As
crianças por acaso caminhando na direção da escola mais próxima eram uma piada
daquele senhor tão bonito – o Tempo. Os bebuns ocasionais diante dos “boinhos”
salpicados em torno da praça eram uma lembrança das horas perdidas ou um aviso
inútil àquela altura de escolhas que deram errado. “Boinho”, na linguagem de
Acari ali próxima, é o mesmo que cigarreira, fiteiro ou outras denominações
regionais – barraquinhas que vendem de cigarros a cerveja em lata. Os “boinhos”
largados na tranquilidade algo tediosa de um fim de tarde em uma praça
municipal de uma pequena cidade do interior combinam com os octogenários de
antanho. Mas, como dizia, tudo isso mudou no último dia 21.
Foi
como se naquele dia tivesse descido de um ônibus Jardinense – desses que viaja
não nas estradas físicas, mas nas rotas do tempo – um certo Roberto, nos seus
80 anos. Irinel, Bernardo, Joaquim, Manoel, homens de 80 anos costumam ter
nomes assim, de maneira que um Roberto dessa idade desembarcar na praça de
Carnaúba já é algo incomum a partir do próprio nome desse passageiro do tempo
que, no entanto, é nosso contemporâneo, sim. Não veio nem do futuro nem de
Marte. Veio de um planeta paralelo que existe numa segunda dimensão visível
apenas para quem cultiva a verdadeira juventude aqui mesmo neste astro redondo
– sim, redondo – a gravitar em torno do Sol.
Pra
ser mais exato, nem era Roberto. Era Robert mesmo, mas pode abreviar para Bob,
por mais esquisito que soe a palavra numa praça em Carnaúba dos Dantas, aos pés
do Monte do Galo, dentro da atmosfera tão pouco gringa do quadrilátero simbólico
formado entre as cidades de Caicó, Parelhas, Currais Novos e Acari. Pois naquela
data Bob Dylan, o próprio, desceu do Jardinense e foi conferir pessoalmente o
panorama em volta, com seus boinhos, seus bebuns, o comércio local, o belo
prédio escolar numa das laterais, as redes estendidas em estampas variadas à
venda, as barracas de mosquiteiros cor de rosa, a algaravia de um dia de feira,
as caminhonetes em disparada, as muitas e muitas motos e bicicletas, as
mocinhas de short, os gaiatos – os jokermen do sertão.
Mr.
Dylan podia parecer estranho, mas não o era totalmente. Afinal, naquele dia
mesmo estava completando 80 anos de vida. Um octogenário, pois não? Ao atingir essa
idade – a partir de uma geração em que morrer aos 27 chegou a parecer entre um
presságio e uma lei, vide Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison – o homem velho que deixa vida e
morte para trás reescreveu a essência dessa faixa etária, injetando nela a
juventude de que sempre e tanto precisamos.
Com
Bob Dylan chegando a esta marca, 80 anos necessariamente passam a ser outra
coisa. A palavra octogenário perde o sentido. Esqueça o velhinho ou a senhora
idosa no ocaso triste da praça em Carnaúba. Instale imediatamente neste lugar a
figura do trovador folk, do jovem de cabelos qualquer-coisa que com suas letras
coalhadas de imagens inesperadas e reflexões oportunas, sua filosofia
pop-musical de fina extração poética, inscreveu-se na linha do nosso tempo a
ponto de passar das fitas k-7 para o prêmio Nobel, fundindo na mesma e rara
matéria literatura incidental, show bussiness e contracultura. Não são muitos os
que conseguem medir a alquimia correta dessa mistura incerta.
Ao
fazer 80 anos, Bob Dylan, para usar uma palavra da moda, ressignificou o
conceito de juventude. Estendeu-o para muito mais à frente. Os 80 são os novos
50. Isso já vinha ocorrendo, mas quando um ser humano da estatura existencial
dele atinge essa marca – sobretudo vindo da geração de onde partiu, do meio
onde se colocou e se firmou – torna-se aí sim um marco.
A
partir do momento em que Bob Dylan faz 80 anos e desembarca na praça de
Carnaúba, torna-se possível, ou até necessário, ou talvez até obrigatório –
caso a obrigatoriedade não fosse algo tão inconciliável com as ideias aqui expostas
– considerar que a juventude começa no berço e só acaba no túmulo. Pra não
falar das outras vidas, os demais planos. É menos uma questão de idade e de
condições físicas – embora essas, claro, sejam um obstáculo – do que um estágio
mental quiçá perpétuo, certamente constante, insistentemente mantido,
teimosamente sustentado.
Carnaúba
é toda sua, velho Dylan. Fique à vontade. Encoste num boinho e beba algo,
aproveite a prosa de um poeta disfarçado de traste municipal. Há muitos casos
assim. Talvez algum saxofone por perto toque um trecho de Royal Cinema e lhe
inspire uma nova canção sobre o poder da juventude.
Mesmo
aos 80 anos, sobra tempo pra você. O próximo Jardinense só sai às sete da
noite.
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