domingo, 22 de maio de 2016

Um Brasil meio seriado do Netflix





Enfim vamos matar a saudade de Peninha, nosso historiador mais rock and roll

 
De tempos em tempos, a ansiedade do desapego me pega e – menos por moda do que por falta de espaço – sou forçado a me desfazer de pilhas de livros. Melhor pros sebos e, ao menos da última vez em que isso se deu, pras duas garotas com cara de estudante sem dinheiro que estavam na porta do Sebinho, na Asa Norte, e dividiram entre si todo o refugo que nem o estabelecimento de livros usados queria mais. Não porque fossem livros ruins (sim, eles existem), mas por serem, digamos, manjados demais – e comercialmente sem valor. O fato é que, nos desbastes periódicos de livros aqui de casa, tem uma série de três que sempre se recusa a ir embora. Por mais que eu tente – e, no caso dessa trilogia, admito que nem isso faço mais. Os intocáveis me olham do alto da estante cientes de que não correm risco algum. 

É a série Terra Brasilis, de Peninha – não o cantor, mas o jornalista e escritor Eduardo Bueno, um gaúcho com cara de carioca espevitado que está sempre tramando alguma coisa. Trama tanto que, às vezes – e é o caso aqui – deixa um desses trampos pelo meio do caminho, assim sem mais nem menos. Pois foi exatamente o que ele fez com a Terra Brasilis: lançou de um jato só os três primeiros volumes, que quem leu e gostou leu e gostou praticamente no mesmo ritmo em que Peninha os escreveu, e... pausa, intervalo, trégua... Como assim?

Depois de ler e nunca mais esquecer “A Viagem do Descobrimento”, “Náufragos, Traficantes e Degredados” e “Capitães do Brasil” – sobretudo o “Náufragos...” – o leitor da série de Peninha se viu obrigado a uma crise de abstinência mais cruel do que aquela que se abateu sobre um hipotético hippie que o escritor também foi depois de supostamente ter sido expulso de Woodstock ao final do primeiro show, sem direito de viver todo o resto. Como diria John Lennn, imagine.  

Voltando aos dias atuais, somente hoje descobri, lendo minha saraivada de jornais dominicais – e a cereja do bolo aqui também veio desta mesma maratona, abro logo mais – que houve, sim, um quarto volume. Que eu pelo menos nunca vi em livraria alguma. Peninha explicou à reportagem que o motivo da pausa foi o fato de ele já ter enchido os bolsos de dinheiro o suficiente graças às vendas dos três primeiros (que escreveu tão rapidamente devido à falta desesperadora do mesmo dinheiro que viria a provocar a interrupção; coisas de Peninha). Agora não tem mais importância; importa, sim, a novidade que o jornal me conta: o tal quarto volume vai ser relançado (assim como os três primeiros) e, cereja do bolo, Peninha está escrevendo um quinto volume, intitulado “França Antártica”, sobre toda aquela querela provocada pelos invasores franceses às voltas com Tamoios e Tupiniquins – o que, de uma forma muito Peninha de recontar a história, explica por exemplo a eterna rivalidade entre cariocas e paulistas. 

Faça como eu: aguarde o novo livro da série, que por sinal foi rebatizada apenas como “Brasilis”. E se a síndrome de abstinência voltar – você querendo ler de novo coisas como a explicação para D. João III ter demorado tanto a mandar um colonizador digno do nome ao Brasil, que seria Martim Afonso; sendo que, como em tudo em história, havia um objetivo não revelado por trás – o jeito é reler os três  primeiros. E o quarto, pra quem tem. De um jeito ou de outro, essa série é coisa digna de seriado do Netflix. Daqueles que lhe deixam a ponto de destruir a casa inteira se o sinal do wi-fi der uma oscilada bem no final do episódio.

terça-feira, 3 de maio de 2016

A luneta de Alceu

Inquieto como um frevo de rua, o filme mistura cangaço e circo numa maratona de alegorias 


O filme de Alceu Valença é um rock-xaxado de imagens inquietas, colhidas por uma câmera que dança o tempo todo, construindo um cinema movimentado como o músico, cantor e compositor que se arrisca em outra linguagem. Nada fica quieto muito tempo no filme que aposta em gênero consagrado o bastante no cinema brasileiro para não trazer riscos ao realizador: o cangaço. Claro que nesta “Luneta do Tempo” temos o cangaço alegórico, como se o filme todo fosse uma ópera popular movida a um programa  musical aplicado sobre os signos mais caros dos sertões nordestinos. 


Alceu mixa o mito do cangaço com o mundo dos circos mambembes mais pobres, extraindo disso um suco cultural que fala muito próximo a quem guarda os marcos daquilo que se convencionou chamar de Brasil profundo. E não faz feio quando se trata dos recursos técnicos que o cinema precisa saber usar. Vide as cenas de tiroteio, que podem levar o espectador à lembrança de faroeste americano de soberania técnica, deixando na poeira das caatingas os truques manjados do cinema novo mais decadente (não do inaugural, onde a precariedade técnica era, por si só, uma nova linguagem reconstruída).


Alegórico, colorido, festivo, dionisíaco, algumas vezes violento como a realidade que afinal também evoca, em muitas outras também lírico como se espera de um Alceu Valença, “A Luneta do Tempo” tem ainda o carisma instantâneo, imediato, direto e envolvente de nossa (para os potiguares) Khrystal, que, cantora magnífica que conhecemos, no filma mal precisa abrir a boca para expressar o que vai dentro de uma cangaceira ferida não no corpo mas no amor-próprio do sentimento ultrajado. Belo desempenho mudo de uma das nossas mais potentes vozes. Verás que mesmo sem lançar mão do seu instrumento vocal Khrystal preenche a tela inteira – e olhe que vi na tela generosa do Cine Brasília – com sua máscara de mulher tão magoada quanto decidida – e veja que ela está rodeada por ninguém menos do que Irandhir Santos e Hermila Guedes.



“A Luneta do Tempo”, como o próprio nome sugere, ainda brinca com a forma como a passagem do tempo faz pouco das realidades humanas, reconstruindo as tais narrativas conforme as circunstâncias. É o momento de metalinguagem do filme, quando uma sequencia da “realidade” do cangaço é refeita em forma de drama circense, estabelecendo, como sempre acontece nesses casos, um interessante diálogo interno do filme com o próprio filme. Com um desfecho não menos interessante.


Breve, exato, em grande parte convencional, sim, o filme de Alceu soa como um cordel redondinho, uma canção como essas que contam uma história emocionante, um drama de circo feito com os recursos de uma arte tecnicamente mais elaborada. Vai tocar você como boa música – mas é cinema, sim, senhor.