sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

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Acaba hoje, em (mais) tragédia ou (menos) compaixão a série "Amores roubados", que o roteirista George Moura adaptou da lenda urbana de Recife registrada originalmente por Carneiro Vilela e agora recriada esplendidamente em tratamento pop-grego-nordestino pelo estilo a esta altura já característico de José Luiz Villamarim. Quem viu fica com a impressão de que programas de TV como esses - e o "Canto da Sereia" do ano passado - trazem para a televisão brasileira atual respingos de marcos teatrais do Brasil do passado recente, como a "Gota d´água" que Chico e Ruy Guerra transpuseram das profundezas trágicas da Grécia clássica para a violência crônica já vigente nos morros cariocas dos anos 70. É uma enchente de dramaturgia cortante num veículo que, em programação aberta, naturalmente tende mais ao descartável indolor. 

Mas "Amores roubados" atualiza outros elementos. Temos aqui - embora o capítulo final possa nos contrariar - dois coronéis globalizados que, traídos pelas respectivas esposas, sinal dos tempos, não resolvem o problema descarregando as espingardas nas madames. A honra ainda é lavada com sangue, mas o sangue do pé de lã. Porque os neocoronéis das vinículas do sertão continuam brutos - embora muito mais bem vestidos - mas ainda amam. Ou, melhor dizendo, agora amam. A sensibilidade, o afeto, o apego à maneira deles se impõe como um elemento civilizador, agrega-se ao jantar bem posto, ao vinho bem escolhido, ao corte de cabelo estudado. Ou talvez não seja nada disso - apenas não fica bem para um pós-coronel que exporta de Juazeiro para as europas sair matando a mulher só porque ela deu uma pulada de muro tão comum de Berlim a Tóquio. A série, de qualquer maneira, registra uma mudança - e comprova que não está retratando o sertão modernizado apenas por incluir modelos de carros tão caros em cenas rodadas nas estradas mais arcaicas do interior do Nordeste. Reações, sentimentos e posturas também mudam, nos dizem os autores. 

Se o telespectador reparar bem, o verdadeiro vilão da série está bem disfarçado na sua condição de sedutor contumaz: é o próprio Leandro Dantas, exterminador sentimental que faz miséria nos corpos e corações femininos que encontra pela frente, pela simples satisfação de exercitar, para além do prazer das camas, o jogo da conquista. Ele mesmo define isso muito claramente numa cena, quando explica ao escada Fortunato que esse é o jogo: seduzir ou ser seduzido. Villamarim usou na série o xote "Romance da lua, lua", antigo e já clássico sucesso da vertente nordestina da MPB dos anos 80 cantado por Amelinha. Poderia, com o bom gosto que tem para sonorizar sua dramaturgia, ter usado um outro clássico, de Zé Ramalho, "Kamikaze", que bem define em ritmo, palavras e sugestões o Leandro Dantas de Kauã Raymond: "Um cavalheiro, nunca um cowboy / um verdadeiro kamikaze / um avião destruidor de lares / um passeio pelos ares / um megaton de poucas esperanças / bombas e lembranças / e quando eu de lá voltar / não sei se poderei ficar / ali onde deixei você / deixando tudo pra viver".





Entre nós, potiguares, há um motivo à parte para acompanhar a série e ele se chama César Ferrário, que a exemplo de Titina Medeiros em 2012 nos inflou mais uma vez o orgulho ao se apresentar como Bigode de Arame. Um capanga tão globalizado quanto seus chefes, que por fora se enfeita com capacetes militares e óculos sessentistas, numa composição neotropicalista que, embora vista sua figura com as batas rotas que a contracultura deixou nos brechós, por dentro é o mais legítimo guardião da trágica tradição: para Bigode, a solução é sempre matar. À sua maneira, César fez um Antônio das Mortes transposto para certa bossalidade dos dias atuais: um matador (de cangaceiros sexuais?) que tropeça na própria sombra, atrapalhado como um Didi Mocó sem noção da própria defasagem histórica, um espelho quebrado, colorido e reluzente do que um dia foram as sombras da violência atávica dos grandes sertões: o assassino de aluguel. E no meio de tudo isso ainda tivemos Dira Paes, mas ela merece um papo à parte. 

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