Ok, pode se escandalizar. Mas admita que você também pode se divertir com duas das mais nefastas criaturas literárias dos EUA
Dante que me perdoe, mas ninguém sabe construir um inferno
melhor do que Philip Roth. Inferninhos, pra ser mais exato. Não daqueles de
arrebalde ou beira de estrada. Não do tipo mal iluminado e cheio de figuras
estranhas. Nada de bares suspeitos. Outro inferninho – pessoal, interno,
internalizado, mas igualmente inferninho, pois que acelerado, disparado,
caótico, sem limites. Um inferninho que faz da própria sordidez uma festa
dionisíaca de misérias morais expostas. Você, eu, o leitor, nós nos divertimos em
meio à repugnância – e, nisso, dissecamos o processo do sórdido da vez.
Que começou sendo Portnoy e, alguns anos depois, burilou seu
próprio (mau) caráter a tal ponto que se tornou ainda pior – ou melhor,
conforme a perspectiva de quem lê de fato o personagem. Virou Sabbath. Se o
primeiro começava como um adolescente equipado com uma mente masturbatória
insaciável – na medida exata da reação à repressão da cultura judaica ainda que
não tão ortodoxa mas tanto pior quanto mais relativizada pelo meio (no caso, a
classe média americana) – o segundo, com o perdão da extensão da frase (que
quem já leu Roth não vai estranhar tanto, aposto) termina com o ocaso da mesma
alma nefasta nos dias de velhice safada. Só mudaram o nome e ligeiras
circunstâncias de endereço e profissão, se é que se pode falar assim.
Nem Bukowski foi tão longe. O caso é que Bukowski meio
que se comprazia nas suas orgias, sugeria uma espécie de prazer superior em
meio às maratonas alcóolico-sexuais. Deixava um certo rastro de superioridade
em meio à miséria da raça, apesar de nem sempre se preocupar em reduzi-la ou
julgá-la (muito pelo contrário). E ainda por cima fechava o porre com uma boa
dose de niilismo que parecia justificar tudo. Não é o que acontece com Alex
Pornoll e Mickey Sabbath, os personagens de dois dos principais livros de
Phillip Roth, “O Complexo de Portnoy” e “O Teatro de Sabbath”. Eles não
enxergam redenção alguma no que fazem, nem no nível existencial de sarjeta, se
vocês me entendem. Pra eles, nada daquilo faz sentido algum. Daí os livros
fazerem muito sentido pra quem os lê aqui do outro lado.
Como se sabe, ou não (eu não sabia até a velha biblioteca
da Câmara dos deputados, logo ele; e uns vídeos banais de YouTube me informarem
gentilmente), “O Complexo do Potnoy” é o primeiro dos mais importantes livros
de Roth – e também o primeiro em que críticos literários que foram seus primeiros
apoiadores tiveram imediatamente a providência primeira de lhe retirar aquele
mesmo esteio inicial. Porque não suportavam as taras do monstruoso personagem.
Curioso que justo críticos literários não tenham conseguido descolar o
personagem do livro em si – ou, muito mais grave, do autor. Levaram tudo e
todos a sério demais – e é preciso dizer que os dois livros aqui referidos são,
antes de qualquer coisa, autênticas catedrais do bom humor.
Roth ficou na dele e escreveu uma série de outros livros
sem tocar no assunto, como quem assovia uma valsa vienense em meio a um bacanal
romano. Pois bem. Anos depois, sai-se com “O Teatro de Sabbath”, um compêndio
de memórias e registros de um personagem ainda mais perverso, sexual e
socialmente falando. Sabbath soa como Portnoy na velhice, como já disse aqui.
Os livros se encadeiam perfeitamente, de maneira que o segundo foi uma espécie
de resposta de Roth a quem se escandalizou com aquilo que parecia um escritor
promissor até o lançamento do primeiro.
Confundiram o próprio Roth com Portnoy e com Sabbatn – o que
não é tão difícil, já que a biografia dos três tem pontos em comum. Mas, para
além de olhos esbugalhados de indignação letrada, por trás de cordilheiras de
trepadas e rios de sêmen derramados por páginas e páginas, o que parece mesmo
incomodar ambos – Portnoy e Sabbath – é a repressão cultural (muito além do
murinho sexual, embora esse faça parte do pacote todo). É contra a convenção da
tradição judaica, por sua vez cimentada pelos padrões do american away of life
contra o qual os redutos em que vivem só aparentemente parecem se confrontar,
que nossos dois tarados de estimação se põem a reagir.
E nisso, por serem tal qual são, imperdoáveis que nem um
Trump enfurecido diante do quadrado em branco do twitter, é que podemos, junto
com Roth, projetar neles todo o nosso potencial de malfeitos. Portnoy e Sabbath
são como aqueles cadáveres sem nome que os estudantes de medicina usam para
estudar o funcionamento do organismo humano. Eis a medicina da literatura –
tantas vezes mais honesta que a de fato. E este último comentário bem que poderia
vir de um dos dois personagens. Mas, como não sou nenhum deles, melhor parar
por aqui.
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