O cenário em
volta é de filme de época, meio novela das seis meio conto de Tolstoi. Um ar
metade Escrava Isaura, metade Crime e Castigo. Bruma, luar e silêncio.
Continentais pedras no chão e uma torre gótica no alto. Luz amarela, que vem de
postes fantasiados de lampião. É possível ouvir o canto mais pra melódico do
que para rítmico dos saltos das sandálias das moças tocando o chão no que
descem a ladeira. Onze da noite, os vultos – não fantasmagóricos, mas animados –
começam a surgir e se solidificar em pequenos grupos na dança dessa descida. O
destino é a Igreja do Rosário, que apesar do nome tipicamente
colonial-brasileiro tem a aparência de uma Notre Dame tropicalizada tanto
quanto possível no coração do Goyaz. E aqui se clarifica o completo da locação:
estamos na Cidade de Goiás, ou Goiás Velho como eles não gostam de ser chamados
– apesar do apelo poético deste outro nome; mas vai ver os habitantes já vivem
saturados de poesia apenas pelo fato de residir nesta cidade mágica. Aqui, o acontecimento
da noite é uma serenata.
Goyaz, a
cidade, por estes dias e estas noites ganhou uma camada humana a mais entre
seus becos e casario que parece desenhado a lápis de tão bonito – e no entanto
se trata de um lugar habitado como qualquer outro, o que prova que a poesia não
é nenhum delírio; embora felizmente o seja mas essa é outra questão. Os
habitantes a mais de que se fala são os coralistas, palavra que nem sei se existe
mas que aqui casa muito bem com a mais célebre figura da cidade, a poeta Cora
Coralina – aquela que ensinou a sábia arte de viver enquanto entre nós esteve,
ao misturar panelões de doces com o exercício da poesia, depois de retornar ao
casarão onde nasceu uma vez tendo feito
crescer os filhos de outra etapa da vida que soube tão graciosamente
encerrar para recomeçar à sua maneira. Os coralistas, pois então, casam com
Cora e dão um retoque no fim de semana de uma Goyaz que realiza assim como um
informal encontro de grupos corais.
Você está
descendo malemolente a ladeira da Igreja do Rosário e é meio que elevado do
chão pelo misterioso canto que vem não se sabe bem de onde. São os coralistas
na igreja, cantando um repertório de clássica MPB radiofônica. No dia seguinte, tarde-noite de sábado, eles
estarão na praça, espantando com suas vozes o insuportável – e absolutamente
alienígena – barulho repetitivo e poluído que vem de alto falantes cuspidores
de funks feios, sujos, grosseiros e impacientes. Sim, Goyaz, apesar de a visão
de 360 graus em torno sugerir tanta história e tamanha carga de sensibilidade
urbana, também tem seus defeitos. Nada que um coral não possa interromper uma
vez ou outra.
Antes de
retornar à serenata improvisada que saiu qual cortejo levando música às janelas
da cidade, é preciso lembrar que Goyaz é aquele tipo de lugar onde tudo parece
muito parado, nenhuma surpresa à vista além da placidez decorrente da
contemplação de suas casas, museus e monumentos, inclusive os naturais, como a
cadeia de montanhas da Serra Dourada que tudo cerca como se desejasse conter
entre muros verdes essa poesia emanada no local. Mas não é bem isso, como provam seus
restaurantes mineiramente escondidos no meio do casario, sem maiores placas,
apelos e gritos gráficos. É preciso andar em Goyaz, calmamente como um de seus
doces velhinhos caipiras, para farejar seus perfumes bem guardados.
E é aí que a
surpresa pode tocar no ombro: aguardando um pouco o apetite chegar para um
jantar, sentamos num banquinho em frente ao terminal turístico quando um cartaz
colado na fachada do cine-teatro ali em frente nos chama a atenção. Pessoas
começam a chegar, recebem um folheto da recepcionista postada no local e entram
para assistir a alguma coisa. A curiosidade nos moveu do banco e fomos lá: era
uma apresentação de um grupo de dança de Goiânia, show gratuito, teatro lotado,
um pequeno acontecimento artístico feito sem alarde, uma hora de sensibilidade
pura que não precisa constar dos roteiros turísticos. Algo que é feito
primeiramente para o morador da cidade de Goiás. Nós, visitantes, temos mais é
que pedir licença se quisermos assistir também.
Um
espetáculo sobre a trajetória do rock and roll em Goiânia – Yes, man – com uma
dança contemporânea coalhada de efeitos cênicos e turbinada por sombras típicas
da estética dos anos 80. Belo show, ainda mais porque em determinado número o
som falhou – e a companhia de dança continuou como se nada tivesse acontecido. Profissionalismo
anhanguera. Persistência bandeirante, índios escravizados à parte. Torrente de
aplausos no final. Ainda com o som pifado, um número solo de uma bailarina que
logo perde a condição solitária, uma vez que o público não demora a cantar para
fazê-la continuar dançando a letra mais que conhecida da balada “Pais e Filhos”,
clássico da Legião Urbana. Somente no próximo número o som retorna, encerrando
uma noite de alguma transcendência, que é como se pode qualificar essas coisas
que não estão previstas mas, uma vez acontecendo, derrubam muralhas da parte
cronicamente apática do nosso ser.
Faltava
conferir a serenata, esta sim prevista, de hora marcada, mas de detalhes
incertos, como que para manter o espírito vivo da poesia que sai melhor quando
se improvisa, livre de normas rituais. Aquelas sombras da noite que se
solidificavam em grupos foram aumentando, enchendo o pátio da fachada da Igreja
do Rosário. Uns violões, do tipo que não dava para saber mesmo quantos eram e
onde estavam: bastava que fosse como eram, uma espécie de rede de notas sobre
as quais aquelas dezenas de pessoas vindas de várias direções poderiam pular
qual criança, usando a voz, a noite, a potência do luar e o cenário em volta
como propulsores de uma emoção musical capaz de anular a gravidade da rotina.
A certa
altura, qual procissão religiosa de que Goyaz é também notória – o cortejo dos
encapuzados na Semana Santa é o marco número um do município – começamos a
caminhada, calma, lenta, musicada por velhas canções de um Brasil quase tão antigo
quando as paredes em volta. Sempre que se encontra uma janela aberta com um
morador à espreita, dá-se o presente de incalculável valor que é parar e cantar
só para ele – ou eles, caso frequente em que uma família aguardava o momento de
ser homenageada com tal exercício de
doação. Palmas, agradecimentos, e
novamente o grupo se desloca, devagar, como que saboreando o gostinho de pisar
em cada pedra, gravar em cada porta a nota de uma voz, o carimbo sertanejo de
um canto. Ê, Goyaz!