domingo, 6 de novembro de 2016

Atualizando (ou "o espírito do tempo")



Tem aquela palavra em alemão difícil de pronunciar e fácil de entender, perfeita para explicar justamente o que parece não caber numa palavra. Zeitgeist, o tal espírito do tempo. Que tem sido péssimo, que aponta para piorar mais ainda, que não nos deixa dormir bem a não ser que todas as janelas informativas sejam cuidadosamente fechadas pelo menos três horas antes de qualquer pessoa sensata, sensível e minimamente inteligente ir para a cama. Lapsos se abrem, é natural. Blogs são abandonados à própria sorte. Um rascunho de post à deriva na lama da desinformação tubinada que, apesar de tudo, em certas horas ainda reflete a luz de uma lua torta. 

Muito pra dizer, mas pra quê? Por mais que se dê voltas, sempre se corre o risco de cair, desavisadamente, num buraco oculto no asfalto, a melhor embora mais acidental tradução para o tal espírito do tempo (o atual, por favor). Faltou falar de Aquarius, tão mal compreendido, erroneamente - e o pior, propositadamente - lido, tomado por partes que sozinhas nem fazem sentido enquanto o todo, esse monstro que vem a ser outra cara do espírito do tempo, não perdoa em sua implacabilidade. 



O filme não é sobre política pequena, nem pode ser reduzido a um thriller social, um drama banal: é tudo isso superlativamente superposto em camadas que vão sendo cimentadas umas sobre as outras, resultando no mais acabado espírito do tempo made in Brazil dos nossos dias. Glauber Rocha que morra de inveja, mas o pernambucano lhe ocupou o lugar. 

Tanto a dizer, palavras perdidas no abandono da autoeditoração que tanto permite quando desautoriza. Faltou falar de A Repartição do Tempo, um bólido cinematográfico que vem aí para nos desfatigar as retinas drummonianas nesses meses recentes, ao reerguer em forma de comédia amalucada, ligeiramente puxada ao ritmo de um distante Guy Ritchie, a nossa já tradicional dramaturgia do serviço público. Vide a era do Palhares de Nelsão, em crônicas, romances seriados ou quadros do Fantástico. 


Nada do involuntário tédio em sépia dos aspones e seriados apocalípticos globais, onde ceticismo rima com tédio. Necas, que aqui o aproach é mais do tipo agulha na epiderme: provocações algo nonsense num filme onde o grafismo narrativo é aplicado a certa preguiça crônica do funcionalismo brasileiro. É claro que aquela repartição é um microcosmos de algo mais, colega. E o colega, que vem a ser isso mesmo (o diretor Santiago Dellape, com quem dividimos mesas funcionais na tevê da Câmara dos Deputados), está  vestido de autoridade para tripudiar não só do funcionalismo como de todas as outras piadas já feitas sobre isso. 

Se bem que a redação da TV Câmara, onde labutamos com fervor, orgulho e maestria em turnos ininterruptos de oito horas e meia diárias, nada tem a ver nem com o restante do funcionalismo legislativo e menos do que se imagina com uma redação jornalística convencional. Salto para a mais clássica de todas, in Brasil: a do JB cantada em prosa, versos e memórias dos anos 60 até seu lastimável fim. E na Piauí em bancas, Joaquim Ferreira dos Santos maltrata, meticulosamente, cada microfibra da nossa saudade ao lembrar o santificado espaço de uma pretérita Avenida Brasil. 






Não, nada disso - não é preciso ter trabalhado no JB de então como fez o saudoso Luciano Herbert desde Natal (dividindo o batente com a Tribuna do Norte e o Banco do Brasil) pra entender, sentir, sofrer esse missing you. Basta ter sido um leitor do JB nos anos 80, um estudante de jornalismo em igual período, um brasileiro que, por mais que tentem, não consegue, como uma certa Clara pernambucana, aderir aos tempos atuais. E aí está ele, novamente, em grande estilo, technicollor, para todo o Brasil ou com z ou com s: o espírito do tempo. 



Leia a memória de Ferreira na Pauí e experimente lembrar de quem você era, o que fazia, os amigos que tinha, o miserê que gratificava, o companheirismo que compensava, o divertir-se que criava. Está tudo lá, porque a redação do JB era, como Aquarius e as piadas cínicas pero divertidas e inquietas da Repartição do Tempo, um cartaz e tanto de uma época que tem muito o que dizer aos carreiristas prematuros do mês passado, incapazes de guardar o que quer que seja no bolso dos afetos do ano corrente. 

*A propósito, lembro aos distraídos: Aquarius já está disponível no cardápio do Telecine da plataforma NOW, da monopolista Net global.  

*A propósito (2): Luciano, rapaz, você não está perdendo nada. 

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