quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Devagar com 2014



Meu 2014 começou em 1958. Não voltei a uma era passada na esperança de fugir de um dos mais aguardados anos dos últimos tempos. Foi 1958 que veio até a minha pessoa, personificado com charme, beleza, dramaticidade, precisão e elegância na figura de um clássico absoluto. Para minha sorte - e de mais alguns felizardos de outras capitais brasileiras onde tal manifestação se repita, e tomara que sejam muitas - uma sala de cinema de Brasília está exibindo uma reprise (inclusive mui curiosa, mas isso explico mais tarde) do inigualável "Vertigo", o nosso "Um corpo que cai", suprassumo do suspense de bom gosto do velhote Alfredão. Já disse em outras redes e repito: não haveria melhor presente de aniversário antecipado que eu pudesse ganhar. Que Copa, que nada! Eleições?, bah! Não gosto de futebol, política às vezes pode dar coceira: o grande barato deste 2014 mal saído das fraldas pode acabar sendo este singelo marco inicial, de uma reprise no cinema, sala escura, tela grande, imersão total, de um Hitchcock da mais excelente extração. 

É claro que, como tanta gente, eu já cansei de ver e rever este filme em VHS, DVD e até nas finadas sessões clássicas das antigas noites de domingo da era da exclusividade da TV aberta. Mas ver "Um corpo que cai" no cinema, convenhamos, não é algo para qualquer dia. O máximo que lembro em termos de comparação ocorreu em 1984, quando quatro filmes do mestre do suspense - título pequeno, porque existe ali um mestra da beleza narrativa e pictórica que vai muito além dos sustos - voltaram a ser exibidos nos cinemas. Foi essa mostra por sinal que estabeleceu entre nosotros certo culto diante de "Janela indiscreta" (e "Psicose", informo só por curiosidade, não fazia parte deste pacote). Não vi nenhum na época e nem consigo recordar por quais motivos. Mais recentemente, acho que por ocasião do aniversário redondo de um desses grandes estúdios americanos, voltaram alguns filmes em reprise - lembro de "Bonnie and Clyde" que, acho, revi sim no prazer do cinema como ele deve ser. 

A reprise em cartaz em Brasília no Itaú CasaPark (sessões às 21h30, numa sala só) tem como curiosidade contrastante as legendas em português de Portugal: é motivo para um travo de riso no meio da dramática - mais do que suspense, vi-me tomado pelo drama ao assistir ao filme na tela grande - história. Você está prestando atenção na forma como Hitch consegue envolver a nós do lado de cá da tela ao mesmo tempo em que enrola seu protagonista (que "cai" também metaforicamente ao engolir uma história montada para sugerir ser o que não é) enquanto se molha numa chuva de próclises, ênclises e até mesóclises graças à tradução portuga. Pior mesmo é quando James Stewart obriga Kim Novak a experimentar um "fato" contra a própria vontade. Não sabe o que é um "fato", gajo? Direto pro google lusitado, então.

Mas isso são distrações: para além da fotografia que parece fazer de cada imagem que se vê na tela uma construção clássica impregnada no painel do nosso imaginário - Kim Novak diante da Golden Gate, o cabelo louro combinando com o vermelho da estrutura da ponte é um desses cartões postais cinematográficos de vida eterna - temos Hitch usando sua arma primordial: o poder da narrativa. Tudo em "Um corpo que cai" remete à vulnerabilidade distraída que o ser humano costuma apresentar diante de uma boa história. É um filme que, suspense à parte, mostra como é possível, usando apenas uma intrigante, sugestiva e marcante narrativa levar um nosso semelhante a fazer as maiores barbaridades - ou a cometer as mais vergonhosas mancadas. É disso que se trata: o poder de uma história, a capacidade de envolvimento de um determinado clima audiovisual, o alcance de uma composição feita com a junção convincente de várias peças soltas quando postas para funcionar em conjunto. 

E tudo isso captado, editado e formatado em 1958, com direito às ruas de São Francisco em textura de postal antigo, com seus carros, prédios, ladeiras em cores aquereladas. Por isso, amigos, recomendo, indico, apelo: deixem 2014 em paz por enquanto e sigam direto para 1958. 

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