recursos de uma arte tecnicamente mais elaborada. Vai tocar você como boa música – mas é cinema, sim, senhor.

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