Dois filmes que recuperam para o olhar a força do
cinema sem apelar para super-herói ou explosões – a não ser aquelas que se dão
na alma contemplativa e silenciosa do espectador
Não poderia haver dois filmes tão distintos e opostos – e tão bons, de um tipo de cinema que definitivamente os americanos deixaram para trás. E de um tipo que sequer os seriados de televisão, com toda sua excelência, praticam. Tinha que ser o cinema francês – agora num formato até mais próximo do americano dos anos 80, mas sem perder a subjetividade que lhe é característica, embora também sem fazer dessa qualidade um fetiche para a indefinição. Não sendo mais o “cinema de arte” de antanho, consegue ser o cinema da objetividade bem praticada e colocar-se distante também do espetáculo vazio que o cinema de super-herói inflou até as raias da banalidade.
Isso tudo é apenas porque eu assisti a apenas dois
dos tantos filmes do Festival Varilux de cinema francês. Bastaram dois para
escancarar o alcance deste cinema atual e diversificado – e que, a julgar por
esses dois exemplares, não abre mão da profundidade. Nem mesmo quando se trata
de algo absolutamente leve, como é o caso do primeiro filme que vi, “Um Doce
Refúgio” (título brasileiro tipo água-morna para o original “Comme um avion”).
É um cinema-crônica que desde os primeiros quinze minutos já lhe remete aos
filmes do italiano Nanni Moretti (Caro Diário e afins). Ao final dos créditos,
você confirma: o ator, protagonista tão importante que leva o filme todo nas costas
sem acusar peso algum, é também o diretor - Bruno Podalydès. Um Woody Allen europeu e, assim como
Moretti, sem o ranço nova-iorquino às vezes algo postiço do ex-marido de Mia
Farrow.
“Um Doce Refúgio” é aquele filme que, ao parecer supérfluo na abordagem e no tema, na verdade constrói um consistente e articulado discurso sobre a necessidade de se deixar levar pelo acaso em uma era marcada pela exigência neurótica de controle, sucesso e ostentação. Você passa duas horas apreciando as viagens reais e imaginárias de um sujeito que admite se deixar levar pela fantasia a ponto de se jogar em rios pilotando um caiaque comprado aos poucos pela internet. A metáfora visual é absoluta e, além de dispensar explicações, ainda proporciona um fluxo de imagens, um ritmo cinematográfico que não poderia ser mais inerente à velha sétima arte.
Já o outro filme, “Os Cowboys”, é uma jornada rumo
ao inferno de um fenômeno mundial que, na época em que a história se inicia,
estava apenas começando. O tema é atualíssimo – a adesão de jovens europeus se
não bem nascidos, ao menos bem estabelecidos, ao mundo dos extremistas
islâmicos. O filme como que coloca uma lente de aumento ainda mais potente
sobre esse tema, ao situar a adolescente que foge de casa e some sem deixar
vestígios numa família francesa que elege como modelo de vida toda a simbologia
do oeste americano (o sumiço se dá durante um festival que emula, na França,
uma festa country norte-americana). Dois extremos já estão juntos aí – o isolacionismo
conservador algo texano que a família admira por tabela e o extremismo islâmico
que captura sua filha e se opõe violentamente àquela mesma América
estandartizada.
Mas “Os Cowboys” é um daqueles filmes que pulam por
diversas fases, transformando-se praticamente em dois filmes em um – e o espectador
vai junto, embarcando numa jornada de busca à garota desaparecida que
descortina um mundo arriscado, violento, inseguro e ameaçador não apenas do
ponto de vista da segurança pessoal, ou de um povo ou de uma nação. Entramos,
numa incursão muito bem realizada pela direção do filme, no terreno movediço
das viradas pessoais, atingindo pontos irreversíveis tanto na paisagem estranha
dos desertos orientais quando nas vastidões interiores de quem faz esse tipo de
travessia sem volta. Quem personifica tudo isso – algo de que nem se desconfia
na primeira hora do filme – é o irmão da menina desaparecida, um ator pleno de
poderes em expressar um mundo de emoções, carências e potenciais ousadias praticamente
sem usar palavras. É um daqueles rostos que o grande cinema, no tempo em que
esta arte teve espaço para ser realmente grande, gravava para sempre na tela da
memória coletiva.
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