Foi um daqueles casos de ascensão fulminante ao panteão das entidades das letras - mais ou menos a mesma que se dá quando o Nobel de literatura vai para um (até minutos antes) obscuro escritor belga, ou africano ou afro-americano cujo conhecimento público se limitava quando muito a um gueto universitário ou algo assim. O problema era encarar as horas de leituras exibidas pelo 2666 - que a muito custo a gente duvida que não se trate de um título autoexplicativo sobre o número de páginas em que se estende. O fato é que muita gente boa que se aventurou - incluindo os envergonhados pioneiros que muito rapidamente tinham que devorar o catatau e se mostrar atualizados com a nova seita - deu uma aliviada geral ao contar, diante de pasmos leitores escaldados, que, sim, é um grande livro.
Por favor me situe entre os escaldados e os preguiçosos. Não é que eu torça a cara para livro grosso. Moby Dick e Grande Sertão até hoje me absolvem nesse quesito, lembrando que a grossura é o que menos importante no velho Guimarães e que a baleia de Melville pode muito bem ser entendida com uma versão ampliada de O velho e o mar de Hemingway. No fundo o que incomodava mesmo era essa pressão para que de um dia para o outro a gente se tornasse especialista num autor que, absurdo dos absurdos, fora ignorado em vida para ser celebrado mal deixou esse mundo. E logo de cara com todo mundo jogando nas fuças da gente esse 2666 que parece mais um tomo de enciclopédia perfeito para escorar portas que rangem.
Mais precisamente o Borges de Ficções - um livro tão precioso na minha memória de leitor que, por mais que tenha vontade, evito encarar um releitura, como que pra não quebrar aquele encanto - com o Conversa na Catedral de Lhosa (que somente este ano, há poucos meses, encarei a frio). Foi notar esse cruzamento na história do professor universitário que vaga entre América Latina e Europa perseguido pelos próprios fantasmas relacionados ora à militância esquerdista ora a uma homossexualidade tardia que acordei para tais conexões. De Lhosa, ele pegou a história picotada como que em quadrados que se encaixam um capítulo aqui com outro bem mais adiante. De Borges, enxertos como aquelas maravilhosas listas de livros inexistentes e ainda aquela maneira de narrar usando formatos diversos, como capítulos surpreendentes mínimos ou resumos de obras literárias que também só existem no próprio livro. Tudo muito aberto, esparso, ventilado como se fosse um grande escrito cujas folhas saíram voando por aí e um leitor - você, que por ventura esteja com o livro nas mãos - organizou para compreender minimamente o mundo daquele professor e seu entorno.