segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Uma frasqueira entre muitas botas




Dois festivais de teatro em Brasília trouxeram para o potiguar que vive aqui duas oportunidade de ver dois dos espetáculos mais comentados feitos na cidade de Poti em tempos recentes. Primeiro foi "Guerra, formiga e palhaços"; depois, "Jacy". Duas imersões na nossa fala, duas contemplações nos nossos rostos, dois prazeres espelhados com um intervalo de tão poucos dias que é como se estivéssemos nos tempos de "Papai pirou nas ondas do rádio" ou de "Quem beliscou Paulinho?", nas poltronas do TAM (Teatro Alberto Maranhão para os não-iniciados ou esquecidos). Mas foi aqui, Brasília, Teatro Goldoni e Teatro do Sesc, meados de 2015, um ano difícil. 

Fácil é acionar os botões da memória e da empatia. Sobretudo pela qualidade do que vimos. Muito já foi dito, aqui e alhures, sobre os dois espetáculos: da feliz incursão de César Ferrario no texto - que o povo do teatro diria "na dramaturgia" - ou do retorno ao palco de Quitéria Kelly. Para os não-locais, preciso dizer que César é ator, do grupo Clowns de Shakespeare, cujos integrantes, depois de praticamente construírem uma plateia própria com uma série de espetáculos primorosos, parecem estar buscando novos caminhos. E que Quitéria é um bom-bom de chocolate amargo em forma de pessoa, mulher e atriz - uma outra referência do nosso teatro. Mas que referência!

"Guerra, Formiga e Palhaços" é uma alegoria feita a partir de um tema até batido, que é o absurdo da guerra. Daí para atingir o patético do ser humano é um tiro. Sobretudo quando se coloca um palhaço no campo de batalha: está armado o acampamento que agiganta cada uma das nossas minúsculas fraquezas. "Jacy" é um bric-a-brac que convida o público a montar junto com os atores o espetáculo - sem recorrer a certa empulhação do teatro interativo; o papo é outro. Reconstitui-se, camada por camada, a vida de uma mulher potiguar com esmero, deleite e perícia cênica a partir de um texto a princípio meio testemunhal, semidocumental que, pressente-se e o espetáculo felizmente confirma com celebração, vai desaguar na mais plena ficção.

Há um elemento em comum entre os dois espetáculos, embora de temática tão diversa - quase opostas. Não são os atores, nem o texto, nem o ritmo - embora esse elemento interfira e enriqueça todos esses outros. O que há em comum entre "Guerra, formiga e palhaços" e "Jacy" é um elemento de cena - extremamente presente no primeiro e apenas referencial no segundo. 

Em "Guerra" são as botas cobrem o chão do palco e caem como bombas sobre os atores, espalhando uma infinidade de sentidos conforme se assiste ao espetáculo, servindo aos atores como verdadeiras formas móveis, tristes Lego que eles usam para fazer a peça se deslocar para lá e para cá. As botas, em "Guerra..." só faltam falar - garanto que você jamais viu um elemento de cena tão marcante no palco de um teatro (especialmente se tratando de palco de arena; num palco italiano talvez o efeito não seja tão intenso). 

As botas são ali o chão irregular em que se movimentam os personagens, o piso hostil que sustenta a guerra, o relevo nada confortável em que se finca nossa débil humanidade, o testemunho mudo das caminhadas do soldado sem rumo, a memória que se gruda como lama nas solas furadas de quem não tem mais para onde ir. Trata-se de um elemento de cena que, presente o tempo inteiro, caindo do céu ou revirando-se em terra, envolve tudo. A moldura sem a qual o espetáculo não seria o mesmo. E estamos falando de um texto que já conta com as formigas, outra forte metáfora de nossa condição em momentos de perplexidade total.




Em "Jacy", o elemento de cena definitivo e definidor é uma frasqueira - uma pequena valise daquelas que as mulheres usavam nos anos dourados, caixa luxuosa de perfumes, espelhos e pó compacto. Sua mãe, sua avó ou sua tia há de ter tido uma. Mas o processo é outro: se as botas abraçam tudo em "Guerra", aqui a frasqueira é ponto de partida, elemento provocador do espetáculo inteiro. É a partir dela - encontrada num amontoado de lixo nas ruas de Natal, conforme contam os atores no espetáculo e fora dele - que se dá uma investigação minuciosa, nostálgica, irônica, política (sim!), sensível mas também em certos momentos quase festiva sobre sua proprietária - a Jaci do título. 

O grupo Carmin de teatro montou um inventivo quebra-cabeças teatral a partir desse argumento. De dentro dessa frasqueira simbólica e arquetípica vai saindo não apenas a história de uma mulher potiguar - como tantas que você conhece, e invoco novamente, com todo respeito, sua mãe, sua avó ou sua tia - mas também a alma de uma cidade inteira, Natal. 

A história de Natal, seus encantos e suas mancadas, cabe na frasqueira de Jacy, minha gente. De dentro desse antigo apetrecho feminino sai a Natal da II Guerra, uma extremamente bem montada reconstrução de nossa triste ancestralidade política, um pequeno e doloroso conto sobre a solidão da velhice e, acredite, até o vento do nosso litoral. Vide a cena final, quando ele mesmo, esse vento reproduzido com a ajuda de quatro ventiladores, espalha pelo teatro as folhas soltas desse quebra-cabeças que nós, plateia abençoada pela dádiva inesperada, remontamos guiados pela graça de Quitéria e pelas ironias de Henrique Fontes.

É enciclopédico o prédio dramatúrgico que "Jacy" ergue sobre o palco, numa montagem cheia de excelentes ideias. E são tantas - os cartazes com slogans embaralhados; o jogo entre o Jacy homem e a Jacy mulher; as referências mil que embora digam respeito a Natal não tiram do texto o alcance geral - que, mal você teve tempo de deglutir uma e já lá vem outra. Eis um espetáculo para ser visto várias e várias vezes. Ao final, cada integrante do público leva para casa, para o bar ou para o restaurante pós-espetáculo sua Jacy particular, uma personagem - para usar uma palavra da moda - "customizada" conforme o potencial imaginativo - e sobretudo sentimental - de cada pessoa que assiste ao espetáculo. 

Eu saí com a lembrança da minha mãe e da frasqueira que ela de fato tinha - e tudo o que elas são capazes de evocar. Saí com a saudade de uma cidade que adora se menosprezar mas para a qual todos, mais cedo ou mais tarde, voltam. Saí com uma explicação para esse retorno, que é cobrada em cena de maneira que nunca imaginei ser possível num espetáculo de teatro: - "Porque Natal, para além de tudo, é uma cidade doce"; essa seria a minha explicação, Quitéria e Henrique, Pabro Capistrano e Iracema Macedo (esses últimos, os autores que conseguem dar harmonia a essa bagunça toda que somos nós).

E saí também com uma desconfiança: é crível que a frasqueira tenha sido encontrada no lixo, dando um pretexto documental para a peça; mas é mais crível ainda que tudo, absolutamente tudo, tenha sido inventado. Nessa hipótese, não haveria prejuízo algum: pelo contrário; ao ser capaz de revestir essa história com tamanha impressão de realidade, criando uma ficção pura a partir de um recheio ora falso ora decorrente de informações históricas verdadeiras, o espetáculo se torna ainda mais encantador ao revelar quem foi essa Jacy e dar pistas sobre quem somos, de fato, nós - seus conterrâneos da capital e do interior.


Jacy pode até não ter existido, mas está por todo canto. Como as botas que brotam do chão da guerra.

2 comentários:

  1. Parabéns Sabastião pelo excelente texto!! Como está na moda! Esse texto me representa! Vi "Quem beliscou Paulinho" e também esses dois espetáculos! Repito o meu parabéns!!!

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  2. Obrigado, George. Foi o entusiasmos de ver o povo de Natal ocupando os palcos daqui com um trabalho sempre tão bom. Um tanto de saudade do vento potiguar também.

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