sexta-feira, 14 de setembro de 2012

A vida na bruma



Acho que foi Luiz Fernando Veríssimo quem disse certa vez que, a despeito da corrupção que alimenta bolsos e jornais, Brasília é a cidade mais transparente do país. Mais que transparente, é ofuscante de tanta luminosidade, a ponto de irritar a visão que busca uma nesga de sombra que seja para descansar os olhos. Que, mesmo com tamanha superexposição, seus prédios privilegiam vidraças, buscam os raios solares, abrem-se à claridade como um inseto noturno se apaixona por um poste de luz. Pois no presente momento, Brasília, quem vê o Jornal Nacional já deve estar sabendo, é tudo menos isso.

Em setembro, quando a seca brasiliense se condensa em névoa , essa cidade é justamente o oposto da claridade – ainda que se mostre curiosamente mais e mais brilhante. Faz-se difícil de enxergar, turva suas tão conhecidas linhas, veste-se de subjetividade visual. Torna-se estranhamente sombria, dotada de um inesperado tipo de meio tom – uma bruma clara que evoca a cegueira branca do livro de Saramago que Fernando Meirelles transpôs para o cinema.

São dias em que Brasília parece uma foto em negativo dos fogs londrinos. Nisso e em tudo o mais, é preciso alertar o espectador distante que a visualiza pelo Jornal Nacional, nossa bruma de cerrado é em tudo diversa ao que aparenta. O tato costuma associar a névoa ao frio e à umidade – e aqui dá-se o oposto. Nossa bruma é o envoltório natural de um grande bafo quente – turbinado pela fumaça das queimadas, claro, e pela poluição concentrada no ar pela falta de chuvas.

Você acorda de manhã, olha pela janela e vê uma branquidão borrada. Tudo fica indefinido,  o plano e seus habitantes, a mata baixa e o traço do arquiteto. E o céu queda-se subtraído do azul habitualmente tão comentado. Tudo queima, irrita, chamusca. Vai-se a transparência. E o cenário urbano fica muito mais propício à má fama da cidade, com a bruma seca protegendo em sombras brancas os lobistas desconfiados entre os blocos da Esplanada dos Ministérios.  
 
É como se Brasília se tornasse o cenário de uma inusitada espécie de filme noir, onde a escuridão das tramas e dos personagens se vestisse de branco, desbravando um novo ambiente para suas tramas recorrentes de roubos, golpes e armadilhas. Antes que a primeira e aguardada chuva dilua essa imprecisão toda com um aguaceiro daqueles e traga de volta nossa luminosidade objetiva que quase cega os olhos do cronista.

* A foto que ilustra o post é de Elza Fiúza/Agência Brasil

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